Ao assumir, na tarde de segunda-feira (28/01), a Secretaria de Cidadania, Direitos Humanos e Trabalho (Semcid) do Município de Vitória, o advogado Bruno Toledo mostrou, mais uma vez, a sua capacidade de lutar em favor dos menos favorecidos. Disse que usará sua experiência na área dos direitos humanos para reduzir as injustiças sociais, que também contribuem para o aumento da violência.
Bruno Toledo, que em 2010 denunciou o Estado do Espírito Santo na ONU por conta de irregularidades no sistema prisional que ofendiam os direitos da pessoa humana, no episódio conhecido como ‘Masmorras de Hartung’, foi mais além: “Quero desafiar minha equipe a subir os morros de Vitória. É lá que nós temos que estar. É onde mais precisam de nós. Precisamos nos colocar à disposição das comunidades e encontrar possíveis soluções para esse drama da violência urbana”.
Durante vários anos, o advogado Bruno Toledo foi presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Saiu do órgão em 2011, quando passou a trabalhar como Chefe de Gabinete do então presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, desembargador Pedro Valls Feu Rosa.
A ida de Bruno Toledo para o TJES abriu as portas da Corte para a sociedade civil. Junto com o presidente, Toledo ajudou a criar o Torturômetro, que foi um instrumento dentro do Portal do Tribunal de Justiça que estabelecia um canal de comunicação direto e eficaz entre as instituições, para atender as expectativas da população e denunciar o crime de tortura, principalmente, no sistema prisional – prática comum no passado. O sucessor de Pedro Valls na Presidência do TJES, desembargador Sérgio Bizzotto, acabou com o Torturômetro, que nunca mais foi ativado.
A posse de Bruno Toledo foi bastante concorrida. Aconteceu no auditório da Casa do Cidadão, em Itararé. Toledo assumiu o lugar de Nara Borgo, que é a nova secretária de Direitos Humanos do Estado. A posse dele foi marcada também por momentos de emoção, como as proporcionadas por seu amigo, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa, que, num discurso bem realista, relatou situações enfrentadas pelas populações mais pobres e carentes do Espírito Santo:
“Boa sorte, Bruno! Vá defender os direitos humanos em todos os cantos e recantos, dos mais pobres aos mais ricos. Enfrente a cegueira que ergue muros – seja ela dos amigos ou dos adversários – construindo pontes. Chore nossas derrotas nos funerais dos bandidos e das vítimas – nunca se esqueça delas! Estenda a mão a cada órfão e viúva, não olhando se de criminosos, agentes da lei ou vítimas”, diz trecho do discurso, cuja íntegra segue ao final da reportagem.
Além do prefeito Luciano Rezende, a solenidade contou com a participação de secretários municipais e de Estado, representantes de movimentos sociais, OAB-ES, Ministério Público Federal, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, Assembleia Legislativa, Câmara de Vereadores e lideranças religiosas, como pastores, padres e membros de religiões de matriz africana.
Antes do início dos discursos, o prefeito pediu um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do desastre ambiental em Brumadinho, Minas Gerais.
Luciano Rezende fez questão de destacar a presença de tantas pessoas importantes de vários segmentos da sociedade que lotaram o auditório da Casa do Cidadão. “O que traz o Bruno ao Governo é isso aqui. Todos na esperança de que ele possa ser voz de vocês. E será”, enfatizou o prefeito.
Luciano Rezende disse ainda que esse é um momento em que é necessário espalhar o sentimento dos Direitos Humanos na sociedade e nunca deixar de se indignar com qualquer forma de injustiça.
“Aqui nessa secretaria vamos dar continuidade à obra mais difícil de ser feita. Obra de concreto e aço com dinheiro qualquer governante faz. Mas tocar o coração das pessoas para que tenhamos um ambiente de respeito é uma obra mais complexa, mas necessária. Nossa palavra de ordem será incluir, discutir questões que precisam ser avançadas. E a pauta dos Direitos Humanos vai ganhar força”, prometeu.
Em um discurso carregado de emoção, Bruno Toledo disse que recebeu o convite para assumir a função com muita honra por participar de uma gestão eficiente, rápida, online e agora ainda mais comprometida com os Direitos Humanos.
Na sua fala, citou ainda Guimarães Rosa para dizer que não lhe faltará coragem para continuar na luta pela igualdade social.
“Assumo com a coragem de Guimarães Rosa proseada em ‘Grande Sertão: Veredas’ e com muita honra a Secretaria de Cidadania, Direitos Humanos e Trabalho de Vitória. A coragem que não me permite o medo, que não me deixa embrulhar os sonhos e, que mesmo caminhando em noite escura, tenho certeza que o sol vai raiar, porque, como diz Chico Buarque, amanhã será o novo dia”.
