“Sustentou que não estava no local para reatar, mas apenas havia retornado para seu domicílio como sugestão feita pela família da vítima. Ora, basta um mínimo de sensibilidade para perceber a pouca consistência e credibilidade do depoimento do Réu. Esteve no local sim, mas seu intuito era controlar, dominar, impor sua presença, causar desconforto e medo e fazer valer suas decisões. Agrediu, reproduzindo o comportamento do macho que domina e faz o que quer por meio da força física.”
Essas foram algumas das palavras usadas na sentença proferida pela juíza Brunella Faustini Baglioli, da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Vitória, que condenou, na quarta-feira (10/05), o ex-soldado da Polícia Militar Walter Matias Lopes pela acusação de agredir fisicamente sua ex-esposa, a auxiliar de serviços administrativos Izabella Renata Andrade Costa. No dia 22 de março de 2022, Matias já havia sido condenado a um ano, seis meses e cinco dias de detenção com base na Lei Maria da Penha, pela juíza Brunella Baglioli, pela acusação de agredir o namorado de Izabella com uma garrafada na cabeça.
Se as palavras da magistrada são sábias e duras, na sentença dos autos de número 0001120-41.2022.8.08.0024, a pena imposta a Walter Matias é branda, para não dizer pífia. Mas aí a culpa não é da juíza, e sim dos legisladores brasileiros que fazem leis frouxas e hipócritas, só para dar uma justificativa à sociedade. Por imposição do caderno processual, a juíza Brunella Baglioli só pode aplicar pena definitiva de um ano e seis meses de reclusão a Matias.
Izabella tornou-se um dos símbolos da luta contra a violência doméstica justamente no segundo turno das eleições para o governo do Espírito Santo em outubro de 2022. Num período em que foi casada com Matias, Izabella era lotada no gabinete do então deputado federal Carlos Manato. Matias, então esposo de Izabella, sempre trabalhou com Manato de maneira informal, participando de campanhas eleitorais e sendo um dos coordenadores. Por isso, Izabella foi colocada no gabinete da Câmara Federal, com o salário, conforme ela mesma denunciou, indo para Matias.
No dia 19 de outubro do ano passado, o Tribuna Online publicou uma entrevista com Izabella em que a jovem denunciou um suposto esquema de ‘rachadinha’ no gabinete de Carlos Manato, entre 2016 e 2017. Na mesma entrevista, Izabella revelou também como foi arquitetado o movimento do aquartelamento dos policiais militares do Espírito Santo, durante 22 dias de fevereiro de 2017, período em que, pela ausência de policiamento nas ruas e pelo caos instalado, pelo menos 219 pessoas foram assassinadas no Estado.
Dois dias depois de conceder a entrevista ao Tribuna Online, Izabella aceitou gravar um vídeo para a campanha do governador Renato Casagrande (PSB) – candidato à reeleição e que saiu vitorioso – e exibido no horário reservado às propagandas eleitorais. No vídeo, Izabella confirmou ter sido lotada no gabinete de Manato e que o ex-deputado federal, que disputou o segundo turno contra Casagrande, foi informada por ela das agressões físicas praticadas por Matias.
E, no debate promovido pela Rede Vitória, na noite de 20 de outubro, entre Renato Casagrande e o bolsonarista Carlos Manato, as agressões sofridas por Izabella vieram à tona. Instigado pelo governador Casagrande, sobre violência contra às mulheres, Manato admitiu ter cometido o crime de omissão em relação a um de seus coordenadores de campanha, o ex-PM Walter Matias. “Walter Matias bateu na mulher e foi preso. Foi condenado, ficou vários dias preso, teve que cumprir pena. Eu não tenho nada com isso. A relação dele com a mulher dele é problema dele, não é meu. Com quem ele trabalha, não é problema meu…”, disse Carlos Manato.
