A 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo condenou a cinco anos de prisão e a perda da função pública o atual chefe do Comando de Polícia Ostensiva da Região Sul (CPO SUL) da Polícia Militar, coronel Alessandro Marin, pela acusação de torturar o comerciante Lirio Moreira Gomes Filho. Pela mesma acusação, também foram condenados os militares Amilton Dias Feliciano (2º sargento), Angélica Cristina Zanardi Franco (1º sargento) e Vitorino Rangel Filho (sargento da Reserva Remunerada). Os três pegaram cinco anos de prisão e serão expulsos da PM, conforme decisão do TJES. Ainda cabem recursos.
Conforme divulgado pelo Blog do Elimar Côrtes em 28 de agosto de 2017, em primeira instância o coronel Marin e os três policiais foram absolvidos pelo juiz Miguel Maira Ruggieri Balaz, da 3ª Vara Criminal de Cachoeiro de Itapemirim. CASO DEMOROU 16 ANOS PARA SER JULGADO: Justiça absolve comandante do CPO Sul e mais três PMs da acusação de tortura, mas manda Estado indenizar em 40 mil vítima de prisão ilegal
Na mesma sentença condenatória, porém, a 3ª Câmara Criminal, seguindo o voto do relator do Recurso Criminal interposto pelo Ministério Público Estadual, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, decretou a prisão dos réus, para que eles comecem a cumprir pena tão logo sejam encerrados os trâmites burocráticos no âmbito do segundo grau.
O julgamento do recurso, relativo ao processo número 0010115-34.2012.8.08.0011, ocorreu no dia 21defevereiro de 2018. O Ministério Público, em suas razões, alegou que “existem nos autos provas suficientes a ensejar o decreto condenatório”.
De acordo com a denúncia, no dia 12 de junho de 2001, entre as 8 horas até as 14 horas, no 9º Batalhão da Policia Militar (Cachoeiro), “os Denunciados, todos agentes públicos, em unidade de desígnios, constrangeram a vítima, Lirio Moreira Gomes Filho, com o fim de obter confissão, mediante emprego de violência c grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e mental”.
Em seu voto, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa relata que, “após regular processamento da ação penal, o Magistrado sentenciante aduziu não ser possível condenar os réus Alessandro Marin, Amilton Dias Feliciano, Angélica Cristina Zanardi Franco e Vitorio Rangel Filho pela prática do delito de tortura, ante a ausência de materialidade delitiva, já que o laudo de lesões corporais somente atestou uma lesão na vítima Lírio Moreira Gomes Filho, em que pese a todo o momento relatar que diversas foram as agressões sofridas”.
Diante de tal resultado, o Ministério Público apresentou irresignação ao argumento de que “as provas existentes no caderno processual são suficientes para a condenação dos réus quanto à prática delitiva a eles imputada”.
“Extrai-se dos autos que a vítima Lírio tomou conhecimento acerca de um furto de um veículo do tipo caminhonete ocorrido na região e se dirigiu até um integrante da PM pugnando por uma atuação mais incisiva da corporação, com o fim de localizar o autor do referido delito. Dias após, segundo os relatos da vítima, 04 (quatro) policiais militares se dirigiram à sua residência afirmando que as suspeitas do delito recaíam sobre ela”, relata o desembargador Pedro Valls.
Com base nos autos, o desembargador já vê o primeiro ato ilegal por parte do coronel Marin e seus comandados: “Afirmam os réus que detiveram a vítima sob a suspeita da prática do delito de furto de uma caminhonete dias antes. A primeira ilegalidade já se mostra aí”.
Vítima foi presa sem qualquer mandado de prisão e sem flagrante
Pedro Valls Feu Rosa explica no voto: “Os policiais militares, ora réus, componentes do Serviço da Inteligência, em trajes civis, saíram em busca da vítima e a detiveram na rua sem qualquer mandado de prisão ou na prática de flagrante delito e o conduziram para o quartel, a fim de realizarem verificações. Nobres Desembargadores, a Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LXI é clara no sentido de que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”
Logo, os policiais militares, sob o comando do coronel Marin, segundo Pedro Valls, “agiram à margem da lei, mesmo sabedores de suas atribuições”.
