Mesmo que não tenha estabelecido ainda a quantidade de maconha que diferencia usuários de traficantes, o que deve ocorrer na sessão desta quarta-feira (26/06), o Supremo Tribunal Federal concedeu, pela primeira vez, segurança jurídica à Lei de Drogas, cuja última alteração substancial se deu em 2006. Em julgamento ocorrido na terça (25/06), o STF formou maioria para descriminalizar porte de maconha para consumo pessoal. A maior parte dos ministros firmou o entendimento de que o porte da substância é uma infração administrativa, e não penal. Prevaleceu no julgamento o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso. Ele foi acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber (hoje aposentada) e Cármen Lúcia. Ainda que distintos e sob perspectivas diferentes, os votos foram no mesmo sentido: descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio e estabelecer uma quantidade da substância para diferenciar usuários de traficantes.
O ministro Dias Toffoli fez no início da sessão de terça-feira uma complementação ao voto apresentado na semana passada, afirmando que votou pela descriminalização, mas considerando constitucional o artigo 28 da Lei de Drogas. Ele foi acompanhado pelo ministro Luiz Fux. Quanto à quantidade que diferencia uso de tráfico, a proposta com mais adesões até o momento é a do ministro Alexandre de Moraes: devem ser presumidos como usuários aqueles que guardam, adquirem, têm em depósito, transportam ou trazem consigo até 60 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas, desde que não haja indícios de tráfico, como a apreensão de balanças e cadernos com anotações referentes à venda de droga, entre outros.
Com essa decisão, o Supremo, pela primeira vez, estabeleceu limites e adequou a Lei de Drogas à Constituição Federal, segundo especialistas no assunto entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Para eles, por quase duas décadas juízes e autoridades policiais foram incumbidos de decidir se o cidadão flagrado com maconha responderia por tráfico ou não com base em subjetividades, o que viola a Carta. “A subjetividade (de escolha se é usuário ou traficante) é incompatível com a democracia e com o Estado de Direito. É a lei que tem de determinar isso, porque oferece segurança jurídica ao cidadão, e isso significa previsibilidade da conduta estatal. Nesse caso não havia esta previsibilidade, que é um princípio relevante da nossa Constituição”, diz o advogado e professor de Direito Constitucional Pedro Serrano. “O Supremo nada mais fez do que restabelecer uma ordem constitucional que estava sendo vulnerada pela forma como funciona o sistema de Justiça.”
O desembargador Marcelo Semer, que compõe a 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, está imerso no tema há anos e diz que os critérios estabelecidos pelo Supremo vão evitar prisões indevidas. “Faz tempo que essa questão se discute na doutrina e na jurisprudência, inclusive em outros países. A questão é que o crime tutela a saúde pública, não particular e, no conjunto dos princípios da Constituição, não é possível a punição da autolesão por falta de ofensividade a terceiros”, argumenta o magistrado. “Se a lei não fixa, o juiz tem de fixar e é muito razoável que o STF possa dar um caráter de objetividade como esse. Até porque as pesquisas mostram que os juízes não foram capazes até agora de estabelecer um mínimo de consenso”, completa Semer.
Já o constitucionalista Lenio Streck é mais cético. “Todos os democratas têm convicção de que não se pode encarcerar usuários de droga (especialmente a maconha). E que tráfico é uma coisa, consumo é outra. Aliás, isso já é assim. Por não ser cumprido pelo sistema, houve a criação jurisprudencial do STF. Torço para dar certo. Mas a polícia, o Ministério Público e o Judiciário são os mesmos de antes. Como eles agirão? Eis a questão”, questiona.
Racismo estrutural
Embora a discussão sobre o viés racial das abordagens e das prisões por tráfico de drogas já venha de longa data, o voto do ministro Alexandre de Moraes apresentou dados estatísticos que envolveram centenas de milhares de ações policiais e suas respectivas consequências. O estudo foi requerido à Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) e mostrou que, matematicamente, os juízes adotam parâmetros distintos para uso e tráfico de acordo com a geografia e o grau de instrução do abordado. Segundo o ministro, na cidade de São Paulo, por exemplo, na média o porte de 51 gramas de maconha é considerado tráfico; no interior, o número cai para 32.
Em relação ao grau de instrução, se o abordado for analfabeto, a caracterização de tráfico ocorre com a posse de 32 gramas, enquanto para aqueles com segundo grau completo é com 40. O mesmo acontece com a cor da pele, conforme dito por Alexandre de Moraes e também pelo ministro Luís Roberto Barroso, presidente da STF.
“No caso da cor da pele, as medianas são semelhantes. (…) É possível constatar que os jovens, em especial os negros (pretos e pardos), analfabetos são considerados traficantes com quantidades bem menores de drogas do que os maiores de 30 anos, brancos e portadores de curso superior”, disse Alexandre de Moraes em seu voto, no ano passado.
