Neste sábado, 3 de fevereiro de 2018, completa-se um ano que um pequeno grupo de senhoras, crianças e jovens ocupou a entrada da sede da 2ª Companhia do 6º Batalhão, no bairro Feu Rosa, na Serra. Era o início de um protesto, até então silencioso, contra os baixos salários pagos aos policiais militares capixabas.
Naquela manhã de 2017, os policiais estavam há três anos sem sequer receber a recomposição da inflação. Neste 3 de fevereiro de 2018, já vão para quatro anos sem o benefício exigido pelas Constituições Federal e Estadual.
Naquele dia 3 de fevereiro de 2017, o soldado da PM do Espírito Santo recebia o pior salário do País, dentre os 26 Estados e o Distrito Federal: a remuneração era de apenas R$ 2.646,112. O mesmo valor continua sendo pago neste 3 de fevereiro de 2018.
“Estamos aqui reivindicando pacificamente reajuste salarial para os militares estaduais. O governador (Paulo Hartung) desconhece os problemas que enfrentamos em casa, como a falta de alimentos, sem dinheiro para comprar remédios e outros gastos com nossos filhos”, disse a esposa de um policial militar, em contato com o Blog do Elimar Côrtes naquela manhã de 3 de fevereiro de 2017.
O que seria um movimento pacífico de apenas um dia se transformou em infernais 22 dias, quando o Espírito Santo registrou mais de 200 assassinatos, incêndios a ônibus, saques a comércio e roubos em plena luz do dia – muitos desses delitos continuam até hoje sem a ação e ou reação das forças policiais, que mergulharam num longo período inerte.
Como forma de retaliação, o comandante-geral da PM, coronel Nylton Ribeiro Rodrigues Filho, seguindo ordem do governador Paulo Hartung, acabou com o Batalhão de Missões Especiais (BME) e a Rota Tática Motorizada (Rotam), duas unidades de elite da PM. A foto ao lado mostra um grupo de senhoras protestando na porta de entrada do extinto quartel da Rotam.
O curioso é que a Rotam foi extinta dias depois de ter inaugurado seu quartel-general, em Jardim América, Cariacica, num exemplo claro de que sua extinção só foi mesmo definida após o aquartelamento de fevereiro de 2017. Acredita o governo que no BME e na Rotam se localizaram os maiores focos da “greve”. Justamente as duas unidades onde as praças sempre foram mais leais aos seus oficiais e sempre fizeram, como de olhos fechados, o que seus superiores mandavam.
Movimento encontrou facilidades internas e contou com a falta de sabedoria do governo: até padres e pastores ajudaram familiares de policiais
Logo na manhã de 4 de fevereiro de 2017, o movimento iniciado em Feu Rosa se espalhou para todo o Estado, talvez por ter encontrado facilidades. Alguns dos motivos foi a falta de sabedoria do governador em exercício naquele dia, César Colgnago – no mesmo dia 3 de fevereiro de 2017 o governador Paulo Hartung foi se internar no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, para a retirada, segundo ele, de um tumor na barriga –, que deveria ter levado uma palavra de esperança para a tropa, e o descaso do secretário de Estado da Segurança Pública e Defesa Social, o pernambucano André Garcia, que tratou com desdém o movimento de Feu Rosa, afirmando à imprensa que tudo “estava normal”.
Implicitamente, alguns comandantes de unidades acabaram se “rendendo” às praças e seus familiares, permitindo, assim, que o jogo perigoso se estendesse. Ressalte-se que nos primeiros dias da crise o então comandante-geral da PM, coronel Laércio Oliveira, encontrava-se em evento social em Minas Gerais. Três dias depois, Laércio foi exonerado do cargo por Colgnago e substituído pelo coronel Nylton Ribeiro Rodrigues Filho.
Diga-se de passagem que esposas de alguns oficiais também foram para as portas dos quartéis nos três primeiros dias do movimento, mas foram persuadidas pelos maridos a abandonar a causa quando tropas do Exército foram para as ruas e para as entradas das unidades garantir a segurança da população.
A informação de que esposas de alguns oficiais teriam ido para as portas de quartéis consta em documentos anexados a alguns Inquéritos Policiais Militares (IPMs) instaurados em desfavor de praças e aos quais o Blog do Elimar Côrtes teve acesso. Esses mesmos IPMs estão em fase de conclusão.
Ressalta-se, no entanto, que somente esposas de praças foram investigadas pelo próprio Alto Comando da PM e estão agora sendo processadas Justiça Comum. As família das praças permaneceram no bloqueio às unidades até o final do movimento, que durou 22 dias.