Mas os réus não pararam neste momento, de acordo com o voto do relator do recurso: “Decidiram (os quatro PMs), conforme as palavras do réu Alessandro (Marin), efetivar diligências, em busca da caminhonete furtada, uma vez que localizaram diversos documentos referentes a carros e peças automotivas em poder da vítima. Novamente, cultos Desembargadores, a vítima é clara em seu depoimento ao afirmar que ao ser detida foi mantida em cárcere subjugada pela ré Angélica, a qual apontou sua arma de fogo para a cabeça e afirmou que Lírio deveria morrer, em clara prática de agressão psicológica”.
“O Setor de Inteligência da PM foi utilizado de maneira desvirtuada; fez papel de Polícia Judiciária”, afirma desembargador
O desembargador aponta outra “ilegalidade”. “Os policiais militares réus, de acordo com os termos dos interrogatórios de Alessandro e Amilton saíram em diligência e, diga-se de passagem, afirmaram que era algo comum de ser realizado, e foram até um ferro velho da região mantendo a vítima em seu poder, para investigar e colher provas da suposta materialidade delitiva do crime de furto da caminhonete. Repito, não havia nenhuma prisão em flagrante, portaria da autoridade policial instaurando qualquer inquérito ou ordem judicial permitindo a prática daquela ação. Eminentes Desembargadores, estamos diante de flagrantes ilegalidades cometidas”.
Pedro Valls ainda pondera: “Importante trazer à tona que não compete à Polícia Militar, inclusive ao Setor de Inteligência, conhecido como P2, atuar na investigação de práticas delitivas, uma vez que sua função não se confunde com a de polícia judiciária. O Setor de Inteligência da PM foi utilizado de maneira desvirtuada, já que se prestando a exercer atividade típica da Polícia Civil, que é a apuração de infrações penais comuns. O fato de um crime ter sido cometido dias antes e a polícia militar, por meio do seu setor reservado, chegar à paisana, adentrar à residência de um indivíduo e com ele transitar pela cidade em busca da res furtiva, não se enquadra nas atribuições dos militares. Na verdade, configura gravíssima ilegalidade que deve ser veementemente combatida num Estado Democrático de Direito”.
O desembargador Pedro Valls afirma mais: “Estas ações, por si só, poderiam constituir a própria prática do crime de tortura, eis que, indiscutivelmente, tais ações são marcadas pelo intenso sofrimento físico e mental, a fim de obter informação ou confissão da vítima. A prática verificada não tem previsão legal e não resulta de medida legal”.
Pedro Valls recorreu à medicina-legal para comprovar hematoma na vítima
Para fundamentar seu voto, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa e chegar à conclusão acerca da materialidade delitiva, teve de buscar ajuda nos ensinamentos do ramo da Medicina Legal. Tal atitude foi necessária porque o juiz de primeiro grau, Miguel Maira Ruggieri Balaz, da 3ª Vara Criminal de Cachoeiro, que absolveu os quatro réus, fundamentou a absolvição na ausência de elementos capazes de comprovarem a materialidade do crime de tortura, “haja vista que identificada apenas uma lesão no corpo da vítima, em dissonância com as alegações da mesma que afirmou a todo momento ter sofrido diversas agressões”.
Diz Pedro Valls no voto: “Segundo consta dos autos e confirmado por todos, os fatos ocorreram no dia 12 de junho de 2001, entre 8h30 e 14h. O exame de lesões corporais foi realizado no dia 13 de junho do mesmo ano, cerca de 12 horas após as agressões sofridas. De acordo com a melhor doutrina médico-legal, a evolução da equimose, tendo por base a variação cromática, se dá da seguinte forma: nos dois primeiros dias, a coloração do local lesionado é do tipo vermelho/vermelho-escuro; do terceiro ao sexto dia, a coloração passa para cor azulada; já entre o sétimo e o décimo segundo dia, a coloração passar a ser esverdeada; mais ao final, no período entre o décimo terceiro e o vigésimo dia, a coloração passa a ser amarelada, sendo que, após o vigésimo dia, a coloração volta ao normal”.
O desembargador cita, inclusive, o posicionamento de Antônio Almeida Júnior em sua obra Lições de Medicina Legal (1998, p. 134).