A partir daí a luta de Izabella ganhou visibilidade, até a sentença proferida na quarta-feira (10/05). Conforme consta na denúncia do Ministério Público Estadual, “Walter Matias é ex-companheiro da vítima Izabella Renata Andrade Costa, e no dia 22/08/2021, aproximadamente às 23h27min, no bairro Santos Dumont, em Vitória/ES, praticou crimes de Ameaça e Lesão Corporal qualificada em desfavor da ofendida.”
Diz ainda o resumo da denúncia: “Afloram dos autos que na data dos fatos o denunciado, irresignado frente a negativa da vítima em retomar o relacionamento, de maneira livre e consciente, passou a enviar mensagens a esta, prometendo causar-lhe mal injusto e grave ao ameaçá-la de morte, deixando-a temerosa por sua vida. Ato contínuo, não satisfeito, o agressor s dirigiu até a residência da ofendida, ainda insistindo em reatar a relação entre ambos, tendo a mesma novamente recusado tal proposta, oportunidade em que, de maneira livre e consciente, com animus laedendi, passou a agredi-la fisicamente ao desferir dois golpes em seu rosto, além de te-la agarrado pelo pescoço intentando esganá-la, ao mesmo tempo em que solicitava obter acesso ao seu aparelho telefônico, proferindo ameaças de que voltaria a agredi-la caso não o concedesse, produzindo, assim, as lesões corporais testificadas em laudo pericial de fl. 17.(…)”
Izabella e Matias foram interrogados durante a tramitação do processo. A jovem reiterou, na Justiça, o que havia declaro em fase de Inquérito Policial. Em Juízo, Walter Matias negou as acusações, afirmando que ele é que era agredido por Izabella. A juíza Brunella Faustini Baglioli considero uma “desfaçatez” o depoimento de Matias. A magistrada explica na sentença que é sabido que os crimes praticados no contexto da violência doméstica ocorrem, via de regra, sob o manto da clandestinidade. Assim, a lei confere a palavra da vítima especial relevo.
“Note que o Réu (Matias), a todo momento, quis desqualificar a vítima no sentido da mesma ser uma pessoa materialista, que somente se preocupava em gastar e ter as contas pagas. Vejamos: ‘(…)que não sabia o quanto ganhava; que ela ficava com os cartões(…) que a tia da vítima disse que ela estava esperando terminar a casa, comprar o carro e terminar de pagar a faculdade de direito e os móveis modulados no valor 150 mil reais; (…)’”. Prossegue a magistrada: “(Walter Matias) Teve a desfaçatez de alegar que a vítima (Izabella) o agredia. Ora, basta notar a compleição física das partes. O Réu, ex-integrante dos quadros da polícia militar, obviamente conhece técnicas de imobilização, ter a coragem de alegar para este Juízo que: ‘(…) que ela era violenta; que só apanhava; que já houve agressões por parte dela; (…)”.
A juíza Brunella Baglioli afirma ainda na sentença condenatória que Matias “joga com as palavras. Típico do patriarcado. O Réu se coloca na condição de sofredor, do sacrificado, imputando culpa em quem realmente se encontra na condição de vítima. Constrói um enredo elaborado, calculado. Alega: A) sequer controlava seu dinheiro; B) a lesão foi decorrente de um ato involuntário na tentativa de pegar um celular novo que havia comprado e que ainda pagava; C) vítima queria trazer seu novo companheiro para residir na casa que havia construído/montado. Até quando as Mulheres terão que ouvir esse discurso?”, questiona, indignada, a magistrada.