Os dados reforçam reportagens como uma da Agência Pública, veiculada em 2019, que mostraram que as pessoas pretas e pardas são consideradas traficantes pela Justiça com porções menores de maconha do que pessoas brancas. Outro ponto revelado foi que em mais de 80% dos casos que tratam de pouca quantidade de droga as únicas testemunhas da ação penal foram os próprios policiais. “Não há dúvidas de que a definição de critérios objetivos para diferenciação entre usuário e traficante trará impactos positivos a uma Justiça Criminal que, em parcela não irrelevante de casos, parece adotar a raça e a classe social para diferenciá-los”, afirma o advogado criminal Tiago Souza Rocha, do escritório Bottini & Tamasauskas.
As lacunas deixadas pela Lei de Drogas provocaram um desequilíbrio na atuação das forças policiais que estão na ponta da repressão, de acordo com Salo de Carvalho, professor de Direito Penal da UFRJ e estudioso do tema. “Inclusive há estudos que demonstram que o Ministério Público aceita a imputação feita pelo flagrante e o Judiciário acolhe a denúncia”, diz o professor. “Esses critérios subjetivos estatisticamente demonstram que, na prática, uma pequena quantidade que um jovem pobre, em geral negro, porta é caracterizada como tráfico, e se for uma pessoa de classe média é configurado como uso. E essa discricionariedade é incompatível com a República e com a lei”, completa Pedro Serrano.
Afinal, o Supremo legislou?
Desde a promulgação da Lei de Drogas, em 2006, existe a discussão no Congresso Nacional sobre a diferenciação entre tráfico e posse para uso de drogas. Dezenas de milhares de prisões foram feitas com base na norma, e o tema permaneceu inerte no Legislativo, situação que se deteriorou com as composições mais recentes do Parlamento, bastante conservadoras. A demora e o desinteresse do Congresso, dizem especialistas consultados pela ConJur, desmontam a tese de que o Supremo está usurpando sua competência, como foi mencionado pelo ministro André Mendonça durante o julgamento. “O STF está cumprindo a sua função de zelar pela Constituição, que, aliás, foi promulgada pelo próprio Legislativo”, afirma Marcelo Semer.
“Fixar uma quantidade de presunção para o porte também não é nenhuma invasão. O legislador teve quase 50 anos para fixar um critério objetivo e não o fez; o que acontece é que os juízes fixam critérios pessoais do quanto caracterizaria o tráfico ou o porte. Em vários casos, os juízes têm de cobrir lacunas como essas. Para caracterizar o furto privilegiado, de pequeno valor, a jurisprudência concluiu que menos de um salário mínimo é pequeno valor”, diz o desembargador Marcelo Semer.
Salo de Carvalho defende que o Supremo fez apenas o controle de constitucionalidade: “Isso já deveria ter sido feito desde a Constituição de 1988, quanto ao antigo artigo 16 da Lei 6.368, de 1976. A doutrina, de forma substancial, já vinha, desde o final da década de 1980, afirmando que a criminalização do porte para consumo próprio não se compatibiliza com os princípios da intimidade e da vida privada, além da não incriminação da autolesão”.
“O Supremo está dentro do papel dele. Não tem sentido existir o STF se não for para defender os direitos fundamentais em uma situação como essa”, diz Pedro Serrano. “Quando eu pratico a conduta, tenho de ter condição de prever a reação do sistema penal. Sem que eu tenha claro qual quantidade de porte de maconha caracteriza tráfico, não tenho previsibilidade e fica ao cargo da polícia. É um poder incompatível com quem aplica a lei. O Supremo tem de estipular quantidade para que a cidadania saiba o que pode ou não fazer.”
Lenio Streck, porém, tem opinião distinta: “Embora possamos reconhecer as boas intenções e os bons méritos de uma decisão sobre o uso da maconha e suas repercussões, parece evidente que essa tarefa não é da Suprema Corte, ao menos nos moldes de construir tese jurídica como se fosse regra geral pro futuro. Mesmo que o Parlamento ‘não se ajude’ muito, disso não se tira que o Judiciário possa assumir o seu lugar. Judiciário cuida do passado; Legislativo, do futuro”.
O Legislativo, afirma o constitucionalista, não deixou lacuna ao não detalhar a diferenciação entre traficante e usuário. “Deixaria se o Judiciário tivesse determinado, por via de ação de inconstitucionalidade por omissão ou um apelo ao legislador (Appelentscheidung), e ele nada fizesse. No caso, foi uma decisão ativista, mesmo com, e enfatizo, os bons motivos que a ensejaram. Aliás, venho dizendo de há muito que precedentes não devem ser feitos para o futuro. Precedentes não nascem precedentes.”
(Fonte: Consultor Jurídico)