Por maioria de seus pares, o Pleno do Tribunal de Justiça do Espírito Santo acolheu duas queixas-crimes contra o deputado estadual Lucínio Castelo de Assumção, o Capitão Assumção (PL), pela acusação de cometer três crimes contra o governador Renato Casagrande (PSB) e o ex-secretário de Estado da Saúde Nésio Fernandes de Medeiros Júnior. Os crimes são de calúnia, difamação e injúria por conta de uma manifestação feita em sua rede social. São todos previstos no Código Penal Brasileiro. Se condenado nos três crimes, o parlamentar pode pegar até três anos e seis meses de prião. Assumção se torna o primeiro deputado estadual a ser processado criminalmente por ofender a honra do chefe do Executivo Estadual. Também é o primeiro caso na Justiça capixaba do uso criminoso da Inteligência Artificial em que o autor dos fatos é processado.
Relator das Queixas-Crimes, o desembargador Pedro Valls Feus Rosa rejeitou a denúncia contra Capitão Assumção, mas o desembargador Fabio Clem de Oliveira, com um voto considerado bastante contundente, inaugurou a divergência pelo acolhimento das duas Queixas-Crimes. O resultado final foi de 15 votos por transformar o deputado em réu e nove contra. Capitão Assumção, por ser parlamentar, tem prerrogativa de foro no âmbito do segundo grau do Judiciário. Por isso, vai responder ao processo no Tribunal de Justiça. No entanto, existem outras diversas ações contra ele, movidas pelo governador Renato Casagrande, na esfera Cível – para causas Cíveis, não há foro privilegiado no ordenamento jurídico brasileiro.
Na Queixa-Crime, o governador Casagrande foi representado pelos advogados Alexandre Puppim, Lígia Selvatici Paiva, Mariane Porto do Sacramento, Marcus Felipe Botelho Pereira e Júlia Nery dos Santos. Eles sustentam na Inicial que o deputado Capitão Assumção publicou conteúdo na internet utilizando um vídeo montado, constituído de dois quadros, em que foram inseridas imagens de Casagrande no quadro à esquerda, enquanto à direita contém imagens do deputado expressando-se como se estivesse formulando perguntas ao governador em uma entrevista fictícia. As imagens de Renato Casagrande indicam que foram extraídas de gravações de eventos em que o líder capixaba participava. No lado direito do vídeo, há registro de frases que tinham como destino os eleitores e a população em geral, transmitindo a ideia de que realmente o chefe do Executivo Estadual havia concedido uma entrevista para Assumção.
“A arte propicia deduzir que, para tentar transparecer que o conteúdo do vídeo era verdadeiro, o autor [Capitão Assumção] da montagem apropriou-se de palavras específicas, pinçadas de discursos efetivamente proferidos pelo chefe do Executivo Estadual [Renato Casagrande], cuidadosamente escolhidas e habilidosamente utilizadas para estabelecer conexão entre as palavras realmente ditas pelo governador do Estado em ocasiões distintas e gravadas em vídeos originais, editorialmente extraídas e inseridas na montagem, de forma que fossem entendidas como sendo vocalizadas pelo representante em respostas às perguntas simuladas pelo representado (Assumção)”, diz um trecho da ação.
Ainda segundo a Inicial, “a expertise do montador levou-o a utilizar-se de edições de vídeos originais para reproduzir palavras realmente ditas pelo governador do Estado em um ou outro evento administrativo, com o objetivo de fazer crer que as inserções tidas como respostas tinham a sonoridade da expressão vocal do representante (Casagrande), a fim de passar ao público atingido a crença de que realmente este estivesse respondendo a perguntas que lhe estariam sendo feitas pelo representado (Assumção), para que a produção, de fato, retratasse uma entrevista e não deixasse transparecer que tudo não passava de uma montagem editorial elaborada por quem tem domínio sobre tecnologia da informação e sobre inteligência artificial.”
