Circula no meio policial que, estimulados pela política armamentista do presidente Jair Bolsonaro (PL) e com a ascensão das milícias no Rio de Janeiro, grupos paramilitares começaram a se assanhar em Estados vizinhos, como o Espírito Santo. Inicialmente, de modo tímido, integrantes da extinta Scuderie Detetives Le Cocq, que foi oficialmente dissolvida pela Justiça Federal em 2005, criaram grupos de fachadas para se abrigar, instituindo, assim, o que eles chamam de “entidades filantrópicas sem fins lucrativos”. São organizações que tentam se expandir, mas que vêm tendo suas ações combatidas pelas forças policiais capixabas e pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo, que buscam impedir os criminosos de voltarem a ditar os rumos dentro dos Poderes em solo capixaba.
O nome da temida Le Cocq voltou a ocupar espaços na mídia capixaba neste segundo turno das eleições, com o ressurgimento de uma notícia publicada neste blog em setembro de 2018 dando conta de que o candidato ao governo do Estado pelo PL, o ex-deputado federal Carlos Manato, foi integrante da Scuderie. Manato, em 2018, também disputou o cargo de governador, vencido pelo atual chefe do Executivo Estadual, Renato Casagrande (PSB), no primeiro turno. Manato sempre confirmou ter sido integrante da Le Cocq, por pelo menos três anos, mas afirma ter saído da entidade quando viu “coisas estranhas” acontecendo e garante que desconhecia ações criminosas de pessoas ligadas à Scuderie.
Candidato à reeleição, Casagrande tem feito apelos a toda sociedade no sentido de se evitar que a Le Cocq e o crime organizado voltem a dominar os Poderes no Espírito Santo, como acontecia até 20 anos atrás. A Le Cocq comportou, entre os anos 70 e início deste século XXI, grupos de extermínio; assassinos de aluguel (crime de pistolagem); traficantes de drogas e de armas; assaltantes de banco e de cargas de caminhões; sequestradores; dentre outros criminosos. A Scuderie foi apontada pela Procuradoria Regional da República no Espírito Santo como o braço armado do crime organizado capixaba.
Praticou mais de 1.500 assassinatos, que transformaram o Espírito Santo no segundo Estado mais violento do Brasil. Num período de 18 anos, a Scuderie Le Cocq matou 30 políticos capixabas, além de lideranças comunitárias, religiosas – como pastores e padres – e empresários. Criada no final dos anos 60, teve sua extinção confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio/ES) no final de 2005.
Nas redes sociais, no entanto, o que se vê são supostas entidades filantrópicas, formadas geralmente por homens, que não se preocupam em esconder os verdadeiros motivos de sua existência: defesa das armas, oferecimento de trabalho de segurança privada, apoio à política de “costumes” do presidente Bolsonaro, etc.. Apresentam-se até com símbolos usados pela antiga Le Cocq. Todavia, graças ao trabalho das Polícias Civil e Militar e do Ministério Público Estadual, criminosos que migraram da Le Cocq para “entidades filantrópicas” estão sendo investigados, presos e condenados pela Justiça.
Um dos crimes cometidos pelo grupo que integra uma entidade filantrópica oriunda da extinta Le Cocq teve como vítima o vendedor mineiro Fernando Cesar Faria, 45 anos (foto). Ele foi assassinado no dia 23 de setembro de 2014, depois de ter sido atraído pela garota de programa Juliana Machado Sabino até um sítio localizado em Jabuticaba, Guarapari. Ao chegar ao local por volta das 19 horas, Fernando foi torturado e morto a tiros.
Depois, teve o corpo esquartejado e incendiado numa fogueira. Em seguida, os criminosos enterraram os restos mortais em outra região: “Escavamos vários locais dentro do sítio, mas não localizamos o que restou do corpo de Fernando”, relembra o chefe da Superintendência de Polícia Especializada, delegado José Lopes, que, à época do crime, era o titular da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP).
A Justiça capixaba considerou que Fernando foi assassinado, mesmo sem o encontro do corpo, e já julgou e condenou os demais réus no processo: o eletricista mineiro Antônio Hélio de Almeida Lana, conhecido como Coty, o ex-policial militar Edmilson Miranda, o ex-servidor público municipal de Boa Esperança Naumir Augusto, Ricardo Nascimento Trindade e Juliana, usada como “isca” para atrair Fernando.