Toledo disse ainda que vai trabalhar para reduzir as injustiças que geram a violência. “Por isso, quero desafiar minha equipe a subir os morros de Vitória. É lá que nós temos que estar. É onde mais precisam de nós. Precisamos nos colocar à disposição das comunidades e encontrar possíveis soluções para esse drama da violência urbana”, finalizou seu pronunciamento, diante de fortes aplausos.
Sobre o secretário
Bruno Toledo é advogado, mestre e doutorando em Políticas Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). É professor de Direitos Humanos da Emescam. Foi o primeiro presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos de Vitória (CMDH) e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos. Foi também assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado (TJES) e chefe da Gabinete do então presidente do TJES, desembargador Pedro Valls Feu Rosa.
A emoção no discurso do desembargador Pedro Valls Feu Rosa
Senhoras e Senhores,
Algum espírito desatento diria ser esta apenas mais uma cerimônia de posse. Nada mais falso. Testemunhamos, em verdade, algo muito mais relevante: o compromisso público e corajoso de uma administração com os direitos humanos.
A nomeação de alguém que ostenta em seu currículo a presidência do Conselho Estadual de Direitos Humanos e da saudosa Comissão de Justiça e Paz é, antes de tudo, uma tomada de posição. A posse de um ativista que já arriscou sua vida na defesa dos seus ideais é, principalmente, um recado – o de que a séria questão dos direitos humanos continuará a ser enfrentada com energia.
Alguém diria: não é assim tão séria esta questão, pois nunca soubemos de alguém declaradamente contra os “direitos humanos” – muito pelo contrário, todos são a favor! Eis aí, nesta falsa unanimidade, nosso mais formidável inimigo: a hipocrisia. É ela a tornar séria a questão.
Dia desses soube de uma comunidade brasileira dominada pelo crime. Nela a rotina de crianças e adultos é a da submissão a criminosos. Fui informado de que eles vigiam as ruas portando armas de guerra em plena luz do dia. Decretam a abertura e o fechamento de escolas. Ditam o que pode e o que não pode ser feito. O que esperar do futuro das crianças que lá moram? O que nossa pátria lhes oferecerá além de algum subemprego? Estamos, ao final das contas, condenando toda uma geração ao crime ou à desesperança.
Há alguma novidade nesta informação? Nenhuma! Agora pense que a esmagadora maioria dos moradores daquela comunidade está tendo seus direitos humanos violados cotidianamente, sob as nossas vistas. E daí? Afinal, são apenas miseráveis – que se entendam por lá! A vida é assim mesmo. E mudemos de assunto, pois este é desagradável! É assim, com requintado cinismo, que condenamos pessoas boas, gente de bem, a uma vida de opressão e humilhações digna de qualquer gueto nazista.
Para piorar, soube que esta comunidade fica a cerca de 100 metros da sede de um dos poderes constituídos. Deve ser difícil para uma criança passar ali, ver tantas excelências, autoridades e brasões, para logo em seguida subir o morro, encontrar outro tipo de poder e compreender que seus direitos humanos praticamente não existem naquele lugar! Mas e daí? Afinal, as pesquisas de opinião dizem que a população entende que “isso é assim mesmo”, lançando escassa culpa sobre as autoridades – aliás, elas se sucedem e o problema só vai aumentando!
De vez em quando, em seguida a algum tiroteio, a realidade daqueles miseráveis vira notícia. Expõe os poderes. Atrapalha os negócios. Aí as instituições passam por lá, intimidando muitos, prendendo poucos e resolvendo menos ainda – para logo se retirarem. Quando muito marcam presença – e quase sempre temporária – na entrada da comunidade. Só na entrada. Deve ser mesmo perigoso ficar lá dentro.
Alguns não suportam as humilhações diárias e batem em retirada, carregando seus direitos humanos na bagagem. Já presenciei diversas marchas destes miseráveis – saem quase sempre sem rumo, com uma trouxa às costas. A casa deles será a vida, e terão o mundo por endereço. No caminho passam diante das reluzentes sedes de algumas instituições, contemplando brasões e bandeiras. Talvez, se derem sorte, até acenem para alguma das excelências de plantão – e sejam correspondidas!
