NOTA PÚBLICA
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO – CONAMP, entidade de classe que representa os membros dos Ministérios Públicos dos Estados, Distrito Federal e Territórios e Militar, vem a público se manifestar sobre a Lei nº 13.964, publicada em 24 de dezembro de 2019, que pretende aperfeiçoar a legislação penal e processual penal do país, especialmente em relação à criação do denominado instituto jurídico “juiz de garantias”.
Em atenção aos preceitos estatutários da entidade, a CONAMP vem acompanhando, ativamente, todos os movimentos reformistas do direito penal e processual penal que ocorrem no país.
Assim, importante pontuar, em primeiro lugar, que a Lei nº 13.964/2019 é fruto de uma fusão de propostas legislativas de modificação e atualização da legislação penal e processual penal.
Por um lado, contou com a colaboração inicial de uma Comissão de Juristas formada na Câmara dos Deputados, presidida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, ainda em 2017, conforme consta na própria justificativa do texto inicial do PL nº 10.372/2018 e do PL nº 10.373/2018, que tramitaram na Câmara dos Deputados, e, por outro, com as propostas feitas pelo atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Fernando Moro, no seu intitulado “pacote anticrime”, apresentado ao Congresso Nacional no início de 2019, conforme expresso na explicação da ementa do PL nº 6.341/2019, que tramitou no Senado Federal.
De fato, é indiscutível que a nossa legislação penal (adjetiva e substantiva) precisa ser atualizada, em razão de diversos fatores práticos e técnicos, havendo, inclusive, outras propostas tramitando no Congresso Nacional, algumas pretendendo criar um novo Código Penal e um novo Código de Processo Penal para o país, sendo, portanto, a Lei nº 13.964/2019 expressão clara e direta deste movimento.
No entanto, chama atenção a forma como os trabalhos legislativos foram desenvolvidos na tramitação desses projetos, fruto de um acordo político para aprovação de um texto legal final dissociado tanto da proposta inicial do projeto do Ministro Alexandre de Moraes quanto da do projeto do Ministro Sérgio Moro, tratando-se de um documento legislativo carente, minimamente, de um embasamento teórico comum e um direcionamento sistemático adequado que possa encaminhar uma verdadeira mudança de paradigma no sistema penal e processual penal brasileiro.
Em que pese esse defeito de origem, na fusão desses projetos, algumas inovações apresentadas no texto da nova lei poderão produzir efeitos consentâneos ao manifesto desejo da sociedade brasileira de contar com um sistema de justiça criminal eficiente e funcional.
Porém, mesmo com os 25 (vinte e cinco) vetos presidenciais, alguns pontos da lei merecem ser criticados. Citam-se, exemplificativamente, a mudança da natureza da ação penal do crime de estelionato (art. 171, § 5º do CP); o impedimento do juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível de proferir sentença ou acórdão (art. 157, § 5º do CPP); a impossibilidade de execução provisória da pena após a condenação em segunda instância (art. 283 do CPP); a compreensão do instituto da audiência de custódia somente a favor do acusado (art. 310 do CPP); a retirada da possibilidade de decretação de prisão preventiva pelo juiz de ofício e a inserção da possibilidade do juiz poder revogar, de ofício, a prisão preventiva no correr da investigação e do processo (arts. 311 e 316 do CPP), entre outros.
Além de resultar num complexo produto de fusão desses projetos de lei, que não se harmonizavam e não concordavam, entre si, em diversos pontos propostos, a Lei nº 13.964/19 ainda desafia o razoável e o lógico ao conter em seu texto proposta que não foi prevista em nenhum dos projetos iniciais, como é o caso do instituto do “juiz de garantias”.
Tratando-se de emenda apresentada no decorrer da tramitação legislativa, a figura do “juiz de garantias”, já criticada por inúmeras instituições e especialistas, que pediram formal e publicamente o seu veto, possui diversas falhas em sua premissa, em seu conceito, em sua solução, em sua estruturação e em sua proposta de execução.
Em primeiro lugar, equivoca-se em sua premissa por prejulgar o juiz como um sujeito processual imaturo, incapaz de proferir um julgamento isento e imparcial simplesmente por ter tido contato com a investigação.
Em segundo lugar, engana-se no conceito ao propor, na verdade, um juiz de defesa, que existe somente para garantir direitos de investigados, totalmente descomprometido com a efetividade da investigação, do processo penal e dos direitos das vítimas e da sociedade, o que não existe, com igual conformação, em nenhum outro modelo processual penal no mundo.
Em terceiro lugar, também erra na solução ao propor mera inovação formal com a criação de uma outra espécie de instância judicial, conferindo maior burocracia e complexidade ao sistema processual, que já previa possibilidades de correção para a atuação parcial de magistrados, através de recursos processuais aos graus jurisdicionais superiores, e que já conta com atuações de diversos atores no controle de violações de direitos e garantias de investigados e processados, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados e outros.
Em quarto lugar, peca a inovação legislativa por criar uma nova estrutura jurídica que excede em seu próprio conceito e finalidade, quando, por exemplo, estabelece abstratamente que cabe ao juiz de garantias ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal (art. 3º-B, IV) ou requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação (art. 3º-B, X), que trata de claro exercício de atividade de controle externo da atividade policial, que, constitucionalmente, é reservada ao Ministério Público (art. 129, VII, da CF) ou, ainda, confere poderes ao juiz de determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento (art. 3º-B, IX), violando os fundamentos do sistema acusatório brasileiro, por permitir uma atuação ampla do juiz no âmbito investigativo, independente de provocação de partes, desvirtuando, portanto, a natureza da sua função.
Por fim, distancia-se de uma correta proposta de execução quando impõe a implementação do instituto “juiz de garantias” em 30 (trinta) dias, sem levar em conta as dificuldades administrativas, operacionais e orçamentárias do Poder Judiciário brasileiro.
Ante todo o exposto, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP, apesar de reconhecer e louvar diversos pontos positivos contidos na nova Lei nº 13.964/2019, não pode deixar de alertar a sociedade brasileira sobre a criação de diversos fatores que dificultarão, ainda mais, o combate ao crime e à corrupção no país, sendo o instituto do “juiz de garantias” um exemplo destes fatores, na medida em que torna mais burocrático e complexo o processo penal brasileiro, fortalecendo somente a tutela processual do acusado, sem se preocupar com qualquer medida de efetividade das atividades investigatórias, dos processos penais e dos direitos das vítimas e da sociedade no país.
Brasília-DF, 26 de dezembro de 2019.
Victor Hugo Palmeiro de Azevedo Neto
Presidente da CONAMP