Os anos 80, 90 e parte dos anos 2000 projetaram o Espírito Santo no cenário nacional como um dos Estados mais violentos do País. Os índices de assassinato eram altíssimos. Os índices de impunidade eram maiores ainda. Eram os tempos em que quem estava no poder tinha o “direito” de, literalmente, rasgar Inquéritos Policiais, impedindo, assim, que a conclusão das investigações chegasse à Justiça.
Um dos casos emblemáticos daquele período sangrento e surreal teve como vítima o servidor público municipal Roberto da Silva Leal, conhecido como Beto Guará. Ele foi brutalmente assassinado na saída de uma antiga boate, localizada entre as praias de Peracanga e Bacutia, em Guarapari, em agosto de 1997. Foi espancado até a morte por um grupo de quatro jovens, todos de classe média alta da cidade e praticantes de jiu-jitsu. Até hoje o silêncio em torno do crime prevalece, embora a Polícia Civil, à época, tenha encontrado um “culpado”, que assinou a confissão, negou depois a autoria e, mais tarde, foi também assassinado.
Beto Guará foi mais uma vítima de crime de homofobia. Ele era querido pelos amigos e colegas. Era respeitado pela sociedade local e um profissional competente na Prefeitura Municipal de Guarapari.
Na véspera de sua morte, Beto saiu de casa para se divertir com amigos e amigas numa boate. Dançou, bebeu e fez amizades. Num determinado momento, já na madrugada do dia seguinte, ele saiu da boate, que ficava na principal avenida da Bacutia, para ir com os outros quatro jovens, que também eram seus conhecidos – afinal, os rapazes são filhos de famílias tradicionais da política e do empresariado local –, para fumar na areia da praia.
Junto com eles saiu outro rapaz. Mas este preferiu ficar aguardando o grupo na porta da boate, pois sabia que Beto Guará e os demais jovens tinham saído para fumar um cigarro de maconha.
De repente, os quatro rapazes e Beto Guará sumiram da vista desse outro jovem. Passados alguns minutos, os quatro retornaram para a boate, sem a presença de Beto Guará. O rapaz que ficou na rua da casa de shows aguardando pelo retorno do grupo, curioso, saiu no escuro e foi até o local onde a água do mar terminava na areia. E lá ele se deparou com Beto Guará todo ensanguentado, ainda agonizando. O rapaz pediu socorro, mas Beto acabou morrendo ali mesmo, com marcas de agressões por todo o corpo.
Dias depois, essa testemunha relatou a amigos e aos familiares de Beto Guará que o servidor público havia sido atraído pelos quatro jovens lutadores de jiu-jitsu até a praia, com o intuito de fumar. Mas acabou espancado e morto.
“Esses quatro jovens, que agora são homens adultos e continuam morando em Guarapari, tinham repulsa a homossexuais. Fingiam ser amigos do Beto Guará. Esses sujeitos eram truculentos, tinham o costume de agredir as pessoas nas ruas. Como eram filhinhos de papai, nunca pagaram por seus crimes”, diz uma amiga de Beto Guará, que, com medo de represália, prefere o anonimato.
Dois dos supostos assassinos de Beto Guará são irmãos e, junto com os outros dois, exercem suas atividades profissionais normalmente, inclusive, as atividades políticas. Um deles, filho de família rica, foi embora para os Estados Unidos logo após a morte de Beto, como forma de se proteger e proteger a seus pais. Viagem e estadia nos EUA bancadas pela mãe.
Coube à mãe e ao padrasto dos dois irmãos encontrar o “assassino”. Dias depois do crime, a própria mãe foi a um lugar conhecido como “Beco da Fome”, no centro de Guarapari, onde os dois filhos estavam com os amigos que haviam também participado da agressão a Beto Guará, e disse que o caso estava resolvido.
Levado para o antigo Departamento de Polícia Judiciária de Guarapari, o rapaz, identificado como Paulo César de Oliveira, “confessou o crime”. Alegou que matou Beto Guará por que tinha sido “cantado” pelo servidor público. E afirmou que era morador de rua:
“Eu não tinha para onde ir. Estava dormindo na areia da praia. De repente, o homem chegou e tentou me agarrar, dizendo que queria namorar comigo. Eu não gosto desse tipo de coisas e reagi. Mas minha intenção era só me defender. Eu não queria matar ninguém”, contou o “assassino” no DPJ de Guarapari.
Claro, a Autoridade Policial acreditou na versão dele, apesar de, naquele momento, familiares, colegas e amigos de Beto Guará estarem indo às ruas de Guarapari, quase que diariamente, para denunciar os verdadeiros assassinos e exigir a prisão dos jovens criminosos, conforme noticiaram os jornais da época.
Mesmo assim, a Autoridade Policial concluiu o Inquérito Policial. Em 4 de abril de 2000, a Polícia Civil enviou o IP à 1ª Vara Criminal de Guarapari, que devolveu os autos à Autoridade Policial um mês depois. Em 25 de novembro de 2014, a mesma unidade Judiciária arquivou o processo. Desta vez, informando que o “indiciado” pela morte de Beto Guará não havia sido “identificado”. Costa que o primeiro suspeito já teria sido assassinado.
Na ocasião do assassinato, o advogado criminalista Clóvis Lisboa, já falecido, tentou ajudar a família de Beto Guará, de quem era amigo. Lisboa estava sempre em contato com a Editoria de Polícia do jornal A Tribuna, para quem repassava informações a respeito do que a família e amigos diziam sobre os suspeitos do assassinato.
O advogado, no entanto, encontrava dificuldades em ter acesso aos autos do Inquérito Policial por imposição da Polícia Civil na época e por pressão de políticos influentes do Estado que eram amigos dos pais dos suspeitos.
Clóvis Lisboa, que antes de se tornar advogado foi escrivão de Polícia Civil, fez uma minuciosa investigação paralela. Ele conseguiu a qualificação completa dos suspeitos, mas as autoridades ignoraram suas informações. O advogado acabou deixando o caso, diante do medo da família em continuar lutando por justiça.
Portanto, 24 anos estão se passando. O caso foi prescrito na Justiça – quando o Estado perde a chance de um crime. Porém, vai uma sugestão: a Assembleia Legislativa poderia instalar uma Comissão Parlamentar de Inquéritos para apurar crimes de homofobia no Espírito Santo. A CPI pode até não chegar aos assassinos de Beto Guará, mas vai ajudar a sociedade no combate ao preconceito de ódio contra as minorias.