Manhã do dia 3 de fevereiro de 2017. Entrada da sede da 14ª Companhia Independente da Polícia Militar (Feu Rosa), na Serra, é bloqueada por familiares de policiais, que impediram a saída e entrada de viaturas. Começava ali um pequeno período de 22 dias que pareceu uma eternidade. Foi a “greve” dos militares do Espírito Santo, que levou caos, pânico e mortes – 215 pessoas foram assassinadas no período – a todo o Estado. Foi a forma que as famílias encontraram para reivindicar reajuste salarial.
Três anos depois, o site Blog do Elimar Côrtes mergulha naqueles dias terríveis em busca de respostas mais sensatas. A conclusão é de que todos saíram perdendo: policiais militares, população, autoridades e, sobretudo, o Estado do Espírito Santo.
Os atores do movimento ilegal – operadores de segurança pública são proibidos de fazer greve, de acordo com a Constituição Federal e entendimento do Supremo Tribunal Federal – já vinham se articulando internamente.
Políticas estimularam familiares a promover a paralisação
Grupos se formaram dentro e fora das unidades e reuniões foram realizadas entre familiares de policiais com agentes políticos. A intenção de alguns setores era a de enfraquecer o Governo. Dessas reuniões fizeram parte duas políticas de peso do cenário capixaba: uma tem mandato atualmente; a outra, perdeu a disputa a uma vaga à Assembleia Legislativa, mas é primeira suplente sem coligação. Nas reuniões, elas estimularam as esposas promoverem a paralisação.
Há quem diga que uma pequena parte da cúpula nacional do PMDB (hoje MDB), que era o partido do então governador do Estado, Paulo Hartung, tinha interesse na crise. Queriam minar uma possível candidatura de Hartung a vice-presidente da República. Um ano após o movimento dos policiais, Hartung se desfiliou do PMDB e hoje se encontra sem partido.
Era muito comum, após o movimento paredista, ouvir da boca de oficiais e praças da PM frases do tipo “não ganhamos nada, mas queimamos o Paulo Hartung. Agora ele não ganha mais nada”.
Tensão começou na Serra; ex-governador estava internado
Quando o movimento estourou, naquela manhã de sexta-feira (3 de fevereiro), na Serra, Hartung estava no Hospital Sírio-Libanês para realização de exames. Pretendia retornar para Vitória no mesmo dia. Até então, ele desconhecia a manifestação na porta da 14ª Companhia Independente. No entanto, os exames detectaram um tumor na bexiga e o ex-governador teve que ser internado e operado no dia seguinte.
No domingo (05/02), quando a crise já havia se espalhado por todo o Estado, Hartung determinou que seu vice, César Colgnago (PSDB), assumisse o cargo de Governador. Colgnago assinou o livro de posse em sua residência, no mesmo domingo. O livro foi levado até ele pela então secretária de Governo, Ângela Silvares.
Paulo Hartung retornou ao Estado no dia 8 de fevereiro, numa quarta-feira. Manteve-se afastado do cargo e passou vários dias na Residência Oficial, da Praia da Costa, em Vila Velha, com sua família, por motivo de segurança. Mesmo fora do cargo, era ele, porém, quem dava as orientações sobre como o Governo deveria agir diante o aquartelamento.
André Garcia tratou início do movimento com desdém e arrogância e governo esperara reação firme do Alto Comando da PM
Naquela manhã do dia 3 de fevereiro de 2017 poucos foram os setores do Governo que tomaram conhecimento do movimento dos familiares na porta da sede da 14ª Companhia, embora o Blog do Elimar Côrtes tenha sido o único veículo de comunicação a dar a notícia no momento em que os familiares chegaram à unidade. O jornal A Tribuna dedicou um pequeno texto, em sua edição impressa do dia seguinte, mas destacando e reação do Governo.
Alguns secretários de Estado foram informados no decorrer da tarde. O então secretário de Estado da Segurança Pública e Defesa Social, André Garcia, soube logo cedo, mas tratou o episódio com desdém e arrogância.
“Fiquei preocupado quando soube da manifestação, mas não imaginei que o bloqueio das entradas se estendesse para outras unidades”, revela um ex-secretário de Governo.
Para outros membros do primeiro escalão do governo Hartung, o Governo do Estado demorou a reagir. As críticas são voltadas, principalmente, para o ex-secretário André Garcia e para o então comandante-geral da PM, coronel Laércio Oliveira – este sequer reagiu.
