Há quase 30 anos, o Espírito Santo foi destaque na mídia nacional como o Estado em que a população, desacreditada nas instituições e revoltada com a morte de um policial militar, retirou cinco assaltantes de banco de dentro de uma viatura e os matou em praça pública, na porta da Delegacia de Ibatiba, município localizado na Região do Caparaó, na divisa com Minas Gerais.
O País vivia ainda nos anos de chumbo, sob a ditadura militar. Em 1985, a ditadura chegou ao fim e três anos depois o Brasil pode saborear uma nova Constituição, a chamada Constituição Cidadão.
Três décadas se passaram e o descrédito da população capixaba – e do restante do País também – com as instituições aumentou ainda mais. Em menos de um mês o Espírito Santo foi palco de dois linchamentos.
No dia 24 de maio, o motorista de um caminhão João Querino de Paula, 51 anos, foi perseguido por moradores no bairro Morada da Barra, em Vila Velha, depois de atropelar e matar a menina Ávila Fantini, de 2 anos. Um dos linchadores, tio da menina, atirou uma pedra de mais de 10 quilos sobre a cabeça de João Querino, que não teve culpa do acidente e trabalhava como caminhoneiro de uma empresa de material de e construção por 27 anos. O acidente que matou a menina foi uma fatalidade.Quatro dias depois, o lanterneiro Gilmarcam Messine, 24 anos, que havia estuprado e matado a menina Kevelim de Souza, 10 anos, foi linchado até a morte em Vargem Alta.
O verbo linchar no dicionário Aurélio significa “justiçar ou executar sumariamente, sem qualquer espécie de julgamento legal”. Os autores de um linchamento praticam tal barbárie porque estão cansados da impunidade; porque sabem que estão matando alguém que raramente seria punido com rigor.
No entanto, os autores de linchamento no Brasil raramente são presos; dificilmente são descobertos, investigados e indiciados pela Polícia Civil. Muito raro mesmo são entregues à Justiça e condenados. Pesquisas apontam que, quando descobertos, os linchamentos entram para as estatísticas criminais como homicídio culposo (não há a intenção de matar) ou lesão corporal (quando o linchado sobrevive).
E mais: dificilmente o linchado figura como vítima, seu papel é marcadamente a de agressor, já que foi a sua suposta ação criminosa que possibilitou o seu linchamento.
Pelo que se observa, as autoridades se assustam com os linchamentos, mas ninguém é cobrado para dar solução ou um basta. No dia 19 de fevereiro de 2012, dois linchados até a morte ao tentar assaltar uma casa, em Iúna, município vizinho de Ibatiba. Ninguém foi preso.
No Brasil, linchamento não é uma epidemia –é algo normal. Pelo menos é o ponto de vista do professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP José de Souza Martins, que estuda linchamentos há mais de 30 anos e documentou 2 mil casos.
Em 2008, numa entrevista ao jornal Estadão, ele fez uma estimativa surpreendente: no Brasil, possivelmente o país que mais lincha no mundo, “há três ou quatro casos por semana”. Ocorrem, geralmente, nas periferias das cidades, com São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro à frente.
Pelo estudo de José de Souza Martins, mais de 500 mil brasileiros e brasileiras, incluindo crianças, participaram de linchamentos nos últimos 50 anos – e quase ninguém foi punido. A seqüência de agressões vai do apedrejamento à mutilação.
“Não é uma questão de pura maldade: é a população agindo, equivocadamente, onde a Justiça não atua”, dizia o sociólogo em 2008.
O professor José de Souza Martins diz mais: “O linchador age em nome da sociedade. É um homem de bem que sabe que está cometendo um delito e não quer visibilidade. Por outro lado, no Código Penal Brasileiro não existe o crime de linchamento, somente o homicídio. Então, ele não aparece nas estatísticas. Os casos são diluídos. Estimo que aconteçam de 3 a 4 linchamentos no País por semana, na média. São Paulo é a cidade que mais lincha. Depois, vêm Salvador e Rio de Janeiro.”
O professor José de Souza Martins não está sozinho nessa luta. Em artigo escrito para o jornal Folha Litoral, em 30 de novembro de 2012, intitulado “O País dos linchamentos”, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, abordou a questão com muita propriedade.
“Não faz muito tempo li uma notícia pequena, quase que rotineira, mas que indica um quadro merecedor de algum estudo. Ei-la: “irritada com a Justiça e a impunidade, a população de Araiozes (MA) invadiu a delegacia, retirou dois presos e matou-os a pauladas”, iniciou o desembargador, para depois acrescentar:
“Realmente, esta é uma notícia comum e que não chama a atenção. No mais das vezes, os linchamentos sequer noticiados são – vi, por exemplo, uma estatística relativa à Bahia indicando que lá menos de 35% dos casos chegam às páginas dos jornais. Mas fiquei curioso com esta notícia! E assim busquei saber mais detalhes. Foi difícil, pois realmente este tipo de crime quase não é noticiado. Mas consegui. Descobri que 50 pessoas invadiram a delegacia na qual estavam dois acusados de assassinato. Olhando a invasão, outras mil (sim, mil) lá estavam. É isso mesmo: 1.000 pessoas se colocaram em frente à delegacia, olhando passivamente outras 50 invadirem e retirarem os presos das mãos da Polícia. Os dois suspeitos, diante de toda aquela multidão, foram mortos a pedradas, pauladas e chutes, além de terem sido dilacerados pelas patas de um cavalo. Segundo divulgado pela Polícia, os dois elementos linchados teriam assassinado um professor da região exatos quatro dias antes.”
