Em artigo enviado ao Blog do Elimar Côrtes, o major Sandro Roberto Campos, chefe da Divisão de Mobilização Comunitária e Integração Institucional da Diretoria de Direitos Humanos e Polícia Comunitária da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, convida os operadores de segurança pública e o público em geral a uma “viagem” para águas obscuras e complexas das causas da criminalidade circundando a temática sob três questões: Quais as causas que permeiam a criminalidade?; Como a mídia aborda cotidianamente esse problema; e, O desafiante caminho que o poder público deve percorrer para a promoção de possíveis soluções e suas dificuldades.
Navegando nas obscuras e esquecidas águas das causas do crime
As altas taxas de crimes no Brasil, tanto no macro até às microrregiões, representam preocupação incontestável para a sociedade civil organizada em geral. Dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública publicado no Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2015, materializam um cenário estarrecedor: aproximadamente 59 mil homicídios (2014), mais de 136 mil estupros [oficializados e subnotificados] (2014) e uma população prisional na ordem de mais de 607 mil pessoas (2014).
Em outra dimensão, e em igual medida, tênue ao cenário apresentado, em pesquisa de dependentes químicos no Brasil, realizada pela Fiocruz em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública/MJ nas capitais das unidades da federação em 2013, resultou em mais de um milhão e trinta e cinco mil pessoas, das quais, 371 mil são dependentes de crack.
Em meio ao cenário exposto e apenas uma pequena dimensão perto do gigantesco problema da (in) segurança pública, destacam-se algumas questões de relevância e de desafiante respostas: O que pode estar originando essas elevadas quantidades de crimes? De qual maneira, cotidianamente, a mídia aborda essa questão? O poder público possui, na verdade, a intersetorialidade e a interdisciplinaridade como meio adequado para resolver o problema criminal? Sem muito rigor metodológico, ousaremos respondê-las.
Nessa “viagem”, um tanto complexa, mas necessária, atrevo-me a iniciar à primeira questão. As origens do crime não possuem uma só resposta e não há uma só instituição a ser “responsabilizada” midiaticamente, é necessário seguir além, muito mais além do que os noticiários cotidianos e à política de “apontamento de dedos”.
Em notável artigo denominado “As determinantes da criminalidade”, dois renomados pesquisadores, Daniel Cerqueira e Waldyr Lobão, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mencionaram muito criativamente um mosaico de tentativas de explicação desse sombrio fenômeno. Teorias de âmbito internacional e nacional que mencionavam desde a conduta individual da pessoa em seu estilo de vida até mesmo ao grau de desorganização social.
O “mosaico” penetra numa profundidade complexa apontando direções difusas e em vários campos de conhecimento do saber humano, emergindo, portanto, uma discussão mais aprofundada e mais além: o humilde reconhecimento da dificuldade do poder público de arquitetar medidas contínuas e complexas de gestão integrada.
Em igual medida, a humildade está ou deveria se fazer presente, indistintamente, em todas as instituições. A alteridade e empatia, características fundamentais como relevantes pontos de partida para a promoção de medidas abrangentes e voltadas para a coletividade, enfatizam que o ser humano necessita interagir e depender e se colocar no lugar uns dos outros, sob pena de sua própria sobrevivência estar em xeque.
Segundo Jorge Felipe de Lima Dantas em seu artigo “algumas considerações básicas acerca da moderna análise criminal”, o autor menciona o emprego do “Sistema de Relatórios Padronizados da Criminalidade (UCRS)”, instituídos a partir de um movimento de líderes policiais nos EUA a partir da década de 1920.
Esses recursos demarcam importante referência no cenário de gestão de dados alusivos à criminalidade que, a partir dos quais foram formuladas possíveis condicionantes da criminalidade e citados por Dantas:
1. Densidade populacional e grau de urbanização local, bem como o tamanho da comunidade e de suas áreas adjacentes;
2. Variação na composição do contingente populacional local, particularmente quanto à prevalência de estratos populacionais jovens e de indivíduos do sexo masculino;
3. Estabilidade da população no que concerne a mobilidade de residentes locais da comunidade, seus padrões diários de deslocamento e presença de população transitória ou de não-residentes.
