Assinada pelo então procurador-geral de Justiça, Eder Pontes da Silva, em 23 de outubro de 2013, a Representação de Inconstitucionalidade que serviu de base para o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarar a inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição do Estado do Espírito Santo que equiparavam a carreira de delegados de Polícia às carreiras jurídicas, como a Magistratura e o Ministério Público, e conferiam autonomia financeira e administrativa à Polícia Civil, é um importante documento e uma verdadeira aula sobre atos relativos às Constituições Federal e Estadual.
Hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Estado, Eder Pontes encaminhou a Representação para o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, porque o Ministério Público Estadual não pode entrar com ADI no STF – somente no Tribunal Estadual. No Supremo, a ADI começou a tramitar no dia 5 de maio de 2016 e foi julgada, em definitivo na sessão virtual de 21 de novembro de 2022, conforme o Blog do Elimar Côrtes informou.
No STF, a ADI dois pedidos de “Amicus Curiae” (Amigos da Corte), que tiveram interesses diferentes no julgamento: Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), que se manifestou pela procedência da ADI; e da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Civil (Adepol/Brasil), que queria que a lei fosse considerada constitucional.
Na Representação, o então chefe do Ministério Público Estadual, Eder Pontes explica que a Emenda à Constituição Estadual nº 95/2013, publicada em 26 de setembro de 2013, decorreu da Proposta de Emenda Constitucional nº 12/2013, de iniciativa do Governador do Estado do Espírito Santo, e acrescentou os §§3º, 4º, 5º e 6º ao artigo 128, da Constituição do Estado do Espírito Santo, passando a dispor o que segue. Esclarece que as Constituições dos Estados-membros, assim como suas reformas, decorrem da outorga que o poder constituinte originário, por meio do artigo 25 da Constituição da República, concedeu aos Estados para que se auto organizassem, desde que observados os princípios estabelecidos na Carta Magna.
“Diante disto, denota-se que o poder constituinte estadual decorre do Poder constituinte originário, tratando-se, portanto, do poder constituinte derivado decorrente. Diante do exposto, é possível constatar que a Carta Magna constitui parâmetro para o exercício do poder constituinte decorrente, cuja atuação limita-se pelos princípios traçados na Constituição da República”, ensina Eder Pontes. “Denota-se, portanto, que a emenda à Constituição Estadual ora em análise encontra limites na Constituição da República, razão pela qual deve ser analisada à luz das normas delineadas pelo poder constituinte originário”, completa.
Segundo a Representação, a inconstitucionalidade de uma norma, de acordo com os ensinamentos solidificados na doutrina pátria, pode ocorrer tanto pela violação substancial de preceitos da Lei Fundamental – inconstitucionalidade material ou nomoestática[1], quanto pela não observância de aspectos técnicos no devido processo legislativo do qual derivou sua formação – inconstitucionalidade formal, orgânica ou nomodinâmica.
Com efeito, pontua a Representação, um ato jurídico inconstitucional é aquele cujo conteúdo ou forma se contrapõe, de maneira expressa ou implícita, ao conteúdo do preceito constitucional. Por isso, pondera, “a Emenda à Constituição Estadual nº 95/2013 incorre em inconstitucionalidade material, na medida em que interfere na estrutura do sistema jurídico constitucionalmente delineado, sobretudo quando se constata que o §6º, acrescentado ao artigo 128 da Constituição Estadual, interfere diretamente no desenvolvimento regular das funções constitucionalmente atribuídas ao Ministério Público, por meio dos incisos I, VII e VIII do artigo 129, da Constituição da República”.
E conclui: “É flagrantemente inconstitucional a disposição do §6º, acrescentado ao artigo 128 da Constituição Estadual, que confere à autoridade policial livre convicção pelos atos de polícia judiciária”. Inicialmente, continua o documento, importa registrar que se consideram atos de polícia judiciária aqueles referentes à investigação, que visam apurar infrações penais, de modo a servir de base à pretensão punitiva do Estado formulada pelo Ministério Público.