Em certo dia do movimento, o agora comandante do Policiamento Ostensivo Metropolitano, coronel Alexandre Ofranti Ramalho, o oficial mais leal ao comandante Nylton, passou a pé pela porta de entrada de um quartel da Grande Vitória e, ao olhar para o lado, identificou a esposa de um oficial da reserva. Ramalho virou-se para a senhora e disse: “Até você está nos traindo?”
Há quem diga, até mesmo dentro do governo do Estado, que o movimento de fevereiro de 2017 alcançou tanta magnitude por conta dos recrutas – os mais jovens soldados. Essas mesmas autoridades do governo, no entanto, afirmam que quem acredita que os recrutas “foram responsáveis sozinhos pelo caos é inocente demais”. Dizem que, se o mais antigo der o primeiro tiro, logo depois vem uma rajada. Logo, os recrutas teriam sido encorajados por alguns de seus superiores.
Em alguns momentos, os familiares dos policiais ganharam apoio de padres e pastores de bairros da periferia da Grande Vitória, que cederam tendas para as pessoas que passavam o dia e a noite na porta das unidades, além de alimentação e água.
Com o fim do movimento, chegaram as punições sem que a tropa fosse atendida
De todo modo, o movimento reivindicava melhoria salarial, abertura de diálogo com o governo para se discutir o reajuste de salário, além de melhoria nas condições de trabalho de praças e oficiais. Nada disso foi conquistado. O governo Hartung se recusava a ouvir as entidades de classe e até mesmo se omitiu ao ser alertado pelo Comando Geral da corporação meses antes da “greve” sobre o clima de insatisfação na caserna.
Por isso, iniciou-se, assim, a maior crise já vivida pela segurança pública do Espírito Santo, que, vale frisar, vem perdurando até os dias atuais. O aquartelamento teve adesão geral e total em todas as unidades da PM.
Iniciou-se, após o rendimento da tropa, a fase das investigações sumárias. Centenas de praças passaram a responder a Inquérito Policial Militar e a Processo Disciplinar Administrativo. Dezenas deles se transformaram em réus nas Justiças Militar e Comum.
Um oficial foi considerado culpado por um Conselho de Justificação instaurado a mando do governador Paulo Hartung e dois ainda respondem a um conselho: podem ser expulsos a qualquer momento.
Policiais são obrigados a trabalhar com munição vencida
Neste mesmo período o governo não concedeu nada de reajuste salarial e a falta de estrutura aumentou. A principal delas é a falta de condições de trabalho na PM capixaba, apesar do principal garoto-propaganda da corporação, seu comandante-geral, coronel Nylton Rodrigues, afirmar o contrário nas redes sociais e em entrevistas a jornais e a programas de TVs, rádios e portais aliados ao governo.
Os policiais militares capixabas vão para as ruas combater os criminosos mesmo sabendo que poderão ser alvo de tragédias, pois trabalham com munição vencida, andam em viaturas sem manutenção e têm uma carga horária de trabalho que extrapola qualquer senso comum.
Um exemplo cristalino do que munição vencida pode provocar está no Boletim Unificado (BU) da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) nº 34827613, ao qual o Blog do Elimar Côrtes teve acesso com exclusividade. Em registro final efetuado às 21h32 do dia 20 de dezembro de 2017, relata que policiais militares do 6º Batalhão escaparam de uma tragédia durante intenso tiroteio com traficantes do bairro Central Carapina, na Serra. Enquanto os bandidos usaram até fuzis para encarar e desafiar a força armada estatal, armas de três militares falharam e foram danificadas devido à munição vencida.
Os policiais das viaturas3838 e 3351 realizavam patrulhamento ostensivo por voltadas 15h40 do dia 20 de dezembro, quando receberam informação de que bandidos estariam vendendo drogas na rua Distrito Federal, área da Favelinha. Quando os PMs chegaram ao local, homens, com armas em punho, começaram a correr e invadir residências para evitar a abordagem. Um deles tentou esconder uma arma de calibre 12 somente com a numeração (207739).
Foi preciso pedido de reforço, porque os PMs das duas guarnições foram encurralados pelos criminosos. De acordo com o BU, depois de pedido de apoio, todas as equipes da Companhia de Força Tática – uma réplica da Rotam, que foi extinta pelo comandante Nylton Rodrigues após a “greve” dos militares – “do 6º BPM se deslocaram ao local, onde se depararam com a equipe encurralada pelos agressores, sendo necessária ação enérgica para repelir a injusta agressão em tela, observando a legislação vigente, a doutrina de patrulhamento tático motorizado, a tática e técnica policial”.
Ainda segundo o BU 34827613, no local havia vários indícios da venda e uso indiscriminado de drogas. “Diante dos fatos, solicitamos a presença do canil via Ciodes, a fim de localizar mais ilícitos. No momento em que os policiais militares aguardavam o apoio do Canil, indivíduos não identificados começaram a efetuar vários disparos de um matagal, próximo ao local. Diante dos fatos os militares se abrigaram atrás dos muros das residências e das próprias viaturas respondendo ao ataque”.