Brunella Baglioli rechaça na peça condenatória os argumentos de Matias: “Sustentou que não estava no local para reatar, mas apenas havia retornado para seu domicílio como sugestão feita pela família da vítima. Ora, basta um mínimo de sensibilidade para perceber a pouca consistência e credibilidade do depoimento do Réu.” E completa:
“Esteve no local sim, mas seu intuito era controlar, dominar, impor sua presença, causar desconforto e medo e fazer valer suas decisões. Agrediu, reproduzindo o comportamento do macho que domina e faz o que quer por meio da força física. As lesões apresentadas pela vítima obviamente não decorrem da tentativa de se pegar um celular. Elas estão em diferentes locais: região nasal, periorbital esquerda e perna direita. As marcas estão essencialmente no rosto, típicas de quem deseja marcar e expor. A dinâmica dos fatos por meio da narrativa da vítima é muito mais coerente com o resultado das lesões e comprova o comportamento desordenado do Réu. Assim, entendo que o Ministério Público logrou em comprovar os fatos narrados na denúncia com relação ao delito lesão corporal.”
Todavia, salienta a magistrada, “quanto ao crime de ameaça, entendo que a conduta narrada na peça inaugural não restou suficientemente comprovada. Apesar do comportamento lamentável do Réu, não restou configurada a referida conduta delituosa. Isso porque, em Juízo, a vítima afirmou que o Réu teria dito que se ela não entregasse o celular, se arrependeria, sem contextualizar o sentido dessa palavra.” Assim, entende a juíza Brunella Baglioli, “não foi possível concluir, com a certeza necessária ao decreto condenatório, que o mal prenunciado foi grave e injusto, apesar da reação agressiva e descontrolada do Réu no dia dos fatos e do histórico narrado pela vítima, inclusive pós-separação.”
Ao fundamentar a condenação de Matias pelo crime de lesões corporais, a juíza Brunella Baglioli explica que “a atitude interna do acusado, que se refletiu no delito, e o grau de contrariedade ao dever demonstram que a sua culpabilidade é alta, ultrapassando as raias do razoável. Seus antecedentes, ou fatos da sua vida ante acta, estão imaculados. Sua conduta social, que se reflete na convivência, no grupo e em sociedade, é presumivelmente normal. Sua personalidade ou o todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças que determinam ou influenciam o comportamento humano, forma de ser, agir e etc., indicam ser o Réu pessoa agressiva, hostil, descontrolada, sem limites e que não respeita a figura da Mulher. Os motivos, precedentes causais de caráter psicológico da ação ou mola propulsora do delito, induzem à exacerbação da reprimenda a ser imposta, eis que o Acusado, agiu de forma impor seu controle e posse sobre a vítima. As circunstâncias, que se resumem no lugar do crime, tempo de sua duração e outros são relevantes e merecem ser sopesados, uma vez que praticou as agressões na casa, sem se preocupar com a presença do irmão da vítima no local, banalizando e naturalizando a violência contra a Mulher. As consequências do crime, que se resumem nos efeitos produzidos pela ação criminosa, o maior ou menor vulto do dano ou perigo de dano e o sentimento de insegurança trazido pela ação não devem ser consideradas graves. O comportamento da vítima em nada estimulou o cometimento do crime.”
A magistrada decidiu ainda que a pena de um ano e seis de reclusão é incabível a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direito por se tratar de crime cometido com violência à pessoa. No entanto, por preencher os requisitos do art. 77 do Código Penal, “suspendo a execução da pena privativa de liberdade por 2 (dois) anos. Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao cumprimento das seguintes condições: a) No primeiro ano do prazo o condenado PRESTARÁ SERVIÇO À COMUNIDADE OU A ENTIDADES PÚBLICAS, a teor do que dispõe o artigo 46 do Código Penal, (a ser definida quando da execução), que deverá ser cumprida à razão de 01 (uma) hora de tarefa por dia de condenação, de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho.”
E mais: “Esclareça-se ao réu que a suspensão condicional da pena será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário for condenado, em sentença irrecorrível, por crime doloso ou descumprir a prestação de serviços à comunidade. A suspensão ainda poderá ser revogada se o condenado descumprir qualquer outra condição imposta ou se irrecorrivelmente condenado, por crime culposo ou por contravenção, a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos.”