Em seu artigo, o presidente do Tribunal de Justiça cita trechos da entrevista do professor José de Souza Martins ao Estadão em 2008 e finaliza: “Pois é: talvez já tenha passado da hora de a nossa sociedade discutir, sem paixão e sem hipocrisia, os fundamentos de um País que dá exagerados direitos de defesa a alguns réus para depois matá-los pelas ruas, da forma mais bárbara e cruel possível. Talvez seja o momento de nos perguntarmos se temos aquela dupla moral à qual se referia Bertrand Russel, uma que pregamos, mas não praticamos e outra que praticamos, mas não pregamos”.
Quando os linchamentos se tornam cada vez mais comuns, abre-se brecha para a volta dos grupos de extermínio e de justiceiros. Estaríamos, assim, tentando voltar aos tempos em que as milícias se armavam e vendiam “segurança e justiça” a comerciantes e demais moradores dos bairros da Grande Vitória?
Tudo bem que a legislação brasileira favorece a impunidade dos linchadores. Todavia, é preciso que a Polícia Civil aja com mais rapidez na apuração dos dois mais recentes linchamentos ocorridos no Estado. À medida que o tempo passa, os linchadores se sentirão tranquilos e livres para agir de novo.
É necessário que agora em tempos modernos – afinal, 30 anos se passaram desde a fúria planejada de Ibatiba –, onde tudo é filmado no meio da rua, o Ministério Público e o Judiciário também entrem de trava alta contra os linchadores.
No linchamento de Ibatiba, o que prevaleceu foi “a voz do povo é a voz de Deus”
“A cidade de Ibatiba tinha acabado de comemorar o seu terceiro ano de emancipação política. Era uma tarde de sexta-feira, dia 30 de novembro de 1983, quando a tranquilidade dos cerca de 3 mil habitantes à época foi quebrada por sete homens fortemente armados, integrantes da facção criminosa Falange Vermelha, do Rio de Janeiro, que deu origem ao Comando Vermelho. Armados de escopeta, carabina, revólver e ainda uma metralhadora , eles invadiram a agência do Banestes – a única da cidade naquele tempo –, renderam os funcionários e vigilantes e saquearam os caixas e os cofres, levando cerca de CR$ 3,5 milhões de cruzeiros (moeda da época).
Ao saírem da agência, os bandidos encontraram quatro policiais militares que faziam o patrulhamento a pé e começou, aí, a troca de tiros – no tiroteio saíram feridos três policiais e o soldado José Pires de Andrade, 32 anos, casado, pai de duas filhas – uma com 5 e a outra com 3 anos e a esposa grávida de dois meses –, acabou sendo morto pelos marginais que fugiram pela BR-262, que atravessa a cidade. A uma ação durou pouco mais de 20 minutos.
O assassinato do PM comoveu a cidade, ele era bem quisto pela população e tinha recebido uma homenagem na festa pelos serviços prestados ao município. Na fuga , os assaltantes fugiram por Iúna, passando por Guaçuí , Bom Jesus do Norte e seguiram para o Norte do Estado do Rio de Janeiro.
Uma operação conjunta de policiais militares de Campos dos Goytacazes e do 3º Batalhão da PMES (Alegre) resultou nas prisões de cinco dos sete assaltantes, que foram levados para Alegre e depois transferidos para a cadeia de Iúna, já no sábado.
O então delegado de Ibatiba, Joaquim Florindo Neto, decidiu que na segunda-feira o assalto seria reconstituído e a notícia correu pela cidade. Na manhã de segunda-feira, quando os presos chegaram nas proximidades da agência assaltada, cerca de 500 pessoas, armadas de facas, facões, canivetes, martelos, espetos de churrasco e tesouras esperavam os criminosos . À força, eles retiraram os acusados do interior das viaturas da PM e, em menos de 10 minutos, os assaltantes foram linchados pela multidão enfurecida formada por homens , mulheres e até crianças. Uma multidão que não pode ser contida pelo aparato policial.
Após o linchamento os corpos de Severino Sales do Nascimento – fugitivo do sistema penitenciário carioca e condenado a 400 anos de prisão –, Edson Nascimento da Silva –, também fugitivo com pena de 35 anos cumprir –, Roberto do Nascimento Monção – com apenas 18 anos de idade na época, ele já tinha condenação de 564 anos –, José Luiz Nascimento e Roberto da Silva ficaram expostos em um canteiro às margens da BR 262 até a chegada da perícia técnica da Polícia Civil, que saiu de Vitoria, e da imprensa.
Na época, o então Secretário de Estado da Segurança Pública, Dirceu Cardoso, que estava junto com o juiz da Comarca de Iúna, Mauro Soares de Freitas, e do promotor de Justiça Marco Aurélio Araújo Reis, ao ser indagado pela imprensa no local onde se encontraram os corpos sobre o linchamento, foi curto e grosso: “Vox populi, vox Dei” – a voz do povo é a voz de Deus.
Como sempre, um inquérito policial foi aberto para apontar os culpados pelo linchamento, mas consta-se que ele foi arquivado sem que nenhum dos participantes do ocorrido tenha sido indiciado.”
(Texto do linchamento em Ibatida é do jornalista Sérgio Neves, que foi testemunha do tragédia.)