O juiz Victor Yuri Ivanov dos Santos Farina, da 2ª Vara Federal Criminal de Vitória, determinou a soltura de oito dos acusados de integrar um grupo criminoso que teria enviado de maneira ilegal mais de R$ 400 milhões para a China e Estados Unidos – o dinheiro é fruto de corrupção de empresas envolvidas na Operação Lava Jato. Até quem está foragido foi beneficiado pela decisão do magistrado. Os acusados ganharam o direito de sair às ruas com tornozeleira eletrônica. A organização movimentou mais de R$ 800 milhões de forma ilegal.
Os acusados tinham sido presos no âmbito da Operação Piànjù, realizada em 15 de dezembro de 2020, numa ação conjunta da Divisão Especializada de Furtos e Roubos de Veículos (DFRV) e do Departamento Especializado de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil capixaba, e pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES).
A operação contou com apoio das Polícias Civis de São Paulo, Alagoas e Ceará, além da Capitania dos Portos da Marinha do Brasil. Na operação, a Polícia Civil apreendeu cerca de R$ 3,5 milhões em espécie, além de veículos e embarcações de luxo.
A decisão do juiz federal beneficia os denunciados Pablo David Eliseo Sandes, Raphael Filgueiras Medeiros, Federico Guerreros Rodrigues, Abel Novais, Wilson Marcelino Caoduro, Roger de Genova, Mário José Poloni e José Carlos da Luz. Todos são empresários milionários e radicados no Espírito Santo. No grupo há também o argentino Pablo Sandes, que reside na Praia do Canto, em Vitória. Na foto de A Gazeta, ao lado, Pablo aparece junto com Wilson Caoduro.
Victor Yuri Ivanov Farina substituiu a prisão preventiva por medidas cautelares diversas, como a monitoração eletrônica, com a indicação de limite territorial coincidente com o Estado de residência dos investigados e proibição de proximidade com os demais; proibição de manterem contato e qualquer estirpe de comunicação entre si, com fiscalização empreendida por meio do monitoramento eletrônico; e proibição de se ausentarem do Estado em que residem sem autorização judicial e do território nacional.
Com relação a Roger de Genova, tendo em vista que está foragido, o juiz federal esclarece que fica mantida a ordem anteriormente expedida para a sua captura. Porém, diz o magistrado, “vale dizer, apenas para a colocação de tornozeleira eletrônica, sem, no entanto, o recolhimento ao cárcere. Poderá a defesa do acusado, de todo modo, evitando a permanência da anotação do mandado, agendar sua apresentação espontânea para submissão às medidas cautelares impostas. Providencie a Secretaria a substituição do mandado já cadastrado no BNMP, para fazer constar a ressalva de que, detido, o acusado deverá ser registrado para monitoramento eletrônico, e liberado em sequência”.
Quanto a Mário José Poloni e José Carlos da Luz, decidiu o juiz Victor Yuri Ivanov Farina, deverão a Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), responsável pelo sistema prisional do Espírito Santo, “e a Secretaria congênere de São Paulo providenciar as necessárias alterações no cadastro dos equipamentos de monitoração eletrônica, inclusive de forma que o limite territorial passe a ser o Estado de residência dos investigados, além da proibição de proximidade com os demais”.
No que tange à situação do acusado Carlos Roberto Pereira, não houve pedido a seu favor, tampouco informações a respeito de decretação de prisão preventiva, razão pela qual não há que se falar em imposição das medidas cautelares diversas do cárcere.
“A despeito de no registro do evento 13 (BNMP) constar sua situação como ‘preso provisório’, vejo, em consulta ao Habeas Corpus n. 0026570-29.2020.8.08.0000, que, inexistindo pedido de prorrogação da sua prisão temporária, foi posto em liberdade em 19/12/2020”, esclareceu o juiz federal.
Por derradeiro, no tocante a Affonso José Lopes Leite, “sua situação é diversa daquela vivenciada pelos demais, uma vez que, residente no exterior, não lhe seriam aplicáveis, ao menos em princípio, as mesmas medidas cautelares impostas em substituição à prisão preventiva que foi outrora decretada. Além disso, seu defensor não apresentou qualquer pleito posterior ao encaminhamento dos autos à Justiça Federal, não me sendo possível, por isso, avaliar se alguma outra medida permitiria sua vinculação ao feito em forma satisfatória. Destarte, aguardarei manifestação defensiva ou a superveniência do momento de crivo da denúncia para eventualmente deliberar a respeito”, decidiu o juiz Victor Yuri Ivanov Farina.