“O que se extrai é que no decorrer do dia e da noite, provavelmente as marcas iniciais perderam intensidade, porém os hematomas, de acordo com as regras indicadas pela doutrina médico-legal, só iriam aparecer após 48 (quarenta e oito) horas, a depender do local e da força onde praticada a violência. O médico-legista sabendo do tempo de maturação das lesões, deveria ter determinado o retorno da vítima para realização de exames complementares. Infelizmente não o fez”, ensina Pedro Valls Feu Rosa.
Entretanto, prossegue o desembargador, o delegado de Polícia responsável pela liberação da vítima no dia dos fatos, afirmou que dias após procedeu a sua oitiva e constatou que a mesma se encontrava com o olho roxo, reforçando a tese de que no momento da realização do exame pericial as lesões ainda não estavam visíveis, apesar de existentes.
“Assim, entendo que a materialidade delitiva já restou comprovada pelas ilegalidades praticadas pelos réus e o laudo de lesões corporais apenas corrobora com as alegações da vítima quanto aos fatos”, diz Pedro Valls no voto.
“Assim, resta, portanto, cabalmente demonstrado o intenso sofrimento físico e mental suportado pela vítima, configuradores do crime de tortura, sendo necessária a retificação da sentença prolatada”, ponderou o desembargador, que cita, inclusive, quena esfera cível, o Estado foi condenado a indenizar o comerciante Lírio por causa da prisão ilegal e da tortura.
A dosimetria da pena foi idêntica para os quatro réus:
Alessandro Marin, Amilton Dias Feliciano (2ºsargento), Angélica Cristina Zanardi Franco (1º sargento) e Vitorino Rangel Filho (sargento da Reserva Remunerada).
“Com relação ao crime de tortura, em conformidade com o princípio constitucional da individualização da pena (art. 5o, inciso XLVI, da CR/88) e com o sistema trifásico de aplicação da pena (art. 68 do CP), assento que a culpabilidade do acusado não destoa do próprio tipo penal; não existem quaisquer informações de que o réu detém em seu desfavor uma sentença penal condenatória com trânsito em julgado, motivo pelo qual possui bons antecedentes; não há registro sobre a sua conduta social, personalidade, razão por que devem ser neutralizadas; o motivo não o favorece, uma vez que as ações foram perpetradas em decorrência de uma investigação ilegal, feita por policiais militares, de forma indevida, eis que tal atribuição é exclusiva da polícia judiciária; as circunstâncias do crime não são favoráveis, uma vez que a vítima permaneceu ilegalmente sob poder do acusado por mais de 5 (cinco) horas e 30 (trinta) minutos; além disso os acusados ingressaram na residência da vítima sem estado de flagrância ou mandado de busca e apreensão; as consequências foram graves, uma vez que segundo informado pela vítima ficou deprimido e passou a fazer uso de medicamentos, por conta das agressões e do trauma sofrido e, por fim, comportamento da vítima não influenciou para a prática do delito.
Diante de tal quadro, entendo como suficiente e necessário aplicar a pena-base no patamar de 4 (quatro) anos e 04 (quatro) meses de reclusão.
Na segunda fase de aplicação da sanção, verifico que não existem circunstâncias atenuantes e agravantes.
Inexistem causas de diminuição.
No que se refere à causa aumento de pena prevista no inciso I, do §4º do art. 1º da Lei 9455/97, aumento a pena no patamar de 1/6 (um sexto), fixando-a em 5 (cinco) anos e 20 (vinte) dias.
Fixo o regime inicial de cumprimento de pena semiaberto, na forma do art. 33, §2º, “b”, do Código Penal.
Condeno, ainda, o acusado à perda do cargo público, bem como decreto a sua interdição para o exercício do referido cargo pelo prazo de 10 (dez) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias, conforme determina o §5º, do art. 1º, da Lei 9.455/97.
Por fim, entendo que o caso demanda a execução imediata da pena aplicada, já que proferida condenação por meio de decisão colegiada, na esteira do julgamento realizado pelo plenário do E. Supremo Tribunal Federal, quando da análise da Ação Declaratória de Constitucionalidade 44, determino que após o encerramento das vias ordinárias, a imediata expedição de mandado de prisão, independente de ocorrência do trânsito em julgado, a fim de que o réu inicie o cumprimento da pena imposta.
Assim, caso seja o entendimento desta Primeira Câmara Criminal, voltem-me os autos conclusos para indicação da data limite para o cumprimento dos mandados de prisão a serem expedidos”.