Ao iniciar esse artigo, precisa-se reafirmar ao leitor que sempre é preciso trilhar o caminho do diálogo, pois somente ele poderá vencer a intolerância e a incompreensão, assim nos ensina Hannah Arendt – “ser visto e ouvido por outros é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. É este o significado da vida pública”.
O debate nos últimos dias tem versado sobre a federalização dos possíveis crimes praticados no período do movimento das mulheres, amigos e familiares dos policiais militares, a sua apuração e a competência do juízo.
O Procurador Geral da República e os seus assessores falam em federalização do caso, contudo não entram em detalhes do seu posicionamento ao público capixaba, para deixar claro o que é o instituto da federalização da maneira correta, apenas o apresentam como se fosse uma tábua de salvação ou o remédio para todos os males, esquecem-se de dizer que a federalização traz grande ruptura no pacto federativo e aos princípios republicanos.
Nesse sentido, é preciso esclarecer ao cidadão do Espírito Santo o que é a federalização, que tecnicamente está na Constituição da República designado como Incidente de Deslocamento de Competência, previsto no artigo 109, §5º, da seguinte forma:
“Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”
Esse instituto jurídico entrou em nossa Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional 45 de 2004, conhecida como Reforma do Judiciário, e ocorreram vários debates acerca do tema, porque havia o entendimento de que o deslocamento competência fere o pacto federativo e só deveria ser concedido em casos extremos, já que no Brasil somos uma federação e não um Estado unitário. E, ainda, há dúvidas sobre a conceituação do que seja grave violação dos direitos humanos, tanto que o professor Vladimir Passos de Freitas explica na obra “Comentários à Constituição do Brasil”, página nº 1.467, o seguinte: ‘no entanto, o deslocamento de competência suscitou reação, com base em dois argumentos principais: a dificuldade de definir o que vem a ser uma ofensa aos direitos humanos e a atribuição dada ao Procurador Geral da República de suscitar o incidente de desaforamento para a Justiça Federal’.
Vale à pena rememorar que a origem deste instrumento jurídico está relacionada com os eventos intitulados de violadores de direitos humanos e que tiveram repercussão internacional e denúncias nas Cortes Internacionais de Direitos Humanos, tais como Carandiru, Candelária e em Eldorado dos Carajás.
O primeiro pedido de deslocamento de competência ocorreu no emblemático caso da missionária americana Dorothy Stang, em 2004, onde o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a inovação constitucional se destinava aos casos em que se evidenciasse negligência, falta de vontade política ou de condições de o Estado-membro promover a apuração dos fatos e submeter os denunciados a julgamento e que, no caso em análise, tais requisitos não estavam preenchidos, da mesma forma os requisitos não se evidenciam no caso capixaba.
Ao se falar em quebra do pacto federativo, justifica-se porque a formação do federalismo adotado pelo Estado brasileiro é o da forma centrífuga, onde os Estados são dotados de autonomia, que se refere à capacidade de auto-organização, autogoverno, auto-administração e auto-legislação.
O autogoverno significa a capacidade de estruturar os Poderes Legislativo, Executivo e o Judiciário, ou seja, os Estados são autônomos para se autogovernar, criar leis e julgar os casos no âmbito do Estado, e a “federalização”, como vem calcada no pedido do PGR retira essa autonomia do Judiciário capixaba.
Em entrevista ao jornal A Gazeta, o Procurador da República Ubiratan Cazetta diz que os oficiais da Polícia Militar do Espírito Santo serão julgados por generais das Forças Armadas, pois a federalização das investigações e o julgamento envolvendo crimes militares são necessários para evitar que policiais de alta patente façam pressão e comprometam os resultados, conforme afirmou à jornalista Fernanda Queiroz da rádio CBN.
A população brasileira deve grande gratidão ao Ministério Público Federal (MPF), sobretudo por conta da Operação Lava-jato, entretanto, tal entendimento, inicialmente, demonstra a necessidade de aprofundamento por parte do Procurador sobre o funcionamento da Justiça Militar Estadual e dos seus julgados, mas não é só isso, além de querer desacreditar os oficiais da respeitada Polícia Militar, pode trazer um injusto descrédito aos respeitados juízes capixabas e ao seu Ministério Público estadual, a meu entender.