Por fim, levando em conta a substituição da custódia dos acusados por cautelares outras, associada à complexidade do processo, “revejo a parte final da decisão contida no evento 30, fixando o prazo de 20 (vinte) dias para o Ministério Público Federal se manifestar sobre a ratificação, ou não, da denúncia e dos demais atos praticados e, por conseguinte, sobre a competência para processamento e julgamento desta demanda penal, a contar da presente decisão”.
Magistrado alega contemporaneidade para libertar os réus
Para determinar a soltura dos acusados, substituindo a prisão por tornozeleira eletrônica e outras medidas, o juiz federal Victor Yuri Ivanov Farina alegou o instituto da contemporaneidade, quando os fatos ilícitos não são contemporâneos à época da prisão.
“Dois são, portanto, os focos temporais para a análise da necessidade atual da segregação cautelar (contemporaneidade, como atualmente se a nomina): o decurso de lapso temporal entre as operações suspeitas e a decretação das prisões, e, lado outro, a informação, tecida na incoativa, de que a investigação persistia e, com ela, a necessidade de mantença das custódias”, diz o magistrado na decisão.
No entanto, ao julgar Habeas Corpus 185.893/SP, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, teve outro entendimento. O HC, cujo acórdão foi publicado em 26 de abril de 2021 – o julgamento ainda não foi concluído –, é relativo a um Agravo Regimental, que tratou de “CRIMES DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E CORRUPÇÃO ATIVA; CONTRAVENÇÃO PENAL DE EXPLORAÇÃO DO JOGO DO BICHO. PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. OFENSA NÃO CONFIGURADA. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. CONTEMPORANEIDADE. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MANIFESTA ILEGALIDADE OU TERATOLOGIA NÃO IDENTIFICADAS”. A ministra deu a seguinte decisão:
“A jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a necessidade de interromper a atuação de organização criminosa e a fundada probabilidade de reiteração delitiva constituem fundamentação idônea para a decretação da custódia preventiva. Precedentes”;
“A contemporaneidade diz com os motivos ensejadores da prisão preventiva e não o momento da prática supostamente criminosa em si, ou seja, é desimportante que o fato ilícito tenha sido praticado há lapso temporal longínquo, sendo necessária, no entanto, a efetiva demonstração de que, mesmo com o transcurso de tal período, continuam presentes os requisitos ( i) do risco à ordem pública ou (ii) à ordem econômica, (iii) da conveniência da instrução ou, ainda, (iv) da necessidade de assegurar a aplicação da lei penal”.
Tribunal declinou competência para a Justiça Federal
Inicialmente, o caso foi parar na Justiça Estadual, que, inclusive, já havia acolhido a denúncia contra os acusados. Denúncia formulada pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo e aceita pela juíza Graciela de Rezende Henriquez, da 5ª Vara Criminal de Vitória. No dia 14 de dezembro de 2020, a magistrada deferiu representações por prisões preventivas, por prisões temporárias, por busca e apreensão, pelo sequestro de bens móveis e imóveis, bem como pelo sequestro de valores dos denunciados.
Em 18 de dezembro de 2020, por sua vez, foi recebida a denúncia, com a manutenção das cautelares deferidas. Posteriormente, entretanto, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, em julgamento de Habeas Corpus, declinou a competência em favor da Justiça Federal, determinando aquela esfera a remessa dos autos, bem como de seus apensos.
Coube a juíza Graciela de Rezende Henriquez assinar o despacho, em que remeteu os autos à Justiça Federal: “Isso consignado, antes de mais nada, registro que, dentre a decisão de recebimento da denúncia, até o momento presente, foram proferidas 4 decisões (no dia 8 de janeiro, no dia 5 de fevereiro, no dia 10 de fevereiro e no dia 24 de março), diligenciando para que fossem cumpridas as determinações anteriores, bem como em atenção à avaliação das prisões preventivas decretadas. Nesse sentido, assevero que não subsiste prisão preventiva decretada pendente de análise por período superior a 90 (noventa) dias. Ainda, esclareço que o processo correu de forma extremamente célere, considerando os elementos presentes: recesso judiciário, pandemia, complexidade da demanda e número de réus”.