A demora em reagir foi tanta que somente na segunda-feira (06/02) o governador em exercício César Colgnago se reuniu com o secretariado e a cúpula da Segurança Pública. No encontro, Colgnago anunciou a exoneração do coronel Laércio, que foi substituído no comando-geral pelo coronel Nylton Rodrigues. O novo comandante, coronel Nylton, teve uma atuação firme e rigorosa durante o movimento.
Vários fatores pesaram para a exoneração de Laércio. O primeiro é que, quando a “greve” começou, ele estava em Minas Gerais, participando de um evento social de familiares.
Outro fator é que César Colgnago e demais membros do Governo esperavam que Laércio Oliveira e demais coronéis do Alto Coimando da PM fossem a público fazer apelo para os familiares dos policiais desbloqueassem as entradas das unidades militares e estimulassem a tropa a voltar a trabalhar. Nada disso foi feito.
“Esperávamos, de fato, uma reação dos coronéis. A maioria deles se omitiu: ou por conivência com o movimento ou por impotência. Podem ter ficado com receio de dar uma ordem, que não fosse cumprida, o que poderia desmoralizar o oficialato”, resumiu outro membro do ex-governo.
Ex-secretário da Segurança poderia ter evitado a explosão da crise no segundo dia
Membros do primeiro escalão do Governo do Estado durante o aquartelamento de fevereiro de 2017 acreditam que o movimento poderia ter sido evitado se o então secretário da Segurança, André Garcia, tivesse sido mais “habilidoso” e agido com mais “sabedoria e menos arrogância”.
No segundo dia do movimento, quando o Quartel do 4º Batalhão (Vila Velha), no Ibes, foi bloqueado, a Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) se reuniu com um grupo de mulheres, na sede da Pasta, em Bento Ferreira. Curiosamente, o titular da Sesp, André Garcia, não esteve presente na reunião, o que, para o Governo do Estado da época, foi um gesto de “arrogância” e “soberba”.
Uma das representantes do movimento se recorda daquele momento tenso:
“Fomos ‘catadas’ na porta do Quartel do 4º Batalhão, no Ibes, para essa reunião. Um coronel, que atuava na Sesp, pediu para encerrar ali mesmo o movimento, alegando que os policiais é que seriam os maiores prejudicados, com abertura de inquéritos e PADs (Processos Administrativos Disciplinares). Mas não apresentou nenhuma proposta para nossa reivindicação, que era de reajuste salarial. E o secretário da Segurança estava ausente dessa reunião”.
Para um membro do Governo à época, a atuação do então secretário André Garcia “foi desastrosa” naquele momento. “A chave dessa tragédia foi aquela reunião. Ao se ausentar da reunião das mulheres, o secretário (André Garcia) esticou a corda. A crise, que se iniciara, poderia ter se encerrada ali com a manifestação dele perante às representantes dos policiais”.
O ex-governador Paulo Hartung cogitou a exonerar André Garcia do cargo. Hartung, porém, nunca fez a política de “fritar” secretários. Além do mais, se ele exonerasse o secretário, estaria dando razão aos líderes do movimento grevista, que queriam a “cabeça” de Garcia.
Governo temeu derramamento de sangue na porta do Quartel do Comando Geral
Todos os 22 dias do movimento de fevereiro de 2017 foram tensos. Um episódio, todavia, chamou mais atenção, apesar de ter passado despercebido pela imprensa. No dia 7 de fevereiro à tarde, numa terça-feira, o clima de tensão aumentou em frente ao Quartel do Comando-Geral da Polícia Militar, em Maruípe.
Foi quando moradores de bairros vizinhos foram também para a porta do QCG protestar contra a “greve” e pediram a volta dos policiais militares para o patrulhamento das ruas. Houve atritos dos moradores com os familiares dos policiais.
Por sua vez, policiais militares ‘grevistas’ – sem farda, mas armados – se colocaram ao lado de seus familiares prontos para reagir em caso de agressão por parte dos manifestantes. Tropas do Exército, que tinham acabado de chegar ao Estado, tiveram que intervir para evitar um confronto armado. Conforme relembra uma fonte, policiais que estavam dentro do Quartel pintaram o rosto de graxa preta, como se estivessem numa guerra.
“Nossa preocupação é que o QCG guarda a maior parte do armamento da Polícia Militar. Armas, portanto, não faltariam para um confronto”, diz um coronel da ativa e que, na época, foi contra o movimento.
Em outros momentos a tensão também subiu. Cogitou-se uma invasão de homens da 27ª Brigada de Paraquedista do Exército ao QCG de Maruípe. Os oficiais estavam prontos para ocupar o Quartel. No entanto, no início da noite um grupo de policiais militares – sem farda e armados – se colocou ao lado das pessoas que bloqueavam a entrada do Quartel. Para evitar um derramamento de sangue, o Exército recuou.