4. Meios de transporte localmente disponíveis e sistema viário local;
5. Condições econômicas, incluindo renda média, nível de pobreza e disponibilidade de postos de trabalho;
6. Aspectos culturais, educacionais, religiosos e oportunidades de lazer e entretenimento;
7. Condições da matriz social nuclear, no que concerne o divórcio e coesão do grupo familiar;
8. Clima local;
9. Efetividade das instituições policiais locais;
10. Ênfase diferenciada das polícias locais nas funções operacionais e administrativas da instituição;
11. Políticas, métodos e processos de funcionamento das outras instituições que dão corpo ao sistema de local de justiça criminal, incluindo o Ministério Público, Poder Judiciário e Autoridade Prisional;
12. Atitudes da cidadania em relação ao crime;
13. Práticas prevalentes de notificação de delitos ocorridos às autoridades policiais.
Os dados acima apresentam um cenário um tanto difuso e a concreta necessidade da participação de uma complexa e numerosa rede de instituições responsáveis para oferecer respostas efetivas aos mais diversos e antigos problemas da sociedade.
Num segundo momento, demarcamos a questão da forma como a mídia, cotidianamente, vem abordando o cenário da violência e criminalidade no Brasil. Não raras vezes, aliás, em sentido bem crescente, as abordagens da criminalidade e intervenção policial chegam a tomar formas pirotécnicas e altamente superficiais.
Assaltos a mão armada, arrombamentos de estabelecimentos comerciais, homicídios e tantos outros delitos quando se consumam em via pública ou no interior dos lares na sociedade em geral, uma questão parece ser recorrente: onde estava a polícia?
Seria esta instituição capaz de estar presente em todos os espaços [onipresente], possuir conhecimento de todas as atividades ilícitas [onisciente] e possuir poderes divinos para atuar indistintamente [onipotente]? A resposta é óbvia que não, mas a obviedade parece se fazer distante desse promissor cenário de espetacularizar o crime e responsabilizar apenas uma instituição para, sozinha, oferecer respostas a um problema tão antigo e cujas causas são difusas e tocam em diferentes setores do poder público e, até mesmo, na sociedade.
É importante frisar que na mídia há documentários interessantes e reflexões pontuais para essa maior consciência em torno do tema, mas são pontuais e não cotidianos. O dia-a-dia das pessoas, muitas vezes, não deixa que parem para refletir mais em torno dessas questões e padecem em torno das antigas “arenas gregas”.
Caso a população não seja informada, previamente, acerca das variáveis ressaltadas, sua participação pode-se conformar em mera peça de ficção ou desenvolver políticas que ataquem a questão apenas de forma superficial e não em seu cerne o que, por sua vez, é incapaz de conter a escalada da criminalidade a longo prazo, comprometendo, assim, a Materialização do conceito de efetividade. (RIBEIRO; CRUZ; BATITUCCI, 2003, p. 6) (Grifo nosso)
Neste sentido, também vale destacar que: “em razão do aumento dos programas sensacionalistas, a mídia exerce influência sobre a representação do crime e dos infratores, utilizando do medo para determinar os “excluídos”, para então poder justificar a estigmatização e a implementação de normas severas contra os estigmatizados”.
Essa ciranda se repete exaustivamente sem, contudo, que haja abordagem adequada e mais profunda em torno de campanhas de conscientização e buscas de outras e difusas fontes em busca das causas. As interferências midiáticas requerem, quase que por unanimidade a [onipresença] policial. Essa medida é pontual e ineficaz, como já nos ensinou Bayley e Skolnick, “aumento de efetivo policial nas ruas e patrulhamento aleatório não são estratégias eficientes para a redução de crimes”.
Layne Amaral em seu artigo “Mídia e violência urbana: o corpo contemporâneo e suas afetações em uma cultura do risco”, menciona importante análise sobre a cultura do medo e sua interferência nefasta no comportamento da sociedade: “A mídia tem um papel central na divulgação de informações sobre os riscos aos quais estamos expostos.
