Em artigo produzido para o Blog do Elimar Côrtes, o professor Bruno Mendes apresenta um Raio X do sistema prisional capixaba. Ele escreveu o artigo depois que este blog publicou reportagem a respeito do relatório divulgado pelo Núcleo de Execução Penal (NEPE) da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES), que aponta uma série de irregularidades nos presídios capixabas, principalmente os crimes de tortura.
Bruno Mendes, que é de Brasília, trabalhou como inspetor penitenciário no Espírito Santo de 2014 a 2016. Foi aprovado no concurso público de 2013 e se tornou, assim, servidor público estadual efetivo. No entanto, por não aguentar conviver com o que chama de irregularidades, pediu exoneração do cargo em dezembro de 2016.
“Já exerci a função de professor no Curso de Formação Profissional de Agentes Penitenciários no Piauí. Recentemente, fui novamente aprovado em outro concurso público, o segundo desde que pedi exoneração, e continuo estudando para outros cargos”, diz Bruno Mendes, que é pós-graduado em Segurança Pública, pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal e estuda o sistema penitenciário brasileiro antes mesmo de ter se tornado inspetor no Espírito Santo.
O artigo
“Senhor, agente. Alguns dos seus colegas de trabalho aqui são piores do que nós”
O sistema penitenciário capixaba, apesar de ser modelo em termos de infraestrutura, material bélico, viaturas, está entre os piores, senão o pior, em material HUMANO. O próprio Estado contrata pessoas em caráter de urgência para exercerem a mesma atividade que exerce o servidor público e como ex-inspetor penitenciário, afirmo: boa parte deles se transformam em bandidos dentro do sistema, alugam e vendem celulares para presos, drogas e sabe-se lá se não entregam armas para os apenados. A culpa disso tudo é do próprio Estado.
Um dos maiores problemas do sistema penitenciário, hoje, está relacionado às contratações por Designações Temporárias (DTs). Delas decorrem diversos outros problemas e, mesmo assim, o Estado do Espírito Santo continua contratando, sem concurso público, pessoas sem preparo intelectual e emocional nenhum para exercer a atividade de inspetor penitenciário, a mesma que exerce o inspetor penitenciário de carreira, aprovado em concurso público, que passa por seis etapas até a nomeação e que tem um bom curso de formação profissional.
Outro problema grave se dá pelo despreparo dos servidores nomeados a cargos de chefia nas unidades prisionais do Estado, principalmente, para os cargos de direção e de chefe de equipe, este último, na maioria das vezes, ocupado por funcionários contratados sem concurso público, sem preparo e sem uma formação intelectual adequada para comandar uma equipe de servidores de plantão.
Em diversos Estados da federação já é exigida formação em nível superior para o exercício do cargo de agente penitenciário e o Espírito Santo, numa atitude retrógada, contrata funcionários sem concurso público, quase que semestralmente, numa tentativa completamente equivocada de suprir a falta de servidores públicos dentro das unidades prisionais e com isso tentar minimizar os problemas do sistema penitenciário. Porém, o que acontece é piorar. Para comprovar esse argumento é só ter acesso à listagem dos funcionários contratados demitidos (com os respectivos motivos das demissões) do ano de 2015 até os dias atuais.
Até o ano de 2016, e acredito que atualmente também, alguns diretores de unidade prisional não preenchiam os requisitos exigidos para o exercício do cargo, expressos de forma taxativa e cumulativa na Lei de Execução Penal (LEP), em seu artigo 75, quais sejam: ser portador de diploma de nível superior de Direito, ou Psicologia, ou Ciências Sociais, ou Pedagogia, ou Serviços Sociais; possuir experiência administrativa na área; ter idoneidade moral e reconhecida aptidão para o desempenho da função. Fato este que questionei junto à Secretaria de Estado da Justiça na época e não obtive resposta.
Alguns servidores de carreira e comissionados ocupam cargos de chefia mesmo após terem sido condenados pelo crime de tortura ou de porte ilegal de arma de fogo, mesmo tendo efeito automático a perda do cargo no crime de tortura. Pelo jeito, na prática, somente no Estado do Espírito Santo a lei não se aplica.
Durante os dois anos e meio em que estive no exercício do cargo de inspetor penitenciário presenciei inúmeras torturas psicológicas e físicas contra presos, dentro das unidades prisionais em que trabalhei: Presídio Estadual de Vila Velha (PEVV III), em Xuri, e no Centro de Detenção Provisória (CDPV II), em Viana, cometidas não só por funcionários contratados temporariamente (DTs) como também por alguns diretores de unidade. Inclusive, cheguei a denunciar alguns casos, mas sem ter resposta por parte da Sejus.