E, de acordo com o doutrinador Uadi Lammêgo Bulos, “Polícia judiciária investiga e apura crimes fornecendo ao Ministério Público os elementos necessários à repressão das condutas criminosas”. Desta forma, salienta o MPES, o dispositivo questionado, na forma como foi redigido, atinge diretamente o poder requisitório e outras prerrogativas conferidas pela Constituição da República ao Ministério Público na condução do Inquérito Policial e de outro procedimento investigatório, ao conceder à autoridade policial a possibilidade de, amparado no §6º, artigo 128, da EC nº 95/2013, descumprir a ordem/requisição do Ministério Público, desde que o ato seja devidamente motivado com fundamento em sua “independência funcional”, de acordo com seu livre convencimento técnico jurídico.”
Ora, se o inquérito policial tem como destinatário final o Ministério Público, cabe somente a este decidir acerca da necessidade de diligências a serem obrigatoriamente cumpridas pela autoridade policial, haja vista que esta deverá fornecer ao parquet os elementos necessários à elucidação dos eventos criminosos, visando à instauração da persecução penal em juízo.
Portanto, de acordo com o ordenamento jurídico vigente, o inquérito policial é peça administrativa que tem como escopo apurar os fatos criminosos objeto da investigação, documentando as diligências em uma sequência lógica e cronológica, a fim de que sirva de subsídio ao Ministério Público, titular da ação penal, que a partir daí formará sua opinio delicti, podendo oferecer denúncia, propor arquivamento ou, se entender que os fatos não estão devidamente comprovados, nos termos do artigo 16, Código de Processo Penal, devolver os autos à autoridade policial para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia. Partindo-se desta inquestionável premissa, observa-se que o inquérito policial tem natureza unidirecional, muito bem definida por Paulo Rangel, que esclarece que: “Não cabe à autoridade policial emitir nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como, por exemplo, que o indiciado agiu em legítima defesa ou movido por violenta emoção ao cometer o homicídio. A autoridade policial não pode (e não deve) se imiscuir nas funções do Ministério Público, muito menos do juiz, pois sua função, no exercício das suas atribuições, é meramente investigatória.”
Exatamente por esta razão, a Presidência da República vetou o §3º, do artigo 2º, da Lei Federal nº 12.830/2013, que tratava sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia e assim dispunha: “§ 3º O delegado de polícia conduzirá a investigação criminal de acordo com seu livre convencimento técnico-jurídico, com isenção e imparcialidade.”
Seguem as razões do veto presidencial: “Da forma como o dispositivo foi redigido, a referência ao convencimento técnico-jurídico poderia sugerir um conflito com as atribuições investigativas de outras instituições, previstas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Desta forma, é preciso buscar uma solução redacional que assegure as prerrogativas funcionais dos delegados de polícias e a convivência harmoniosa entre as instituições responsáveis pela persecução penal”.
Nesse sentido, não há como vislumbrar que se tenha independência funcional na atuação da autoridade policial sem que isso interfira diretamente nas atribuições do Ministério Público enquanto titular da ação penal (artigo 129, incisos I e VIII da CR)[2]. Isto porque, qualquer juízo de valor emitido durante a fase inquisitorial pela autoridade policial com base em sua “livre convicção” importará em análise incumbida constitucionalmente ao Ministério Público, bem como afetará a imparcialidade necessária à peça inquisitorial.
Deste modo, o §6º, do artigo 128, da Constituição do Estado do Espírito Santo, inserido pela EC 95/2013, cria, em verdade, um estado policial, ao estabelecer poderes ilimitados à autoridade policial, sem se que institua qualquer controle, afetando diretamente prerrogativas que pela Constituição são concedidas ao Ministério Público, instituição essencial à função jurisdicional.
Referido artigo afronta a própria estrutura do sistema jurídico estabelecido constitucionalmente, em que cada instituição possui atribuições próprias e já delimitadas pela Constituição da República. Ademais, o dispositivo acima, ao estabelecer a “livre convicção” na condução da investigação criminal, impede o controle externo da autoridade policial, e deturpa a função da polícia judiciária, em flagrante violação ao disposto no artigo 129, inciso VII, da Constituição da República.