O ‘oportunismo’ dos políticos e a sensatez das Associações de Classe
Analistas dizem que o movimento de fevereiro de 2017 teve dois momentos distintos. Primeiro, foi quando surgiram políticos que tentaram tirar proveito da situação. Dezenas deles, além de próprios policiais militares que já vislumbravam disputar as eleições de 2018, foram para as portas dos quartéis levar “solidariedade” aos aquartelados e seus familiares. Estavam lá mesmo sem prever a real dimensão do movimento e o estrago que trouxe para a sociedade capixaba.
Depois veio a intervenção de outros atores da política, imaginando que, com seu carisma, poderiam resolver a crise e acabar com a “greve”. Tentaram, mas não conseguiram. Em certo momento, o governador Paulo Hartung criticou a senadora Rose de Freitas, que, à revelia do Governo do Estado, se reuniu com um grupo de mulheres na Assembleia Legislativa. O gesto de Rose, segundo analistas, colocou mais lenha na fogueira. A senadora, depois da “bronca” do ex-governador, se quietou.
Até a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ES) e a Arquidiocese de Vitória tentaram pacificar os ânimos. Reuniram-se com as mulheres que representavam o movimento, na Cúria Metropolitana, na Cidade Alta, próximo ao Palácio Anchieta, mas, diante do “radicalismo”, desistiram de ajudar.
“Estou me retirando de campo. Aquelas senhoras não conseguem ouvir”, teria dito o então presidente da OAB, Homero Mafra, para um interlocutor do Governo do Estado.
No meio da crise ficaram as Associações de Classe dos militares. Surpreendidos com a “greve”, seus dirigentes tentaram a todo custo acabar com o movimento. Demonstraram sensatez a todo momento, mas eram ignorados e, em alguns casos, achincalhados por familiares dos policiais e por próprios colegas de farda.
Teve gente que chegou a pedir o impeachment do então presidente da Associação de Cabos e Soldados da PM e do Corpo de Bombeiros, sargento Renato Martins Conceição, que procurou sempre manter o equilíbrio durante o movimento.
Manchete de William Bonner levou mulheres a desfazer acordo fechado pela entidades de classe
Era noite do dia 10 de fevereiro. Mais cedo, representantes do Governo se reuniram com dirigentes das entidades de classe. Chegaram a um acordo para pôr fim à “greve”. A reunião, porém, foi realizada sem a participação das mulheres.
Eram 20h30 daquele 10 de fevereiro. William Bonner abre o Jornal Nacional com a seguinte manchete: “Governo anuncia acordo para encerrar a greve de policiais militares no Espírito Santo”. No decorrer da reportagem, ele informa que o fechamento do acordo foi feito com entidades representativas dos policiais para pôr fim ao movimento iniciado há uma semana e que tirou os policiais militares das ruas do Estado. Quatro associações assinaram o documento, junto com secretários estaduais. As mulheres não foram chamadas à reunião”.
Naquele momento um grupo de mulheres se reunia em uma igreja evangélica em Bento Ferreira, Vitória, ao lado da Rede Gazeta. Pronto: as mulheres se revoltaram, disseram que as entidades de classe dos policiais não as representavam e mantiveram a “greve”.
Diversas entidades civis, parlamentares de outros Estados e lideranças nacionais dos policiais militares estiveram em Vitória na tentativa de ajudar a encerrar o movimento. Chegaram a cobrar mais dinamismo e atuação das Associações de Classe, mas foram embora depois de perceber que, para parte da tropa, a crise se estenderia por muito mais tempo.
Tropa já havia dado alerta ao fazer protesto silencioso contra Hartung e vaiar vice-governador em formatura de novos soldados
Meses depois do fim do movimento de fevereiro de 2017, o então governador Paulo Hartung, numa avaliação feita com parte de seu secretariado, reconheceu que o Governo do Estado errou. O erro, porém, foi cometido dois anos antes, quando o Governo deu posse, de uma vez só, a 965 alunos-soldados.
O governo, teria concluído Hartung, errou também ao retardar a posse dos soldados. Os quase mil jovens que tomaram posse já entraram na corporação demonstrando revolta. Revolta que se estendeu também aos seus familiares.
Eles entraram no Curso de Formação de Soldados em 2014, no último ano do primeiro governo de Renato Casagrande. Encerraram o curso e esperavam ser nomeados logo no início de 2015, quando Hartung tomou posse para seu terceiro mandato como governador.
