O momento pandêmico vem sendo marcado por uma maior flexibilidade para a realização de acordos, mesmo que o contexto econômico por ele gerado possa se mostrar, em princípio, desfavorável para se assumir compromissos. A expectativa é que a maior flexibilidade verificada em acordos realizados no último semestre seja também sentida nos ambientes de negociação coletiva.
Vivemos um momento ímpar de nossa história como sociedade humana, talvez antes enfrentado somente há mais de um século durante a gripe espanhola. As tão necessárias medidas adotadas por todos, em diversos níveis, para impedir ou ao menos retardar a disseminação da Covid-19 em escala global, afetaram planos, mercados e negócios de forma aguda e imprevisível.
Superado o baque da instalação da pandemia, a preocupação seguinte se direcionou à economia, e com a mais absoluta razão. Empresas fecharam, temporária ou definitivamente, ou reduziram suas operações a níveis de quase ociosidade, enquanto se aguardava uma normalização, ainda que parcial, das atividades e do sistema de saúde, que se adaptava para combater seu novo e poderoso inimigo.
Mesmo com a necessidade evidente da manutenção dos cuidados com a saúde pública, o fato é que existe uma “conta” a ser paga decorrente do período de retração econômica. Logo no início deste período complexo, ainda havia o temor de que o Poder Judiciário pudesse enfrentar sérias dificuldades quando precisasse “absorver” a demanda decorrente do aumento da inadimplência frente aos impactos comerciais da pandemia.
Até o presente momento, isso não ocorreu, o que é curioso. Em conversas com profissionais de diversos setores, em especial de grandes empresas e instituições financeiras, nota-se um discurso em comum: a realização de acordos, extra ou judicialmente, vem se intensificando neste ano difícil.
Se pudéssemos sintetizar uma explicação geral para este fenômeno, uma das conclusões possíveis seria a própria imprevisibilidade dos próximos meses. Indefinições sobre a vacina e o possível ressurgimento de restrições para frear novas ondas da pandemia estão estimulando os naturais credores neste cenário – bancos e grandes fornecedores – a buscarem liquidez. A manobra tem como objetivo amparo financeiro para novas dificuldades, ou mesmo oportunidade de investimento em novos negócios.
Matemática da negociação
Na busca por liquidez, o raciocínio natural em um ambiente de negociação envolvendo inadimplência – minimizar perdas – inverte-se para a maximização de ganhos. Se a dívida é 100, e termina sendo concedido um desconto de 70 para que haja o pagamento, entende-se que foram ganhos 30, e não o contrário.
O mesmo acontece em relação à concessão de prazos ou períodos de carência. Os grandes players sabem que para os pequenos e médios empresários a imprevisibilidade e a estagnação são muito mais nocivas. Em um momento como este, prolongar uma dívida não significa aumentar o risco de nova inadimplência, mas sim minorar o risco de que a mera insistência no cumprimento dos contratos em seus termos originais tenha como resultado concreto a perda daquele parceiro em definitivo.
Tendo em vista que a realização de acordos se mostra muito mais frutífera no atual momento se comparada com a ausência de flexibilidade de negociação, ou mesmo com a judicialização do problema, voltemos nosso olhar ao ambiente onde esta transação pode ocorrer.
Se a inexecução do contrato já se mostra judicializada, obviamente o melhor ambiente para que ocorra uma composição será o próprio processo. Nestes casos, se as partes em si já aceitaram ceder parcialmente em suas posições, caberá aos advogados de cada uma ponderar que a celebração de um acordo retira da situação a variável “Poder Judiciário”, com seus prazos e interpretações próprios. A realização de um acordo limita os riscos ao seu descumprimento, e se esse ocorrer a sua execução poderá retornar à esfera judicial, mas em um ambiente processual muito mais restrito e controlado.
Na mesma situação, mas sendo cumprido o acordo, o conflito de interesses estará resolvido, e dentro das possibilidades estipuladas pelas próprias partes, o que significa um cenário de inadimplência mais improvável.
Por outro lado, se o objeto de negociação ainda não adentrou as esferas judiciais, as partes devem entender que o Poder Judiciário tem suas limitações. Aqui cabe destacar o louvável trabalho desempenhado pelos Tribunais nacionais durante a pandemia na obtenção de resultados dignos de aplauso mesmo com o regime de trabalho remoto.