Relato dramático de tiroteio contra traficantes: armas de três policiais tiveram problema no confronto e guarnições ficam encurraladas por bandidos
Prossegue o BU: “Em todo o momento indivíduos não identificados atiravam com intuito de acertar os policiais. De imediato foi solicitado, via rádio, o apoio de varias viaturas, pois, os policiais estavam cercados e encurralados na troca de tiro sofrendo agressão frontal e pela retaguarda, vindo de lajes próximas. A foto mostra que a PM está diariamente fazendo policiamento em Central Carapina.
De imediato viaturas chegaram ao apoio, CPU Diurno 3899 e todas as viaturas do 6º BPM que estavam de serviço, e mesmo assim os meliantes continuavam atirando para cima dos policiais, atingindo a viatura 3891. Os tiros vindo do matagal e da retaguarda só cessaram após a chegada do Hárpia (helicóptero da PM) e de patrulhas que começaram a fazer incursão na região…”
O Boletim Unificado ressalva que “é importante citar que no decorrer da ocorrência o carregador do Sd (soldado) Rocha veio a ser danificado em sua base, trilho e mola durante recarga tática…O
armamento do Sd Rezende foi danificado quebrando uma peça do rétem do ferrolho(o retém do ferrolho permite deixar a arma “aberta”)…E o armamento do Sgt (sargento) Loureiro deu pane de carregamento 4 vezes”. A ação policial terminou com drogas e armas apreendidas. Nenhum policial foi ferido.
Por economia de combustível, viaturas ficam paradas em ponto base por até 14 horas
Outro item da falta de condições de trabalho é o chamado Ponto Base (PB), que há alguns meses vem se desvirtuando de sua missão principal. De acordo com oficiais e praças, as viaturas do PB deveriam ficar paradas, com a presença de policiais, no máximo duas horas em determinadas regiões. Depois, as viaturas deveriam fazer ronda pelos bairros.
No entanto, por causa do racionamento de combustível – que continua, apesar do governador Paulo Hartung ter anunciado recentemente, no papel, a abertura da torneira para os gastos –, há relatos de que algumas viaturas ficam paradas por até 14 horas, sem deslocamento das guarnições para realização de um policiamento mais eficaz nos bairros e em cidades do balneário capixaba.
Outro dado relevante é a falta de armas não-letais, do tipo laser e spray de pimenta.São equipamentos escassos dentro da PM capixaba nessa gestão do coronel Nylton Rodrigues. A arma não-letal é uma segurança para o policial e para a população, que pode ser usada numa simples ocorrência que envolva, por exemplo, uma pessoa embriagada que esteja provocando tumulto e prejudicando outras pessoas.
A PM possui o chamado bastão PR 24, mas desde 2015 deixou de promover treinamento para os policiais. Também não há mais, na atual gestão do comandante Nylton Rodrigues, treinamento continuado para tiros, que, aliado à munição vencida, contribui para riscos de incidentes envolvendo policiais militares. Uma caixa de munição fechada tem validade de 10 anos. Após sair de embalagem, entretanto, a mesma munição tem validade de seis meses a dois anos.
Corpo de Bombeiros condena prédios da PM capixaba e DPM da Vila Rubim é fechado por risco de desabamento
Pelo Espírito Santo afora, há diversos prédios da Polícia Militar, onde funcionam batalhões, companhias e destacamentos, funcionando irregularmente. Funcionam sem o habite-se e sem autorização do Corpo de Bombeiros.
Um dos exemplos mais visível e grotesco é o DPM da Vila Rubim, que fica no Mercado Municipal de Vitória. O imóvel do DPM está desativado e fechado por ordem do Corpo de Bombeiros, porque corre risco de desabar. Os policiais destacados para a unidade têm que ficar dentro de uma viatura, do tipo Furgão.
A PM capixaba enfrenta também desvio de função e, o mais grave, dentro do próprio Comando Geral da corporação. Há uma semana, o Comando usou policiais militares para fazer reparos no muro do portão de entrada do Quartel do Comando Geral, em Maruípe, Vitória. Em vez de atuar nas ruas, correndo atrás bandidos e dando proteção à sociedade, lá estavam policiais fazendo serviço de pedreiro e pintor de paredes. A foto mostra policiais trabalhando no serviço de reparos do portão principal do QCG de Maruípe.
Quanto à carga horária, a maioria reclama do excesso. Há PMs que saem de um expediente de 24 horas pela manhã e,no mesmo instante, dão início à uma escala especial. Há relatos, que chegaram ao conhecimento do Ministério Público do Trabalho, de uma policial militar que trabalhou 21 dias direto, sem folga.