Leandro de Almeida Coutinho é mesmo um sujeito que adora desafiar o Sistema de Justiça e a Polícia. Em menos de 40 dias, ele foi preso três vezes em flagrante e autuado por tráfico de drogas pela Autoridade Policial. Nesse mesmo período, apesar de ter sido autuado três vezes em flagrante pela acusação de tráfico de drogas – sendo, portanto, contumaz e reincidente na prática de crime –, ele foi solto em Audiências de Custódia.
Foi colocado em liberdade sempre com a mesma fundamentação jurídica: “Não oferece risco à ordem econômica, à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, considerando que possui residência fixa”.
No mesmo período, Leandro sequer teve tempo de cumprir as medidas cautelares aplicadas pelo Juízo nas Audiências de Custódia. A primeira da série de prisões ocorreu em 4 de julho de 2019; a segunda, no dia 14 de julho; e, a terceira, em 12 de agosto.
As três prisões ocorreram no mesmo local: praça principal do Ibes, um dos bairros mais movimentados de Vila Velha. Em duas ocasiões, ele foi preso pela Polícia Militar; na outra, pela Guarda Municipal de Vila Velha.
De acordo com fontes do Judiciário, os Juízes das Audiências de Custódia estariam cumprindo uma determinação extraoficial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, em recente reunião com o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, teria orientado os magistrados a manterem em prisão somente os suspeitos de tráfico presos a partir de determinada quantidade de drogas apreendidas.
A preocupação do CNJ seria com a superlotação dos presídios capixabas, que hoje está com quase 10 mil presos acima de sua capacidade. A orientação do CNJ seria, basicamentem para todo o País.
No caso de Leandro, ele foi preso nas três vezes com quantidades que não passavam de 40 pinos de cocaína. Para autoridades policiais, entretanto, essa quantidade equivale a venda ilegal de entorpecentes, o que configura o tráfico de drogas. Nas três vezes em que foi autuado em flagrante, Leandro confessou em depoimento à Polícia Civil que estava vendendo os pinos para usuários de drogas.
A primeira Audiência de Custódia de Leandro foi em 4 de julho de 2019, conforme ata dos autos de número 0015703-03.2019.8.08.0035. Nela, o Ministério Público, em síntese, manifestou-se no sentido de que o Auto de Prisão em Flagrante “está regular e não possui vícios, requerendo a concessão de liberdade provisória com aplicação de medidas cautelares e fiança”. A defesa foi feita pela Defensoria Pública do Estado, que requereu a liberdade provisória com aplicação de medidas cautelares, com dispensa da fiança, “diante da hipossuficiência do autuado”.
O Juízo homologou a prisão em flagrante e delito. Na análise, registra que, conforme consta no Auto de Prisão em Flagrante Delito (APFD), por determinação da Central da Guarda Municipal, “guardas prosseguiram a local onde o autuado estava em atitude suspeita, se abaixando no campo de areia e pegando objetos que, pela câmera, não era possível identificar. No local, estava o autuado com as características informadas e, em abordagem, foram encontrados dois pinos de cocaína no bolso da bermuda do autuado. O autuado confessou que estava vendendo entorpecentes e indicou o local onde estava o restante dos entorpecentes, sendo encontrados 28 pinos de cocaína. Em pesquisas realizadas nos sistemas judiciais foram encontrados registros criminais do indiciado, sendo 02 termos circunstanciados”.
Porém, na decisão, a magistrada entendeu que, “considerando todos esses elementos verifico que estão ausentes no caso concreto os requisitos que autorizariam a decretação da prisão preventiva do autuado, elencados no art. 312, do CPP. Assim, os elementos do APFD e aqueles colhidos por esta Magistrada através do contato pessoal oportunizado pela audiência de custódia, indicam que a sua liberdade não oferece risco à ordem econômica, à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, considerando que possui residência fixa”.
E ainda “verifico, assim, a conveniência de substituir a prisão preventiva do autuado pelas seguintes medidas cautelares, além das condições dos arts. 327 e 328 do CPP, quais sejam: a) proibição de sair da Grande Vitória sem prévia autorização do Juiz natural da causa; b) comparecimento a todos os atos do processo, devendo manter endereço atualizado; c) recolhimento domiciliar de 20h às 6h; d) comparecer em até 5 (cinco) dias úteis ao juízo ao qual o presente APF será distribuído, com cópia de comprovante de residência, RG, CPF, CTPS e título de eleitor. Caso o autuado descumpra qualquer condição imposta na presente decisão poderá ter decretada sua prisão preventiva”.
A segunda Audiência de Custódia é relativa ao procedimento nº 0016804-75.2019.8.08.0035, tendo sido realizada em 15 de julho. Nesta audiência, o Ministério Público requereu a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, para garantia da ordem pública.
A defesa, em síntese, requereu a liberdade provisória, bem como requereu a filmagem do local onde o autuado estava no momento da abordagem.