Por mais que uma das partes entenda ter o contrato e/ou a lei absolutamente de acordo com seus interesses e interpretações, existe uma garantia constitucional inviolável de direito ao contraditório e à ampla produção de provas, etapas que terão de ser rigorosamente enfrentadas e superadas até que se obtenha a execução da obrigação em si. Nem é preciso dizer que se trata de etapas complexas, o que se desdobra em dispêndio do ativo mais precioso de todos, o tempo (e, sim, significam também relevantes despesas financeiras com custas, honorários e outros).
Suporte profissional
Em qualquer uma dessas hipóteses, é fundamental que as partes estejam assessoradas por profissionais com vivência em mediação e conciliação. A figura do negociador neutro, além de outros tantos motivos técnicos, traz impessoalidade às trocas que serão necessárias entre as partes para que se chegue a um denominador comum. E se a negociação envolver temas mais complexos, que sobressaem à esfera comercial, a presença de advogados no cenário mostra-se não somente frutífera como imprescindível ao oferecer análises que serão preponderantes na transação.
As considerações aqui apresentadas são aplicáveis a questões individuais, envolvendo a empresa e um parceiro financeiro ou comercial, e também coletivas, que incluam todos os parceiros da empresa, de modo a evitar que esta termine em uma situação de crise. Nos casos em que a pandemia afetou as operações da empresa em tamanho espectro que a impossibilite de cumprir diversos de seus contratos em seus termos originais, as ferramentas previstas na Lei 11.101/2.005 se mostram pertinentes no auxílio ao empresário para se manter no mercado.
A recuperação judicial – e também a extrajudicial, cuja utilização, com auxílio da jurisprudência, vem se intensificando de forma saudável nos últimos anos –, apesar do caráter processual que carrega consigo, envolve por vezes centenas de negociações. O objetivo é a aprovação de um plano de recuperação apto a não somente atender aos interesses dos credores, mas também possibilitar a continuidade da empresa no mercado.
Assim como o ambiente atual vem se mostrando favorável para a negociação empresarial, espera-se que a maior flexibilidade verificada em acordos realizados no último semestre seja também sentida nos ambientes de negociação coletiva.
Em resumo, fato é que todo momento é bom para um acordo. Entretanto, a pandemia mostrou novos pontos de vista sobre a inadimplência contratual e uma maior flexibilidade nas negociações, bem como uma maior atenção do mercado às soluções consensuais. De todas as mudanças que o “novo normal” nos trouxe, esta certamente será uma daquelas que torceremos que fique.
Perfil Paulo Calheiros
Formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2005) e pós-graduado em Direito Empresarial pela mesma instituição de ensino (2010), Paulo Calheiros é especialista em Direito Falimentar e Recuperação e Reestruturação Empresarial. Desde 2007, atua na Mandel Advocacia, localizada no bairro paulistano de Higienópolis, referência nas áreas falimentar e de atividades contenciosas e consultivas. Em 2009, se tornou sócio do escritório e, além das atividades jurídicas e forenses cotidianas, passou a coordenar uma equipe de advogados.
Calheiros também possui MBA em Gestão Legal pela Escola Paulista de Direito (2015) e importantes cursos de extensão dentro de sua especialidade, como Contratos e Operações Bancárias pela Fundação Getúlio Vargas (2012) e Fundamentos da Economia pela Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas-FIPE (2017). Em 2021, entrega defesa de tese de seu mestrado em Direito Empresarial pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales-UCES, de Buenos Aires, Argentina, referente ao curso concluído em 2019.
A atuação em mais de uma centena de processos de falência e recuperação judicial de empresas dos mais diversos ramos agregou ao advogado conhecimento bastante abrangente da área. A vasta experiência trouxe, também, importante compreensão sobre o funcionamento de muitos mercados, com destaque para metalurgia, química, agrário, automotivo e laticínios.
Paralelamente às atividades da Mandel Advocacia, geriu por 2 anos, entre 2018 e 2020, a Cozinha de Rosália, em Lisboa, Portugal, startup do ramo alimentício, dedicada a servir culinária brasileira à comunidade lisboeta. A atuação à frente do negócio como CEO e sócio majoritário, cuidando da coordenação de equipe e fazendo a cogestão administrativa e financeira, contribuiu ainda mais para o entendimento da área que se tornou a grande especialidade de Paulo Calheiros.