No entanto, por contenção de despesas, o governador Hartung mandou adiar a formatura para o mês de novembro. Assim, os novos soldados ficaram recebendo vencimentos de estagiários e não como profissionais, apesar de já terem concluído o curso. Desempregados – o Curso de Formação de Soldados exige dedicação exclusiva –, centenas de alunos passaram necessidade em casa e tiveram que contar com ajuda dos colegas de farda para levar alimentos e remédios para esposas e filhos.
Resultado da insatisfação: na cerimônia de formatura, no dia 5 de novembro de 2015, as mais de 5 mil pessoas que lotaram o antigo Ginásio do Álvares Cabral, na Beira Mar, vaiaram o então vice-governador César Colgnago, que esteve na solenidade representando Paulo Hartung – que fora alertado pela Secretaria da Casa Militar da insatisfação dos familiares dos novos soldados e de que as vaias poderiam acontecer.
“Mais do que a demora na nomeação, foi a incerteza. O Governo e o Comando-Geral da PM não davam nenhuma resposta aos futuros soldados. Eles, portanto, não tinham certeza de que seriam nomeados”, diz uma fonte do antigo Governo, que concluiu:
“Durante as negociações com os familiares dos policiais, enquanto durou o aquartelamento, detectamos a presença de esposas desses mesmos jovens soldados que se formaram em novembro de 2015. Logo, as vaias ao vice-governador foram apenas uma demonstração do que viria pela frente”.
Na verdade, “a demonstração do que viria” foi dado sete meses antes das vaias. Na noite do dia 6 de abril de 2015, Paulo Hartung foi alvo de um protesto silencioso por parte de oficiais e praças da Polícia Militar, dentro do Quartel do Comando Geral da corporação, em Maruípe.
Ao pedir um “Viva à Polícia Militar do Espírito Santo”, Hartung, por duas vezes, teve de encarar o silêncio de toda a tropa que estava em forma, durante a principal solenidade em comemoração aos 180 anos da PM.
Naquela mesma noite, oficiais foram para as redes sociais comentar sobre o ato do silêncio: “Presenciei o melhor protesto já realizado pela Polícia Militar”, comentou um oficial.
“O melhor é que foi de forma espontânea, demonstrando ao governador que a PM, como um todo, está insatisfeita. Vou mais longe, como a manifestação foi totalmente espontânea, retrata um panorama da aceitação do governo Paulo Hartung. Triste porque ele não avaliará assim, pois a soberba o cega”, descreveu outro oficial..
Paulo Hartung encerrou seu discurso com a seguinte constatação, dirigindo-se ao então comandante-geral da PM, coronel Marcos Antônio Souza do Nascimento:
“Já que o senhor (coronel Marcos do Nascimento) falou em seu discurso que eu, como governador, sou o comandante-em-chefe da PM, vamos dar um novo viva e muito mais forte: ‘Viva a Polícia Militar!”.
Fez-se novo silêncio na tropa. “Já vi que não sou comandante de nada. Boa noite a todos”, encerrou Paulo Hartung, que, no entanto, tirou de letra o protesto silencioso dos militares. Permaneceu no QCG e participou do coquetel servido pelo Comando Geral.
“Movimento como o que fizemos em 2017 não vai se repetir mais. Pode até haver outros meios de reivindicação, mas jamais a paralisação da Polícia Militar”, diz uma das líderes das famílias
Três anos depois do movimento de fevereiro de 2017, há quem condene aquela “greve”. É o caso de uma das lideranças do bloqueios das entradas dos quartéis, esposa de um policial militar. “Fomos para a rua lutar por melhorias salariais. Saímos com as mãos vazias e vendo o Estado todo em pânico”, disse a mulher, que conversou com o Blog do Elimar Côrtes sob a garantia do anonimato de seu nome para evitar represálias.
“Movimento como o que fizemos em 2017 não vai se repetir mais. Pode até haver outros meios de reivindicação, mas jamais a paralisação da Polícia Militar. Quando fechamos o 4º Batalhão (Vila Velha), no segundo dia, não tínhamos a dimensão de que iria acontecer a tragédia que abalou o Espírito Santo, com mais de 200 mortes num curto período por falta de policiamento. Hoje, o que vemos são políticos com e sem mandato querendo tirar proveito da crise. Mas não vamos ceder a essas falácias. O Governo Hartung disse que ia nos vencer pelo cansaço e, infelizmente, nós enfrentamos. Mulheres foram processadas e condenadas pela Justiça por causa do movimento. Todos nós saímos perdendo. No fundo, nós também erramos”, declarou a esposa do policial.