Passados alguns dias os criminosos já se acertaram por lá, os mortos foram enterrados e tudo volta ao “normal”. Enquanto isso, diante do noticiário, as instituições preparam alguma ação ocasional que dê aos “mais iguais” uma tal “sensação de segurança” – afinal, há que se homenagear a elite dos “formadores de opinião”, que por sua vez pouco comenta a realidade de que nossas cidades estão cercadas por cinturões de pobreza entregues ao crime.
Já vi uma dessas ações ostensivas ser realizada a dezenas de metros de um morro controlado por traficantes, e a não mais que vinte metros de uma instituição relacionada à segurança pública. Eram dezenas de agentes da lei, armados até os dentes, conferindo documentos de quem por ali passava – quase sempre pacatos cidadãos, intimidados diante de todo aquele aparato, constrangidos, assim como seus filhos e esposas, por tantas metralhadoras e escopetas. Enquanto isso, deve ser interessante a cena dos traficantes às gargalhadas, lá em cima, assistindo a ações enérgicas contra eles acontecendo onde notoriamente eles não estão!
Acontece de alguns daqueles criminosos saírem de seus domínios para assaltar em bairros mais atraentes. Acabam matando alguém. Quem será o próximo a ter negado o direito humano à vida? Eu? Você? Seu filho? Um policial? O risco é real – alguém sempre morre.
Quando isso acontece segue-se um enterro de proporções épicas. Diversas autoridades lá comparecem. Há discursos inflamados. Todos choram. Os familiares, não raramente, se deparam com uma câmera em “zoom” sobre suas faces chorosas, enquanto ouvem a clássica e significativa pergunta: “como você está se sentindo?”
Nessas ocasiões não falta o conhecido bordão “cadê aquele pessoal dos direitos humanos?”, sempre pronunciado entre forte ranger de dentes. No mais das vezes, realmente lá não estão – em uma atitude que tornará ainda mais complexos o diagnóstico, o diálogo e a solução do problema.
O mais triste, porém, virá no dia seguinte. Diversamente do que ocorre em diversos outros países, alguns mais pobres que o Brasil, as viúvas e órfãos serão lançados ao mais triste desamparo. Neste país vítimas só tem direitos humanos na teoria das belas palavras da Constituição – na realidade da vida, que se virem! De empresários a policiais, de médicos a comerciantes, que se contorçam no túmulo vendo seus entes queridos lançados à pobreza e ao desamparo.
Se eu fosse contar nas mãos o número de direitos humanos violados nesta narrativa, já me faltariam dedos. De toda sorte, o “circo dos horrores” continua. Quase sempre o culpado é preso. – e muitos, silenciosamente, prefeririam que tivesse sido morto. Claro, só pensam. No máximo, sussurram – e antes das orações de domingo, claro.
Não é raro que este preso seja torturado, colocado em celas superlotadas e obrigado a dormir sentado durante meses ou anos. Enquanto isso entram em cena as instituições, cujo papel é o de conferir legitimidade a este quadro de barbárie, no qual difícil, absolutamente difícil, a ressocialização de quem quer que seja. A tal se presta o mundo das leis: fazer de conta que não vê isso…
E assim vai passando desapercebido um quadro de desrespeito a direitos humanos os mais básicos – de presos e de carcereiros.
Começo pelos carcereiros, brutalizados pelas condições de trabalho que suportam. Passo por suas famílias, indiretamente convocadas a pagar o preço que um ambiente de trabalho cruel apresenta – quando fico a recordar-me daquele conceito filosófico da “banalização do mal”. E chego a suas almas, machucadas eternamente por nossa culpa, nossa tão grande culpa.
Quanto aos presos, deixo aqui meu depoimento: já soltei gente obrigada a beber água da privada, pois o carro-pipa que abastecia a prisão faltou. Denunciei o caso dos 52 presos sentados nus sobre cimento quente até que suas carnes derretessem, expondo os ossos. O das dezenas de presos que levavam choques elétricos em um quarto molhado. O dos que passavam a noite acorrentados a paredes.
A brutalidade deste sistema chega às famílias. Seja símbolo uma senhora de 92 anos de idade que decidiu visitar o neto. Tiraram toda a roupa dela diante de dezenas de pessoas. Obrigaram-na a se agachar. Não satisfeitos, tiraram a dentadura dela para revistá-la. Abalada, esta velhinha faleceu duas horas depois da visita – ela e seus direitos humanos.
Antes que alguém diga que “vagabundo tem mais é que sofrer”, pergunto: só “vagabundos” pobres? Cadê os ricos? Como explicar que 99,99% de nossa população carcerária seja composta de miseráveis? Juiz há quase 30 anos, nunca soube, por exemplo, de um rico corrupto torturado ou lançado em alguma masmorra fétida.