É preciso sempre relembrar que a Vara da Auditoria Militar é composta por um juiz de Direito que faz a instrução de todos os processos. E só para constar, uma grande parte dos crimes militares, após a Reforma do Judiciário, passou a ser julgados monocraticamente e não mais pelos oficiais militares do Conselho de Justiça.
Da mesma maneira, havendo discordância da sentença, os recursos, quer sejam do Ministério Público quer sejam dos militares estaduais, têm como via recursal o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), ou seja, julgados por desembargadores de Justiça.
No mesmo sentido é a participação do Ministério Público, cabendo ressaltar que por determinação constitucional, o MP realiza o controle externo da atividade policial (Polícia Militar e Polícia Civil) e como titular da ação penal oferece denúncia contra os militares acusados e o órgão do Ministério Público com atribuição na Justiça Militar pode designar promotor de Justiça para acompanhar os Inquéritos Policiais Militares, e ainda, atuam como órgão de acusação na vara da Auditoria Militar e nas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Desta forma, a Procuradoria Geral da República, para dizer o mínimo, imagina uma falta de capacidade de todos esses atores?
O ínclito Procurador da República chega a dizer que não é questão de competência de Justiça A ou B para os casos em questão e ainda diz que só os oficiais da Polícia Militar estariam relacionados no Incidente de Deslocamento de Competência. Mas ora, se a competência é a medida da jurisdição (e jurisdição significa dizer o direito) como se pode pedir que as apurações e processos sejam transferidos para que generais das Forças Armadas julguem oficiais da Polícia Militar no Superior Tribunal Militar (STM), órgão que não tem competência para julgar os militares estaduais? Constitucionalmente, a Justiça Militar Estadual tem seu grau recursal para o TJES e para o Superior Tribunal de Justiça.
O pedido ainda demonstra grave mácula ao princípio do Juiz Natural e lembro que, no Brasil, a Constituição Federal proibiu os Tribunais de Exceção.
Deveríamos questionar ao PGR porque essa mesma ação enérgica não foi tomada contra os movimentos paredistas ocorridos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e na Bahia?
Para agravar todo esse cenário, causa estranheza o apoio do governo do Estado que concorda ou até mesmo pede o deslocamento de competência, abrindo mão de sua autonomia federativa para julgar esse caso. Não é compreensível a opção por uma decisão com viés político em vez de uma técnica-jurídica. A resposta ensaiada diz que é pelo simbolismo, ora bolas, até onde sabemos isso não consta na Constituição.
Devíamos sim era respeitar o povo capixaba e as suas instituições, ou fomos por ora tomados novamente pelo complexo de vira-latas e “patinho” feio da federação?
Interessante ainda notar que durante o movimento o governo não entendia que o caso se enquadrasse dentro dos requisitos para o pedido de uma intervenção federal (que tem entre os seus requisitos a grave violação dos direitos humanos na incapacidade do Estado oferecer segurança aos seus cidadãos), mas agora diz querer a apuração dos fatos pelo órgão externo ao judiciário capixaba. Essa mudança de entendimento é no mínimo contraditória.
Assim, ficam outras perguntas: por que nos casos das celas metálicas de Novo Horizonte (masmorras do Espírito Santo) que houve denúncia em desfavor do Estado na Corte Internacional de Direito Humanos em Haia, a Procuradoria Geral da República não se manifestou para judicializar o pedido de deslocamento de competência e federalizar o caso, já que houve grave violação de direitos humanos? Ou ainda, não se pediu a federalização da Operação Naufrágio e nem no caso do assassinato do juiz Alexandre Martins de Castro?
Por derradeiro, peço atenção aos capixabas, pois hoje tentam violar direitos dos militares estaduais, sob o argumento de que devemos servir de exemplo para o País, e amanhã os direitos dos cidadãos podem ser violados sob o mesmo argumento. Não devemos deixar prevalecer à máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios” e rasgar o que está previsto na Constituição Federal, porque amanhã todos poderão pagar um alto preço, porque de exceção em exceção, aquilo que era para ser uma República, pode ser tornar um regime cuja marca é a falta de diálogo e a vontade apenas de uma pessoa. Basta olharmos para a infeliz situação do nosso vizinho bolivariano mais ao norte.
(O autor é o tenente-coronel Rogério Fernandes Lima, presidente da Associação dos Oficiais Militares Estaduais do Espírito Santo – Assomes/Clube dos Oficiais).