Desde o ano de 2014, quando entrei em exercício, via um grande número de defensores e apoiadores de servidores e funcionários contratados que cometiam crimes de abuso de autoridade e tortura, pois, para alguns, dentro do sistema penitenciário esses são os chamados operacionais. E, CERTAMENTE, O FATO DE USAREM ATÉ ESPADAS NINJAS COMO INSTRUMENTO DE TRABALHO VENHA DESSA PROTEÇÃO IMORAL E ILEGAL.
Quando trabalhei no PEVV III, por exemplo, dois funcionários contratados foram gravados pelas câmeras de vigilâncias da unidade, próximos a um aparelho de telefone celular que teria sido deixado em cima de um bebedouro para um determinado preso e nada aconteceu, continuaram trabalhando normalmente como se nada tivesse acontecido. Outro funcionário contratado temporariamente trabalhava somente na muralha externa porque não podia entrar mais na unidade, estava proibido pela direção pelo fato de ser suspeito de vender drogas para presos (parece piada, mas é a realidade).
Presenciei também uma ocasião em que até me retirei na cela do preso, pois o diretor, sem motivo aparente, espancava um determinado preso que criava problemas para ele. Após a saída da cela, nos corredores, encontrei um Juiz da Execução Penal fazendo uma visita no presídio. Este mesmo juiz chegou a perguntar ao diretor se havia necessidade de dez agentes para falar com o preso dentro da cela.
Outro caso foi quando fui trabalhar no Centro de Detenção Provisória de Viana e, ao deixar meus óculos em cima da mesa, coberta por câmeras de segurança, fui furtado por um funcionário contratado que exercia a função de inspetor penitenciário e que, para a infelicidade do próprio Estado e da sociedade capixaba, aguardava a nomeação para o cargo de Investigador de Polícia Civil no Estado do Espírito Santo em um concurso que havia passado há 19 anos atrás e que havia ganhado na justiça o direito de nomeação.
Um fato que me surpreende muito é um diretor de unidade qualquer do Estado ou um representante de Sindicato da categoria afirmar que não existe tortura dentro do sistema penitenciário. Existe sim! E MUITA. E em 90% dos casos ou mais, esse tipo de crime é cometido por funcionários contratados ou pelos próprios diretores de unidade, como, infelizmente, tive que presenciar algumas vezes e que é possível comprovar através de pesquisas na internet e pelo número do processo a que respondem os autores, que são ou foram diretores de unidade prisional.
Em minha opinião, o principal culpado disso é o próprio Estado, que ao fazer vista grossa, mesmo recebendo constantes denúncias, faz não só o preso de vítima, mas a família do preso e a sociedade e principalmente o servidor que é honesto e sofre por exercer esse cargo no estado. O servidor é quase que obrigado a conviver com essa situação, eu mesmo fiz várias denúncias na época, dando nomes, matrículas, local onde trabalhavam os servidores e de nada adiantou. Um desses diretores que denunciei chegou até a fazer uma reunião e mostrar o e-mail que eu havia enviado (dessa vez anonimamente) para a Corregedoria e para o Ministério Público sobre uma denúncia de tortura. Na ocasião ele ainda teve a coragem de falar na frente de vários servidores que o denunciante não sabia o que era tortura (com certeza é ele quem precisa estudar mais sobre as leis).
Logo no início comecei a achar estranho o motivo de vários colegas servidores e eu irmos para o trabalho já tensos, estressados e muitas vezes com a autoestima baixa pelas mazelas sofridas e o baixíssimo salário e alguns (não todos) funcionários contratados irem sorridentes, alegres, brincando com todo mundo. Depois de certo tempo é que fui perceber que para o funcionário desonesto, corrupto, o sistema penitenciário era um “paraíso”, lá eles poderiam cometer todo e qualquer tipo de crime e ganhar bastante dinheiro de forma ilegal sem serem punidos.
Certo dia escutei de um preso às oito horas da manhã, logo ao iniciar meu plantão, no Centro de Detenção Provisória (CDPV II), em Viana, a seguinte frase: “Senhor, agente. Alguns dos seus colegas de trabalho aqui são piores do que nós”.
Sabendo que a frase dita pelo preso era verdadeira, peguei as minhas coisas, fui para casa e no outro dia pedi exoneração. Aquele foi o meu último dia como inspetor penitenciário.