Mas vá lá que seja! Que “vagabundo tenha mais é que sofrer”. O problema é que mais dia, menos dia, retornarão ao nosso convívio. Por conta de nossa absoluta falta de pragmatismo e inteligência, responsável por índices de reincidência próximos de 80%, um recorde mundial, retornarão ainda mais violentos, retomando o ciclo tenebroso que aqui narramos – e reforçando, perante o mundo, a imagem de que somos um povo bárbaro e atrasado.
Não faz muito tempo o destemido Padre Kelder, conduzindo uma procissão, deparou-se com um cadáver largado no meio da rua. Decidiu rezar uma missa ali, diante do espanto hipócrita de muitos. Poucos entenderam que aquela missa não era só pela alma do defunto – era também pela nossa, impregnada pela omissão e hipocrisia mais vis! Embalados pela certeza de que Deus é bom, nos esquecemos de que Ele também é justo.
Fico a pensar em uma famosa tela de Rochegrosse, retratando a vida, magistralmente descrita pelo escritor português Albino Forjaz de Sampaio:
“Aparece uma maré cheia de cabeças ululantes, estranguladas pela ambição, correndo, empurrando-se, pisando os que ficam. Todos daquela multidão ávida querem ser os primeiros. O lugar é disputado a soco, a murro, a dente. O caminho que na vida leva ao triunfo é uma cena medonha que mais parece a fuga de uma derrota”.
Segue a descrição das cabeças que infestam o cenário:
“São gastas, cansadas, lívidas. Os rostos são pálidos, suados, cor de terra, um não sei quê de loucura e de pesadelo”.
Não há necessidade de se ir a museu algum para contemplar-se essa obra, a nos recordar do quão pouco pensamos em direitos humanos. Basta percorrer as nossas ruas.
Mas vá lá que seja! Retiremos da equação a espiritualidade. Ainda assim, não será difícil descobrir que não defendemos os direitos humanos nem por egoísmo! Há uns 19 anos lia um estudo governamental norte-americano, voltado a prever cenários para o ano de 2030. Sobre nosso país dizia que, a partir de 2020, seria o maior exportador mundial de alimentos e um dos maiores de petróleo – o que poderia ensejar um ciclo de crescimento econômico sustentável e de longo prazo, com potencial para nos levar aos padrões de vida da Europa em menos de uma década.
Vamos, agora, explicar a expressão “poderia”: se, ao longo das três décadas seguintes, não reduzíssemos a níveis “normais” os índices de criminalidade e corrupção, a maior parte da riqueza seria desperdiçada ou perdida, e então seguiríamos rumo à realidade de um país rico, porém desigual e conflituoso. Eis aí a pena que já começamos todos a cumprir, por conta de nossa hipocrisia e cegueira.
É quando, do fundo de meu coração, cumprimento o Prefeito Luciano Rezende pela coragem de “enfiar o dedo nesta ferida”. Que você receba, Luciano, o apoio das pessoas de bem.
O Secretário Bruno Toledo chega em um momento particularmente difícil. Nunca a população esteve tão perplexa e dividida – em um quadro que dificulta o diálogo lógico e sereno. Vivemos um daqueles momentos em que todos estão certos, mas também errados – e no qual a soberba sobrepõe-se à humildade, turvando a visão.
Boa sorte, Bruno! Vá defender os direitos humanos em todos os cantos e recantos, dos mais pobres aos mais ricos. Enfrente a cegueira que ergue muros – seja ela dos amigos ou dos adversários – construindo pontes. Chore nossas derrotas nos funerais dos bandidos e das vítimas – nunca se esqueça delas! Estenda a mão a cada órfão e viúva, não olhando se de criminosos, agentes da lei ou vítimas.
Tenha a coragem, Bruno, de olhar nos olhos dos maus, sejam eles pobres ou ricos, fracos ou poderosos, e dizer “não”. Nos momentos de injustiça fique firme e sereno, pois já se falou que a grandeza de um homem é medida pela estatura dos seus inimigos.
Principalmente, Bruno, rogo-lhe inspirar uma reflexão humilde, por parte de todos, sobre o que seja “direitos humanos”. Sobre quantos muros foram erguidos até que cristalizada a expressão “o pessoal dos direitos humanos só defende bandido” – e quantas pontes devem ser construídas para devolver a lógica a este país tão perplexo. Seja esta sua maior responsabilidade.
Siga em paz, Amigo! Vai, com você, a esperança de verdadeiros cristãos.
(Com informações também do Portal da PMV)