Paulo Vaz, em seu estudo sobre corpo e risco, observa o papel da mídia como legitimadora dos perigos contemporâneos e divulga os resultados de uma pesquisa que mostra que “40% das chamadas de primeira página em jornais americanos dizem respeito à gestão do cotidiano, tendo em vista os hábitos de vida e os riscos que se corre” (VAZ, 1999, p.108). Tais riscos, na sociedade contemporânea, se estendem além das preocupações com a saúde e nosso corpo se vê ameaçado também pelos perigos inerentes à vida no meio urbano. O suposto aumento da criminalidade e dos crimes violentos nas metrópoles é um fator de risco que exige dos cidadãos medidas de segurança adicionais”.
Para Aurélio José da Silva, em seu artigo Violência é caso de mídia, de polícia ou de política?, enfatiza: “embora o diálogo entre especialistas de segurança, cidadãos e profissionais da imprensa pareça ser incipiente, limitado e eventual, constata-se, como ressalta Jacobi (2002), que a participação tem limites e não é a panacéia para todos os problemas. Mas somente sua viabilização já possibilita “uma forma mais direta e cotidiana de contato entre as instituições públicas e os cidadãos, a fim de que seus interesses e concepções político-sociais sejam levados em consideração no processo decisório”. (JACOBI, 2002, p. 31)
Os diálogos dos autores acima retratam necessárias medidas cotidianas visando muito mais um aspecto pedagógico e de educação da sociedade visando sua informação do que sua espetacularização ou o mero apoio bélico para solucionar a insegurança e o crime. O medo é aspecto manipulável e pode ser carreado para interesses meramente tecnológicos visando investimentos em mais segurança, mas os investimentos sociais que são, geralmente a longo prazo, permanecem subjacentes à questão da criminalidade.
Neste último momento, finalizamos a questão: O poder público possui, na verdade, a intersetorialidade e a interdisciplinaridade como meios adequados para resolver o problema criminal?
Os discursos da integração no poder público são tão fáceis e práticos assim, sobretudo para o alcance adequado da abordagem da criminalidade? Não. As dificuldades são imensas e carregadas de disputas de poder e distanciadas do que há de mais importante e que materializa todos os princípios constitucionais da administração pública: a sociedade.
A interdisciplinaridade, conforme Schneider (2011, p. 468), representa […] a possibilidade de interação entre diferentes linguagens científicas para a construção de uma linguagem partilhada […]. A interdisciplinaridade trabalha com a interprofissionalidade, significando interação, interdependência e interfecundação, só sendo possível a partir da interação de especialistas com profundo conhecimento de suas áreas de trabalho e com domínio das competências de suas disciplinas, para que possam construir sínteses explicatórias da transdisciplinaridade.
Já a intersetorialidade, segundo (POZZEBON; ÁVILA, 2012, p. 367), “corresponde ao envolvimento e à articulação de múltiplos setores governamentais em diversos níveis na elaboração e execução das políticas públicas destinadas ao enfrentamento da violência”.
Em artigo de Taniele Rui, Vigiar e cuidar: notas sobre a atuação estatal na “cracolândia”, a autora fez profunda pesquisa em um dos cenários mais complexos de atuação policial em uma das áreas mais inóspitas e difícil de atuação.
As disputas de poder e duelos foram muito emblemáticos nesse contexto, como acentua a referida autora: […] o cenário de disputas por modelo de tratamento e intervenção que envolve tanto brigas internas às entidades públicas e privadas de atendimento a usuários de drogas quanto forças externas que questionam a eficácia de sua atuação. Medicina, justiça, polícia e assistência social, ao serem colocadas em contato, brigam e concorrem entre si pelo melhor modo de lidar com a questão.
Em suas considerações finais, conclui: “[…] Embates habituais que nos indicam que o Estado, na sua ponta, ou visto a partir de suas margens, é algo bem mais complicado”.
Os trechos acima evidenciam uma realidade de duelos em contraponto com diálogos. Duelar e dialogar não são termos sinônimos, ao contrário, dispersam qualquer tentativa de composição de serviços pautados na simplicidade e longe de arrogâncias e falta de humildade.
O peso dessa conduta deve estar centrado para a sociedade e com resultados construídos sem conotações ou preocupações voltadas a meros dividendos políticos. É necessário mais.
