Dois eleitores da cidade de Caracol, no Piauí, situada a 610 quilômetros da Capital Teresina, fizeram uma aposta sobre o resultado da eleição de 2020 para prefeito do município. A aposta envolvia bens imóveis, animais, veículos e dinheiro em espécie, no valor total de R$ 440 mil. O perdedor da aposta, o lavrador Douglas Pereira da Silva, entrou na Justiça para tentar rever os bens que já estavam em nome do vencedor, o comerciante Alexandre, dono de verdurão. Os dois eleitores, inclusive, celebraram o contrato de aposta por escrito, com assinaturas e firmas reconhecidas em cartório. A sentença favorável ao vencedor da aposta foi proferida pelo juiz capixaba Robledo Moraes Peres de Almeida, na última quinta-feira (17/03).
A eleição de outubro de 2020, em Caracol, foi vencida por Gilson Dias de Macedo Filho (PP), que obteve 3.474 votos. Em segundo lugar ficou Valéria Paes Landim Ribeiro (PT), 2.763 votos; seguida de Fabiano Dias da Costa (PTC), 282 votos. Após a eleição, o vencedor, Alexandre, tomou a posse de um dos imóveis. Por isso, Douglas, o perdedor, ajuizou uma Ação de Reintegração de Posse, com pedido de liminar e indenização por danos materiais, proposta também por esposa, Carmilene Paes da Silva Oliveira.
Douglas e Carmilene atribuíram à causa o valor de R$ 1 mil. No entanto, posteriormente requereram que o valor da causa fosse reconsiderado para R$ 40 mil e que fosse concedida a gratuidade da Justiça, sob a alegação de hipossuficiência econômica, pois seriam lavradores. A Justiça concedeu a gratuidade e negou o pedido de concessão de liminar.
Em contestação. Alexandre, o vencedor, alegou que as apostas no período eleitoral são de conhecimento público e notório da população de Caracol, por ser um município pequeno, com alta circulação de informações, aliado à circunstância de que as redes sociais em muito contribuem para a propagação de apostas, especialmente durante o período que antecede as eleições. A defesa dele juntou jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que entende a dívida de jogo como autonomia da vontade e requereu a improcedência do pedido. Já o Ministério Público do Estado do Piauí requereu o encaminhamento dos autos à Polícia Civil para apuração de eventual crime.
O magistrado que processou os autos, Robledo Moraes Peres de Almeida, tomou posse no cargo de Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Piauí no dia 17 de agosto de 2017. Até antes da posse, ele era capitão do Quadro de Oficiais Combatentes da Polícia Militar do Espírito Santo, onde ingressou em 3 de junho de 2002. Ele também havia sido aprovado para o cargo de Promotor de Justiça do Estado de Tocantins, mas optou pela magistratura. Peres, como é conhecido, é Capitão da Reserva Não Remunerada da PM capixaba.
“Inicialmente registro a lamentação deste Magistrado em ter que julgar esse processo”, diz ele na sentença dos autos de número 0800230-60.2020.8.18.0089. “Em uma região tão pobre e carente, como o extremo sul e sertão do Piauí, pessoas esbanjam elevados valores em aposta sobre o resultado da eleição, enquanto a maioria da população sofre com a seca, a fome e a inexistência contínua do serviço público de fornecimento de água”, completou o capixaba.
“Ademais, supostamente o Autor DOUGLAS celebrou a Aposta sem informar a sua companheira, o que é lastimável”, prosseguiu o magistrado. Na sentença, o juiz da Comarca de Caracol e Juiz Eleitoral da 79ª Zona Eleitoral, Robledo Moraes Peres, negou o pedido de reintegração de posse, sob o fundamento de que na ação possessória não se discute a propriedade do bem, mas apenas a posse.
O magistrado entendeu que a posse não seria injusta, pois não seria violenta, clandestina ou precária (requisitos da justa posse previstos no artigo 1.200 do Código Civil), mas oriunda de convença anterior. A sentença aponta que o artigo 814 do Código Civil estabelece que “as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou”.
Todavia, destacou o juiz Robledo Moraes Peres, a norma legal deve ser interpretada em conjunto com a boa fé, com o respeito à autonomia da vontade e com os princípios de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (“Nemo auditur propriam turpitudinem allegans”) e da vedação do comportamento contrário (“venire contra factum proprium”), conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Argumentou ainda ser inegável que moralmente houve a celebração de um contrato entre as partes (inclusive com assinaturas reconhecidas em cartório), que não foi honrado por um dos apostadores, rompendo uma tradição dos municípios do interior, nos quais era costume se dizer “que a palavra vale mais do que o papel”.
Por fim, o magistrado afastou o argumento do autor (Douglas) de que em relação aos bens imóveis seria necessário consentimento de sua companheira, Carmilene Paes, para a validade do contrato, já que a necessidade outorga uxória somente se aplica ao casamento, mas não à união estável.
O juiz Robledo Moraes Peres condenou o autor da ação, Douglas, a pagar as custas e honorários de advogado, fixadas sobre o valor da causa, com observância do art. 98, § 3º, do CPC.