A Queixa-Crime considera, entretanto, que o deputado Capitão Assumção desconhece normas técnicas para a montagem que veiculou na internet e que, portanto, há necessidade de identificação do produtor, que, neste caso, seria considerado coautor, que também poderá ser responsabilizado criminalmente, o que foi acolhido também pelo Tribunal de Justiça.
A Queixa-Crime começou a ser julgada pelo Pleno do Tribunal de Justiça em 16 de novembro de 2023, quando o relator do procedimento, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, apresentou seu voto pela rejeição do pedido do governador Casagrande. Originalmente, a Ação Penal foi ajuizada em primeira instância, uma vez que o Casagrande e seu advogados entenderam que os fatos não guardavam relação com o mandato de deputado estadual exercido por Capitão Assumção, o que teria o condão de afastar a regra do foro por prerrogativa de função. No entanto, o Juízo da 6ª Vara Criminal de Vitória entendeu pela vinculação dos fatos narrados ao exercício do mandato de parlamentar de Assumção e, por conseguinte, remeteu o feito ao Tribunal Pleno. A Procuradoria-Geral de Justiça apresentou parecer pela avocação da Ação Penal 0012117-20.2021.8.08.0000 movida pelo então secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes, que tramitava perante a 5ª Vara Criminal de Vitória, por se tratar dos mesmos fatos, o que foi deferido pelo relator Pedro Valls Feu Rosa, que, em seu voto, destaca:
“Em análise sumária, verifico que o Deputado Estadual, ora querelado, publicou o vídeo na rede social Instagram (@capitaoassumcao – fl. 28) O perfil utilizado trata-se de conta veiculada pela empresa Instagram, a fim de impedir que outras pessoas se passem pelo querelado, além de constar como “figura pública”, onde o querelado abertamente informa que é Deputado Estadual. Nesse contexto, não se pode olvidar que as redes sociais, atualmente, são instrumentos e meios de difundir ideias e pensamentos, além de propagar posicionamento político e divulgar amplamente o trabalho feito por parlamentares, sendo uma forma de manter e angariar eleitores. Tanto o é que se nota o rigor da legislação eleitoral quanto à utilização de redes sociais e demais veículos de imprensa. Não foi possível abrir a mídia de fl. 32, porém o querelante delineou o fato na exordial ficando claro que o contexto da publicação realizada pelo querelado possui nítido viés político. […] Trata-se de publicação relativa ao Governador do Estado do Espírito Santo, bem como sobre políticas públicas adotadas, realizada em rede social de amplo acesso, por um Deputado Estadual em exercício, que apresenta como tal no perfil, razão pela qual não é possível, de forma inequívoca, desassociar sua conduta do seu cargo. De fato, o perfil usado pelo querelado é expressamente vinculado às atividades parlamentares, vide o nome da conta “@capitaoassumcao” – exatamente o mesmo que seu nome de urna, ou seja, trata-se da forma como o parlamentar se apresenta publicamente para fins de exercício de sua atividade política. Ademais, as suas manifestações nas redes sociais são dirigidas ao querelante, o Governador do Estado, e se referem a processos licitatórios, além da suposta prática de crimes pelo Chefe do Executivo em função do seu cargo, tais como suposto superfaturamento no aluguel de tendas e compra de álcool em gel, dentre outros (fls. 23 e 24). Ou seja, independentemente se feito com a devida observância do decoro parlamentar (questão interna corporis da Casa Legislativa), o querelado direcionou sua fala a atos em tese praticados pelo Governador do Estado na condição de Chefe do Poder Executivo. Trata-se, portanto, do exercício de uma das funções típicas do parlamentar: fiscalizar os atos do Poder Executivo. Se feito da melhor maneira, da forma mais elegante ou com quebra de decoro, tal julgamento cabe, primordialmente, ao povo e, em segundo lugar, ao próprio parlamento…Por força da imunidade material, afastado resta o componente da tipicidade, de modo a se fazer imperativa a conclusão pela ausência de justa causa, atraindo ao presente caso a incidência do comando constante no artigo 395, III do Código de Processo Penal que, por sua vez, determina o não recebimento da presente QueixaCrime. Por todas essas razões, REJEITO a presente QUEIXA-CRIME.”
