O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, decidiu que o Recurso Extraordinário (RE) 845779, que envolve uma mulher trans impedida de usar o banheiro feminino num shopping center de Florianópolis (SC), não envolve matéria constitucional e, portanto, não deve ser julgado pela Corte. Na prática, isso significa que o Plenário não chegou a discutir o direito de pessoas trans de serem tratadas socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero, o que poderá ser feito em outro processo futuramente. O julgamento ocorreu na sessão de quinta-feira (06/06).
Para alguns, o STF começou a pavimentar com a decisão de quinta-feira uma nova vitória dos direitos da comunidade LGBTQIAP+. Os ministros marcaram posição para reconhecer que pessoas transexuais não podem ser impedidas de usar os banheiros públicos correspondentes à sua identidade de gênero. “Nós estamos lidando com a minoria mais estigmatizada da sociedade brasileira, mais constante vítima da violência transfóbica. Proteger grupos vulneráveis é, por definição, um dos principais papeis do Supremo Tribunal Federal”, defendeu o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF. No entanto, frisou ele, não era esse tema que estava sendo julgado pelo Supremo.
Os ministros concluíram que, por questões processuais, não poderiam fixar uma tese de repercussão geral a partir desse caso concreto e rejeitaram a ação, mas adiantaram que a discriminação de pessoas trans nos banheiros públicos é inconstitucional e que devem revisitar o tema em breve. “Espero que a matéria volte pelo caminho idôneo”, disse o ministro Flávio Dino. O ministro Luix Fux também adiantou que compartilha as “preocupações” sobre violações aos direitos de comunidades vulneráveis e defendeu que as pessoas trans têm o “direito de ser e existir e viver em toda a sua plenitude”.
Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Cármen Lúcia queriam estabelecer uma tese contra a discriminação para o uso dos banheiros públicos já neste momento, mas ficaram vencidos. “A discriminação contra uma pessoa transexual é evidentemente um fato constitucional, aliás é um fato inconstitucional”, criticou Barroso. “O tema voltará e nós teremos a oportunidade de discutir o mérito.” Uma ação movida pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais, sobre o mesmo tema, foi protocolada no mês passado e aguarda julgamento. A relatora é a ministra Cármen Lúcia.
Sobre o caso julgado na quinta-feira, em primeira instância, o shopping foi condenado a pagar R$ 15 mil de indenização à mulher trans, mas a sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), que entendeu que não houve dano moral, mas “mero dissabor”. Contra essa decisão, a mulher recorreu ao STF.
Em 2014, o Plenário havia reconhecido a Repercussão Geral da matéria do recurso, entendendo que o tema em discussão era o direito de pessoas transexuais serem tratadas socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público. Porém, no julgamento de quinta-feira, a conclusão da maioria do Plenário foi a de que esse aspecto não foi tratado na decisão do Tribunal de Justiça catarinense, que se limitou à análise da incidência de danos morais, e, por isso, o caso concreto não era adequado para a discussão da questão constitucional. Desse modo, o Supremo cancelou o reconhecimento da repercussão geral da matéria (quando a decisão vale para casos semelhantes).
O julgamento do mérito foi iniciado em 2015, com os votos do relator e atual presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, e do ministro Edson Fachin. Ambos foram favoráveis ao recurso para definir que esse grupo social tem o direito de ser tratado conforme sua identidade de gênero. Na quinta-feira, a ministra Cármen Lúcia acompanhou esse entendimento. No voto-vista que prevaleceu no julgamento, o ministro Luiz Fux assinalou que o tribunal estadual, ao negar a indenização, concluiu que não houve provas de abordagem rude, agressiva ou motivada por preconceito ou transfobia. Segundo Fux, o STF não pode analisar uma questão que não foi abordada na decisão objeto do recurso.
No mesmo sentido, o ministro Flávio Dino observou que a sentença questionada foi exclusivamente fundamentada no Código de Defesa do Consumidor, legislação infraconstitucional. Votaram no mesmo sentido os ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
ADPFs
A questão específica do direito de pessoas transexuais de utilizarem banheiros e demais espaços de acordo com sua identidade de gênero, sem discriminação, foi trazida recentemente ao Supremo em cinco Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs 1169, 1170, 1171, 1172 e 1173).
No final de fevereiro, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou projeto de autoria do senador Magno Malta (PL-ES) que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e proíbe, em escolas públicas e privadas, o uso do banheiro com base na identidade de gênero. A proposta ainda precisa passar por outras votações, em comissão do Senado e na Câmara dos Deputados, para virar lei.