Os processos que levaram os cinco réus à condenação informam que o eletricista Coty foi o mandante do assassinato. Ele e os outros três homens integravam uma organização conhecida como Associação dos Proprietários de Veículos Motorizados do Espírito Santo (Aprovem-ES), nome de fachada e que seria uma das ramificações da Le Cocq, para onde antigos ‘lecoquianos’ migraram. Coty, que era casado, descobriu que sua amante o teria traído com Fernando. Descobriu também que o vendedor manteve também relação sexual com sua filha. Coty morava em Resplendor (Minas), onde ocorreu a traição. Por isso, entrou em contato com amigos de Guarapari, ligados à Aprovem, e encomendou o assassinato de Fernando, que estava sempre na cidade capixaba como representante de uma empresa que fabrica lajes pré-moldadas.
Conforme consta nos autos, o que irritou Coty foi o fato de Fernando ter espalhado fotos pela cidade de Resplendor de seu relacionamento com a amante do eletricista. Entretanto, há uma outra versão para o assassinato, que acabou não vingando oficialmente: Fernando teria sido vítima de latrocínio (roubo com morte) por parte do grupo da Aprovem. É que, meses antes de ser assassinado, ele retornou dos Estados Unidos com uma certa quantidade de dólares, que teriam sido roubados pelos assassinos.
A prisão dos assassinos de Fernando, realizada pela DHPP e sob o comando do delegado José Lopes, resultou, ainda, em cumprimento de mandado de busca e apreensão na sede da organização Aprovem,localizada em um edifício na Rua General Osório, em Vitória. Nas buscas, investigadores encontraram farto material indicando a existência de vínculo da Aprovem com a extinta Le Cocq, destacando-se a apreensão de mais de 300 fichas cadastrais, com nomes de ex-membros da organização criminosa, bem como chaveiros e outros artefatos com a marca da Scuderie. Os material apreendido foi entregue ao Ministério Público do Estado do Espírito Santo, que iniciou uma investigação sigilosa sobre o caso.
No dia 13 de maio de 2022, uma operação realizada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Estadual e pela Diretoria de Inteligência da Polícia Militar (Dint) prendeu o comerciante Glaydson Alvarenga Soares, o Pajé, numa ação que desvendou a atuação de um grupo de extermínio, cujos integrantes teriam migrado para uma entidade filantrópica oriunda também da Le Cocq, identificada como Liga da Segurança. Além de Pajé, foram presos os policiais militares Ronniery Vieira Peruggia, José Moreno Valle da Silva, Josemar Fonseca Lima e Welquerson Cunha de Moraes, e Walace Luiz dos Santos Souza, que não tem uma profissão definida.
A Liga da Segurança se passa como “entidade filantrópica”, tem sede em Vila Velha e da qual fazem parte policiais militares e civis, inspetores penitenciários, seguranças particulares, comerciantes e até políticos. Pajé, Walace e os quatro PMs – todos estão presos – já foram denunciados pelo Ministério Público Estadual pelo assassinato do suspeito de tráfico Felypy Antônio Alves Chaves, 18 anos, no dia 21 de fevereiro deste ano, no bairro Itararé, em Vitória.
De acordo com a denúncia do MPES, documentos mostram que, no dia da morte de Felypy, câmeras de segurança da Prefeitura de Vitória flagraram quatro homens em um carro, modelo Honda Civic, e outros dois em uma moto. O garupa da motocicleta usava um colete à prova de balas da Polícia Militar. Segundo a denúncia, a placa do carro usado no dia do crime era fria. O dono do veículo foi procurado pelos investigadores e informou que vendeu o automóvel, em setembro de 2020, para o policial Ronniery.
Ainda segundo as investigações, o Gaeco concluiu que o piloto da moto bloqueou a rua no dia da execução de o crime. Ele estaria acompanhado de Glaydson, apontado pelo Gaeco como o possível carona no momento do homicídio de Felypy Chaves.
A força da Liga da Segurança no meio político é tão forte que o comerciante Pajé, que foi pelo Gaeco e pela PM portando uma pistola ilegal, farta munição, calça camuflada, algemas e até peruca, já recebeu homenagem da Assembleia Legislativa. A homenagem foi no dia 6 de abril de 2022. Proposta pelo deputado estadual Lucínio Castelo de Assumção, conhecido como Capitão Assumção, a sessão foi feita para marcar os 187 anos da Polícia Militar. Assumção é aliados de Carlos Manato e um de seus cabos eleitorais.