O julgamento se encerrou em 6 de junho de 2024 e o acórdão publicado na sexta-feira (21/06). Neste período vários desembargadores se manifestaram, com pedido de vista e apresentação do voto posteriormente. E coube a um dos ex-presidentes da Corte, desembargador Fabio Clem, guiar a maioria dos seus pares. “Conforme a mídia exibida nesta sessão, tomamos conhecimento que o Querelado (Capitão Assumção) publicou conteúdo na internet utilizando um vídeo montado, constituído de dois quadros, no qual foram inseridas imagens do Querelante (Casagrande) no quadro à esquerda, ao que tudo indica, extraídas de gravações de eventos dos quais o Governador do Estado do Espírito Santo participou em sua rotina administrativa”, resumiu Fabio Clem.
No seu voto, o desembargador ressalta a importância política de Renato Casagrande, que exerce atualmente seu terceiro mandato como governador do Espírito Santo por força de decisão popular: “Até aqui, não obstante não se possa negar o desrespeito à representatividade ínsita à pessoa que se elegeu pela terceira vez como Governador do Estado do Espírito Santo, pode-se dizer que as simulações, as ilações pessoais por parte do Querelado [Capitão Assumção] ao Querelante [Casagrande] e as ilações atribuídas ao Governador do Estado através de palavras inseridas na edição como respostas constituem tagarelices que revelam conduta do tipo penal objetivo do crime de injúria, diante da exposição da imagem do Querelante à humilhação pública, preenchendo, ainda, o elemento subjetivo do tipo penal concretizado na vontade de ofender-lhe a honra subjetiva e na intenção de causar-lhe mal moral, com potencial efetivo de rebaixar-lhe a dignidade moral. Todavia, o que se segue, afasta-se de uma crítica adversária manifestada em tom que extrapola o tipo objetivo do crime de injúria e o seu elemento subjetivo, passando a atingir o patrimônio jurídico protegido do Querelante em outra esfera, eis que o Querelado sobe o tom e agrava suas colocações para, de forma livre e consciente, assacar contra a honra e a imagem pessoal do Governador do Estado do Espírito Santo, imputando-lhe a prática de crime de corrupção passiva no exercício de suas atribuições de Chefe do Poder Executivo Estadual, com a coparticipação do então Secretário de Estado da Saúde.”
Fabio Clem pontuou mais: “Como se vê, a partir desse instante da montagem do vídeo o Querelado [Capitão Assumção] simula formular perguntas e escolhe como respostas palavras ou frases que podem, na grande maioria, serem tidas como manifestações de um adversário político. Todavia, com o mesmo desrespeito pela pessoa que governa o Estado do Espírito Santo pela terceira vez, faz declarações que revelam, efetivamente, potencial de rebaixar a dignidade moral do Querelante, ofendendo-o em sua condição de Governador do Estado e expondo sua imagem à humilhação pública.”
Neste ponto do seu relatório, o desembargador registra que cópias dos autos serão encaminhadas a Brasília para que o procurador-geral de República, Paulo Gonet, possa analisar se cabe por parte do Ministério Público Federal abertura de procedimento em desfavor do deputado Capitão Assumção pela acusação de crimes de injúria, difamação e calúnia contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT): “As simulações não se restringiram à pessoa do Querelante [Casagrande], também foram feitas pelo Querelado [Assumção] associações que, em tese, atingem a honra e a imagem do Presidente da República [Lula], as quais requerem encaminhamento à Procuradoria-Geral da República para aferição da tipicidade de tal associação para, se for o caso, serem adotadas as providências cabíveis pela autoridade competente.”
Mais adiante, Fabio Clem entende que Capitão Assumção tenha tido a cumplicidade de criminosos da fake news para produzir o vídeo de ataques ao governador Casagrande. Por isso, requer apuração sobre o assunto:
“Averbe-se, outrossim, que é razoável conjecturar que o Querelado [Assumção] não tenha conhecimento técnico para produzir o vídeo difundido, circunstância que converge para a necessidade da identificação do seu produtor e de apuração da técnica nele utilizada, eis que quem o fez colocou sua especialidade a serviço da prática das condutas típicas que a Queixa-Crime imputa ao Querelado.