A magistrada ainda pontuou: “Desse modo, ainda que por diversas vezes o trâmite tenha sido prejudicado pela frequente juntada de petições alheias do que seriam os mais indicados momentos processuais, bem como pela necessidade de reforço de comandos não cumpridos, certo é que o processo se encontra em fase de Resposta à Acusação por razões que não podem ser atribuídas ao Poder Judiciário, que nunca deixou pedidos pendentes de análise, ressalvado o momento atual, em virtude de decisão hierarquicamente superior. Atesto, também, que foi conferido amplo e irrestrito acesso aos autos, até mesmo com a entrega de mídia digital contendo cópia integral destes, muito embora de autos físicos se tratassem. Isso dito, em respeito à decisão proferida em 30 de abril de 2021, pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo, a qual reconheceu a incompetência da Justiça Estadual, REMETAM-SE os autos, bem como todos os seus apensos e incidentes à JUSTIÇA FEDERAL. Atentem-se para as anotações e baixas necessárias. Diligencie-se, com urgência”.
Saiba Mais
A Operação Piànjù ocorreu de forma simultânea em quatro Estados. No Espírito Santo a operação ocorreu nos municípios de Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica, em São Paulo decorreu na Capital, Santos e Jaguariúna, no Ceará intercorreu em Fortaleza e em Alagoas passou-se Maceió. Uma caneta avaliada em R$ 300 mil foi apreendida na operação policial.
Ao todo 118 agentes foram empregados na operação. Foram expedidos 126 mandados judiciais, sendo 18 mandados de prisão preventiva, cinco mandados de prisão temporária, 30 mandados de busca e apreensão, 23 sequestros de embarcações, 43 ordens judiciais de bloqueio de contas bancárias e duas ordens judiciais de suspensão de atividades econômicas.
Dentre as ordens de busca e apreensão encontram-se 12 imóveis, três veículos de luxo (Porsche Panamera, Maserati Granturismo e Mercedes Benz GLA 200 ff), além de 12 motos aquáticas e 11 embarcações.
A operação Piànjù é fruto de uma investigação que perdurou dois anos e denotou uma célula de uma organização criminosa que atuava no Espírito Santo. Essa associação era composta por dois grandes empresários capixabas e diversos outros membros, que agiam como “prestadoras de serviços” de lavagem de capitais para outras organizações criminosas.
O grupo criminoso desarticulado atuava de forma estruturada com a finalidade de praticar diversos crimes, entre eles: organização criminosa, lavagem de dinheiro, falsificação de documentos públicos e particulares, inserção de dados falsos em sistemas informatizados, falsidade ideológica, estelionato e falsa comunicação de crime.
O esquema criminoso foi descoberto a partir de um falso comunicado de roubo de um caminhão. “Descobrimos que ele não existia fisicamente e que só constava no banco de dados do Detran e do Renavan. Esses caminhões ‘fantasmas’ serviam de patrimônio para essas empresas para que elas pudessem fazer o envio de dinheiro para a China e para os Estados Unidos”, disse o titular da DFRV, delegado João Paulo Pinto.
“Nessa primeira fase da investigação sabemos que o dinheiro era enviado por determinadas empresas envolvidas em outros crimes, mas queremos saber se esses recursos pertenciam às companhias do Espírito Santo e de quais atividades eles eram fruto. Sabemos que os empresários daqui ficavam com uma parte do dinheiro e o resto mandava para fora. Eles pagavam os impostos para fugir das fiscalizações dos órgãos de controle”, explicou o delegado.
Durante a investigação, comprovou-se que a organização criminosa possuía ligação com empresas e pessoas investigadas e denunciadas no âmbito de diversas fases da Operação Lava Jato, realizadas por meio da Polícia Federal e Ministério Público Federal. Entre elas a Operação Chorume, Operação Descarte, bem como empresas que já foram investigadas por atuarem com os doleiros Alberto Youssef e Nelma Kodama, todos no âmbito da força tarefa da Operação Lava Jato.
Uma das empresas é investigada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, por desvios de mais de R$ 98 milhões em Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tendo esta Organização Criminosa sediada no Estado do Espírito Santo movimentado mais de R$ 800 milhões de reais, valor global.