Na decisão, a mesma magistrada da audiência anterior, informa na ata que, “conforme consta no APFD, em patrulhamento, em local de intenso tráfico de drogas, foi avistado o autuado dispensando algum objeto e, ao notar a presença policial, tentou se evadir. Em abordagem, foram arrecadadas 29 pinos de cocaína. Em pesquisas realizadas nos sistemas judiciais foram encontrados registros criminais do indiciado, sendo 01 ação penal, 02 termos circunstanciados, registro no Infopen e passou por este plantão em 04/07/2019 por imputação ao mesmo crime do presente APF, sendo concedida liberdade provisória sem fiança”.
Mais uma vez, a magistrada entendeu que “os elementos do APFD e aqueles colhidos por esta Magistrada através do contato pessoal oportunizado pela audiência de custódia, indicam que a sua (de Leandro de Almeida Coutinho) liberdade não oferece risco à ordem econômica, à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, considerando que possui residência fixa e ocupação lícita”.
A terceira Audiência de Custódia de Leandro foi no dia 13 de agosto de 2019 e trata do procedimento 0019678-33.2019.8.08.0035. Mais uma vez, o Ministério Público pediu a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Porém, destacou os registros criminais de Leandro, bem como que sejam oficiados aos juízos onde o autuado responde ações penais, comunicando sua prisão e cometimento de novo delito.
A defesa, no entanto, requereu a liberdade provisória, com ou sem aplicação de medidas cautelares, com dispensa da fiança, diante da hipossuficiência do autuado, “destacando que se trata de uso de drogas, que a gravidade em abstrato do delito e eventuais ações penais em tramitação, por si só, não são motivos ensejadores para a decretação da prisão preventiva, tendo em vista que violaria a presunção de inocência e que o autuado trabalha e possui residência fixa”.
Conforme narra a ata da mesma Juíza das duas audiências anteriores, “em patrulhamento, em local de intenso tráfico de drogas (praça principal do Ibes), policiais avistaram o autuado (Leandro) dispensando um maço de cigarro. Em abordagem, foi constatado que no maço dispensado havia 10 pinos de cocaína e R$10,00. Em buscas nas imediações, foram encontrados mais 20 pinos de cocaína. Em pesquisas realizadas nos sistemas judiciais foram encontrados registros criminais do indiciado, sendo 02 termos circunstanciados, 02 ações penais, registro no Infopen, passou por este plantão em 04/07/2019 e 15/07/2019 e possui registros de atos infracionais”.
Todavia, pondera a magistrada na ata, “considerando todos esses elementos verifico que estão ausentes no caso concreto os requisitos que autorizariam a decretação da prisão preventiva do autuado, elencados no art. 312, do CPP. Assim, os elementos do APFD e aqueles colhidos por esta Magistrada através do contato pessoal oportunizado pela audiência de custódia, indicam que a sua liberdade não oferece risco à ordem econômica, à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal, considerando que possui residência fixa e ocupação lícita. Verifico, assim, a conveniência de substituir a prisão preventiva do autuado pelas seguintes medidas cautelares”.
Audiência de Custódia é benéfica, mas anomalias geram questionamentos
A Audiência de Custódia é um ato do Direito Processual Penal em que um acusado por um crime, preso em flagrante, tem direito a ser ouvido por um juiz, de forma a que este avalie eventuais ilegalidades em sua prisão. Este instrumento é previsto internacionalmente pelo Pacto de San José da Costa Rica.
Durante a audiência, o Juízo analisa a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz pode avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.
No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) implantou a realização de Audiências de Custódia a partir de 2015 para todos os presos, o que vem sendo cumprido pelos Tribunais Estaduais e Federais. O Espírito Santo foi um dos primeiros Estados a aderir ao programa do CNJ, que, aliás, sempre foi muito bem aplicado em solo capixaba.
Ainda que o Brasil seja signatário do Pacto de San José, não existe ainda uma lei nacional que garanta a existência de tais audiências. Porém, Proposta de Emenda Constitucional nesse sentido tramita no Congresso Nacional.
A Audiência de Custódia é uma realidade que tem ajudado o Sistema de Justiça Criminal Brasileiro, tornando mais racional a entrada de presos no sistema prisional. Porém, há anomalias em suas aplicações que acabam provocando questionamentos por parte da sociedade, algo que os parlamentares terão que resolver quando forem votar a PEC.
Para a sociedade, o problema não é simplesmente soltar acusados, porque existem casos que é possível que o detido possa responder ao processo em liberdade. O problema é que um detido, por três vezes (caso do Leandro de Almeida Coutinho), em 40 dias, pelo mesmo fato e no mesmo local seja colocado em liberdade. A sociedade entende isso como uma afronta e pode acabar desacreditando no Sistema de Justiça.
Ao tomar uma decisão dessas – de soltar o mesmo acusado três vezes, pela prática do mesmo crime e no mesmo local –, a autoridade judiciária pode e deve se colocar no lugar dos moradores e comerciantes da região onde reside o sujeito.
As pessoas pensam que não adianta colaborar com a Polícia e delatar os crimes desses marginais, porque a Polícia prende e a Justiça solta. E, assim, os bandidos acabam voltando e ainda colocando em risco a vida dos moradores. Por isso, a maioria dos moradores se recusa a testemunhar na Polícia e em Juízo, principalmente, contra traficantes.