E se for apurado que a montagem tenha sido feita por pessoa distinta da do Querelado [Assumção], a conclusão lógica é a de que o montador agiu na condição de coautor e, possivelmente, de autor intelectual das práticas criminosas, circunstância que reclamará, se for o caso, sua responsabilização criminal. Acresça-se que se a análise técnica da montagem indicar que o montador do vídeo não se utilizou de edições de vídeos originais para reproduzir palavras realmente ditas pelo Governador do Estado em um ou outro evento administrativo, com o objetivo de fazer crer que as inserções tidas como respostas tinham a sonoridade da expressão vocal do Querelante, não será exagero passar-se a raciocinar com a hipótese que a montagem tenha extrapolado o campo do domínio de técnicas computacionais para a utilização de inteligência artificial, permitindo deduzir, em tese, que a montagem caracteriza uma ‘deepfake’, técnica que pode utilizar recursos de inteligência artificial para substituir rostos e imagens em vídeos e áudios modificados digitalmente para simular a fala ou gesto de pessoas, e inserção de vozes com imitação falsa da sonoridade vocal de determinada pessoa com o propósito de chegar o mais próximo possível da realidade. E todas as providências legais hão que ser tomadas sempre que se estiver diante de fatos que, em tese, possam indicar que técnicas computacionais e de inteligência artificial estejam sendo utilizadas em detrimento da garantia dos princípios que regem o estado democrático de direito.”
Segundo Fabio Clem, para sublinhar a importância que a investigação dos fatos denunciados requer, é oportuno registrar que regras aprovadas pelo Tribunal Superior Eleitoral no dia 27/02/2024, de maneira inédita, regulamentaram o uso de inteligência artificial (IA) na propaganda de partidos, coligações, federações partidárias, candidatas e candidatos nas Eleições Municipais de 2024. A medida foi tomada pela Corte ao aprovar 12 resoluções, relatadas pela vice-presidente do TSE, ministra Cármem Lúcia, que disciplinam as regras que serão aplicadas no processo eleitoral deste ano.
O desembargador Fabio Clem conclui: “É que não obstante saibamos todos que os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (CF, art. 53, caput), e que, por simetria (Constituição Estadual/ES de 1989, art. 51, caput) tal garantia é estendida aos parlamentares estaduais e aos vereadores municipais, a imunidade parlamentar material só protege os congressistas, parlamentares estaduais e municipais nos atos, palavras, opiniões e votos proferidos no exercício do ofício parlamentar, sendo passíveis dessa tutela jurídico-constitucional apenas os comportamentos parlamentares, cuja prática possa ser atribuída ao exercício das atribuições do mandato legislativo. E ainda que se saiba que a garantia da imunidade material se estende ao desempenho das funções de representante do poder legislativo, qualquer que seja o âmbito dessa atuação – parlamentar ou extraparlamentar – a proteção só protege a atuação que guarde relação com a função. Eis entendimento proclamado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito. Por estas razões, recebo a Queixa-crime oferecida contra o Querelado pela prática, em tese, dos crimes de calúnia, difamação e injúria em relação à pessoa do Querelante.”
Saiba Mais
Deepfake usa Inteligência Artificial para trocar o rosto de pessoas em vídeos, sincronizar movimentos labiais, expressões e demais detalhes, em alguns casos com resultados impressionantes e bem convincentes. Deepfake, uma amálgama de “deep learning” (aprendizagem profunda em inglês) e “fake” (falso em inglês), é uma técnica de síntese de imagens ou sons humanos baseada em técnicas de inteligência artificial. É mais usada para combinar a fala qualquer a um vídeo já existente (exemplo: combinar um vídeo qualquer de Barack Obama com a fala “O programa Obamacare não foi uma boa ideia”). A técnica de aprendizado de máquina mais utilizada para criação de vídeos falsos é a chamada Rede Generativa Adversarial.]