O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) entregou à equipe de transição do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) um anteprojeto que estabelece uma série de mudanças nas Polícias Militares Estaduais e nos Corpos de Bombeiros Militares. São 16 tópicos que, caso sejam acolhidos pela equipe de transição que trabalha na questão da segurança pública, poderão ser encaminhados ao Congresso Nacional a partir de 2023 para discussão.
As propostas têm o objetivo de manter e ou aumentar o poder dos governadores dos 26 Estados e do Distrito Federal sobre as Polícias Militar e Civil e Corpo de Bombeiros, reduzindo, assim, a influência do Exército e do Governo Federal sobre as corporações estaduais. As medidas visam, sobretudo, promover uma reengenharia nas instituições policiais que, desde a ascensão do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao poder, após ser eleito em 2018, têm enfrentado problemas diários com a indisciplina e hierarquia por conta da politização das forças policiais.
No Espírito Santo, por exemplo, policiais e bombeiros militares da ativa costumam usar redes sociais, principalmente em grupos de WhatsApp, para atacar o governador Renato Casagrande (PSB) e o comandante-geral da PM, coronel Douglas Caus. Outros usam as mesmas redes sociais para defender golpe de Estado e a volta da ditatura militar ao poder.
Na Polícia Civil, o anteprojeto prevê a unificação das carreiras de escrivães, investigadores e agentes de Polícia. Na PM e no Corpo de Bombeiros, o projeto propõe o debate sobre a criação da carreira única, algo desejado pelas praças e que não conta com o apoio do oficialato.
O esboço do texto foi entregue ao coordenador da transição, Aloizio Mercadante, pelo diretor-presidente do FBSP, professor Renato Sérgio de Lima. Ele explica que o anteprojeto não tem a finalidade de desmerecer os esforços pela aprovação das novas Leis Orgânicas das Polícias Militar e Civil, que estão em análise no Congresso Nacional, mas visa complementar a regulamentação do parágrafo 7º do artigo 144 da Constituição Federal, especificamente no que diz respeito à organização e atuação eficiente/integrada das forças de segurança pública dos Estados. O dispositivo da Carta Magna citado pelo professor Renato diz que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.”
Entidades de classe dos policiais militares e civis e bombeiros militares pressionam o Governo Federal e o Congresso Nacional a aprovar as Leis Orgânicas que restringem o poder dos governadores sobre as instituições. Na PM e no Corpo de Bombeiros, os governadores teriam que escolher o comandante-geral com base na escolha feita por oficiais superiores.
“A proposta que apresentamos cobre lacunas deixadas nas discussões travadas até agora sobre as Leis Orgânicas de cada uma das polícias. O texto busca impor limites, atribuições e reforça a subordinação das polícias aos governadores. A proposta respeita o pacto federativo, fortalece o governador, diz o que as polícias podem fazer. Vimos o processo de radicalização no dia a dia da polícia porque elas decidem o que é certo e o que é errado. Então estamos dizendo: vai ter que ter um regulamento disciplinar, publicar dados não quando quer, mas por obrigação. A polícia precisa ser valorizada, respeitada e bem estruturada, mas também precisa prestar contas”, explicou Renato Sérgio de Lima ao Estadão.
O professor Renato explica ainda que forças de segurança pública são responsáveis por preservar a ordem e a aplicação da lei, de modo a assegurar e universalizar direitos fundamentais. “Elas são instituições de Estado essenciais para o pleno exercício da cidadania e, por isso mesmo, em democracias, precisam ser simultaneamente valorizadas e controladas em suas competências e padrões de atuação.”
Todavia, salienta ele, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública tem alertado nos últimos anos, há no País sérias dissonâncias e sobreposições legais que dificultam a atividade policial e geram ruídos e antagonismos na relação federativa e no debate sobre o tema no Brasil. “A grande maioria da legislação infraconstitucional que rege a forma de atuação das forças de segurança é anterior à Constituição Federal e, com isso, muitas dos princípios e comandos da nossa Carta Magna não estão sendo observados no cotidiano operacional das corporações listada no seu Artigo 144”, pontua Renato Sérgio de Lima na justificativa do anteprojeto.