Dinaldo Almendra e Pedro Rodolfo Bodê de Moraes, autores do artigo “O medo, a mídia e a violência urbana – A pedagogia política da segurança pública no Paraná”, citam Lima (2006): “O capital simbólico se transformou no bem mais precioso que um político pode ter e a mídia passa a ser a arena privilegiada onde são criadas, sustentadas ou destruídas as relações do campo político. Essa nova situação provoca conseqüências imediatas tanto para quem deseja ser político profissional quanto para a prática da política. Isso porque: (a) os atores políticos têm que disputar visibilidade na mídia; e (b) os diferentes campos políticos têm que disputar visibilidade favorável de seu ponto de vista”.
As construções políticas em meio a esse contexto devem ser necessariamente pautadas para e pela sociedade, mas são recorrentes as descontinuidades dos programas, projetos e ações. A sobrevivência da coletividade é diretamente afetada por políticas de governos que passam e não se consolidam.
Nos livros de capacitações da Secretaria Nacional de Segurança Pública para os cursos nacionais de promotor de polícia comunitária é surpreendente destacar: “São poucas as comunidades que mostraram serem capazes de integrar os recursos sociais com os recursos do governo.
Existem tantos problemas sociais, políticos, e econômicos envolvidos na mobilização comunitária que muitas comunidades se conformam com soluções parciais, isoladas ou momentâneas (de caráter paliativo), evitando mexer com aspectos mais amplos e promover um esforço mais unificado com resultados mais duradouros e melhores. A participação do cidadão, muitas vezes, tem-se limitado às responsabilidades de ser informado das questões públicas (ações da polícia), votar pelos representantes em conselhos ou entidades representativas, seguir as normas institucionais ou legais sem dar sugestões de melhoria do serviço”. (SENASP, 2007, p. 255)
As dificuldades inerentes no contexto do poder público para efetivamente trabalhar de maneira integrada residem necessariamente em questões meramente comportamentais e cultura de duelos e disputas de razão e poder. A sociedade que deve ser a pauta acaba por se tornar algo subjacente e fator sem muita importância.
As causas da criminalidade são múltiplas e exigem consciência profunda de alteridade associada à óbvia leitura de que ninguém faz nada sozinho. Mas as midiáticas abordagens diárias do problema ainda estão muito longe de promover educação necessária para que os cidadãos estejam conscientes de seus deveres perante a coletividade.
Enfim, para Erwin Laszlo, fundador do Clube de Budapeste e escritor da obra: O ponto do caos, “[…] vivemos agora num período de transformação, quando um novo mundo está lutando para nascer. A nossa era é uma era de decisão – uma janela de liberdade sem precedentes para decidirmos o nosso destino. Nessa janela de decisão, as “flutuações” – as quais, em si mesmas, são ações e iniciativas pequenas e aparentemente impotentes – abrem caminho em direção ao crítico “ponto do caos”, de onde o sistema se inclina em uma direção ou em outra. […] se estivermos cientes desse poder em nossas mãos, e se tivermos a vontade e a sabedoria para fazermos uso dele, nos tornaremos mestres de nosso destino”.
O processo de amadurecimento da sociedade e do poder público enquanto produto e integrante desta, é algo que se traduz de maneira lenta e gradual, mesmo em meio às obviedades que permeiam o cotidiano das pessoas. É desafiante que as instituições e a sociedade possam se despir de argumentos subjacentes e que pouco contribuem para a construção de soluções duradouras e perenes no cenário da (in) segurança pública.
Conforme Laszlo apontou, está nas mãos de cada um de nós a decisão de retirar os pés do acelerador para que o veículo da sobrevivência social não saia da estrada e orbite o movimento caótico. A letra do nosso saudoso Renato Russo em sua música “Índios” destaca bem esse contexto: “quem me dera ao menos uma vez, que o mais simples fosse visto como o mais importante, mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”. Não adianta fomentarmos os mais avançados, grandiosos e tecnológicos projetos, primeiro, temos o dever de nos entendermos como ponto de partida para efetivas e duradouras mudanças. Para nossas profundas reflexões!