Os 16 pontos do anteprojeto que mudam a segurança pública
- Sem desmerecer os esforços pela aprovação de leis orgânicas específicas para cada tipo de força de segurança existente no país, a Lei Geral aqui proposta visa complementar a regulamentação do parágrafo 7º do artigo 144 da Constituição, especificamente no que diz respeito à organização e atuação eficiente/integrada das forças de segurança pública dos estados;
- O anteprojeto também tem como função tentar preencher algumas lacunas importantes da legislação, como a sugestão de definição dos conceitos de poder de polícia e ordem pública na Lei do SUSP (aplicável também à Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal), além de se propor a revogar a legislação sobre a PM e o CBM oriunda da ditadura militar, incompatível com o Estado Democrático de Direito fundado em 1988;
- O projeto revoga expressamente o Decreto-Lei 667, o R-200 e o decreto atual sobre convocação das PMs e CBMs pelo Exército. No mesmo sentido, extingue a Inspetoria Geral das Polícias Militares e compartilha as competências federais entre os Ministérios da Segurança e da Defesa no que diz respeito ao controle de material bélico das forças de segurança. Porém, não muda a legislação atinente à previdência dos militares;
- Pela urgência que temas econômicos terão na relação entre os Poderes Executivo e Legislativo, que demandará foco para alterações constitucionais, a minuta ora proposta não menciona/aborda temas que demandam alteração da Constituição. O foco da minuta reside na esfera infraconstitucional, mesmo reconhecendo que elas serão, em um segundo momento, fundamentais para a reforma do modelo que organiza a área no Brasil;
- A minuta buscou respeitar o Pacto Federativo, fortalecendo a posição dos governadores e explicitando que: a) as polícias e corpos de bombeiros militares tenham seus próprios códigos de conduta; b) convocação dessas forças pelo Presidente da República demandará consulta ao Conselho de Defesa Nacional e anuência do governador; c) que as armas dos bombeiros e das PMs sejam cadastradas também no Sinarm, da Polícia Federal, além do Sigma, gerenciado pelo EB.
- Nesse mesmo sentido, o controle sobre a dotação do armamento das forças de segurança passa a ser uma atribuição conjunta do novo Ministério da Segurança Pública e do Ministério da Defesa;
- A gestão baseada em planejamento e em evidência das forças de segurança foi reforçada com a exigência de elaboração de planejamento estratégico e de plano de comando; da previsão do fortalecimento da transparência ativa mediante a publicação de relatório anual com informações básicas sobre gestão administrativa e de pessoal;
- Muitas são as novidades sobre gestão de recursos humanos previstas na minuta, como a existência de critérios mínimos para fixação e distribuição de efetivos; a exigência de correlação entre cargo/status na carreira e função a ser exercida; a ideia da promoção horizontal (para fins remuneratórios) e de progressão vertical (para fins de exercício de novas funções); a exigência de capacitação específica para o exercício das novas funções como pré-requisito para a progressão funcional; conteúdos básicos para os concursos; a exigência de realização de mapeamento de competências e estudo científico dos cargos para que possa ser definido a função de cada uma das carreiras da instituição.
- Ainda em relação à gestão de pessoas um ponto importante é a forte restrição à cessão de policiais mediante a redução dos locais em que o tempo de serviço policial/militar seguirá contando. Há também a obrigatoriedade de que as forças de segurança estabeleçam a jornada semanal de trabalho dos profissionais e a vedação ao uso ordinário das escalas de 24 horas.
- É prevista a possibilidade de criação de carreiras administrativas, não policiais, para exercerem as atividades que não são atividades-fim. Com isso, foi excluída a figura do militar temporário, que tinha sido incluída no DL 667 pela reforma da previdência dos militares.
- Com relação aos direitos e deveres três pontos são importantes: a vedação do comparecimento de profissionais de segurança fardados/uniformizados em manifestações políticas (o que já existe no 667/69 e agora será extensível às demais forças de segurança); a padronização do prazo para desincompatibilização para candidaturas políticas e a vedação do uso das imagens institucionais para obtenção de vantagem pessoal (o problema das redes sociais).
- Com relação à Polícia Civil a principal inovação é a unificação das carreiras, particularmente de escrivão e agente.
- No que diz respeito à PM e ao CBM o projeto propõe o debate sobre a carreira única. Os postos e graduações, por hora, não foram detalhados, mas a necessidade de fazer isso, como hoje ocorre no DL 667, foi delegada para Ato do Poder Executivo Federal para cada tipo de força de segurança.
- Uma questão importante diz respeito à previdência dos militares: como o projeto revoga o DL 667, o sistema previdenciário atualmente vigente foi incorporado, textualmente, pelo projeto. O Capítulo V, seção I, do presente Anteprojeto é, portanto, a transcrição literal da legislação vigente e que precisa ser aqui reproduzida.
- É apresentada uma regulamentação básica da polícia penal, estritamente dentro dos limites constitucionais que preveem sua função de fazer segurança dos estabelecimentos penais. Há alguns apontamentos específicos em relação ao uso de arma de fogo por esta polícia, como a vedação destes equipamentos dentro dos estabelecimentos penais, conforme as normativas internacionais.
- O projeto veda o uso pelas forças de segurança de softwares e equipamentos de escuta e de inteligência que não sejam rastreáveis e auditáveis em seu uso. Para assegurar essa vedação, o projeto altera a lei do Fundo para que seus recursos não possam ser utilizados para aquisição de sistemas não rastreáveis e auditáveis.