Na manhã do dia 21 de outubro de 1996, o corpo da estudante de Direito Gabriela Regattieri Chermont, 19 anos, foi encontrado estirado no chão da avenida Dante Michelini, depois de ter sido, de acordo com a família e a denúncia do Ministério Público Estadual, jogado do 12º andar de um flat, em Camburi. Exatos 20 anos depois, a Justiça, enfim, vai julgar o caso: acusado de agredir e matar a jovem estudante, o empresário Luiz Cláudio Ferreira Sardenberg, hoje com 48 anos de idade, será submetido a Júri Popular, em audiência marcada para o dia 24 de novembro de 2016, às 9 horas, no Salão do Júri Popular da Comarca de Vitória. Os dois eram namorados à época do crime.
A demora do julgamento se deve aos recursos impetrados pela defesa em instâncias superiores. No dia 13 de maio de 2002, o então juiz-titular da 1ª Vara Criminal (Privativa do Júri) de Vitória, Ronaldo Gonçalves de Souza, pronunciou Luiz Cláudio, mandando-o a Júri Popular. No entanto, a defesa recorreu e o Tribunal de Justiça anulou a sentença de pronúncia, acolhendo pedido da defesa do empresário, para quem a estudante Gabriela teria cometido suicídio. O Tribunal julgou o recurso da defesa e acolheu tese de suicídio, que consta no acordão publicado em 17 de junho de 2003:
“Expostos pelo Magistrado os motivos de fato e de direito que o levaram a submeter o acusado perante o Egrégio Tribunal do Júri, ainda que sucintamente, mas de forma clara e comedida, não há que se cogitar em nulidade. Preliminar rejeitada. Não havendo provas cabais da existência de crime de homicídio e sim elementos probantes e contundentes a alicerçar que a vítima, por conduta voluntária, tirou sua própria vida, impõe-se a despronúncia, haja vista que ao proclamar a admissibilidade da acusação para que o acusado seja submetido a julgamento pelo Egrégio Tribunal do Júri, deve o juiz estar pleno de convencimento da autoria do crime e da materialidade da infração. Recurso provido”, diz o acórdão.
O Ministério Público do Estado do Espírito Santo recorreu. Em vários julgamentos de recursos, o Tribunal de Justiça manteve a decisão de anular a sentença de pronúncia e o MPES, por meio do procurador de Justiça Gabriel Souza Cardoso, então titular da Procuradoria de Justiça Recursal, recorreu junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília:
“Foi uma luta árdua, mas graças a Deus os ministros do STJ entenderam que o Ministério Público estava correto ao denunciar o réu por homicídio qualificado. Li e estudei muito os laudos feitos pela Perícia Criminal de Polícia Civil. O corpo da jovem Gabriela apresentava dois tipos de lesões: de alta e baixa energia. A lesão de baixa energia apresentava impacto menor pelo corpo, significando que ela foi agredida fisicamente antes de morrer. A lesão de alta energia foi provocada pela queda, já que foi jogada do 12º andar do edifício. A perícia encontrou marcas na sobreira da janela, além de marcas pelo chão do apartamento, demonstrando que Gabriela foi arrastada até a janela, para depois ser jogada”, recorda o hoje procurador de Justiça Eliezer Siqueira de Sousa, que na época do fato atuava como promotor de Justiça na Vara Especializada do Júri de Vitória, tendo sido o responsável pela denúncia em desfavor de Luiz Cláudio.
Num primeiro momento, imaginou-se que Gabriela teria sofrido um acidente, mas logo a mãe da jovem, a cirurgiã dentista Eroteides Maria Regattieri Chermont, suspeitou “tratar-se de homicídio”. Ela contratou o advogado José Maria Ramos Gagno para ajudar a família a conseguir provar que Gabriela não tinha motivos aparentes para cometer suicídio, “conforme quisera fazer entender o namorado Luiz Cláudio, e que teria sido assassinada”.
STJ reforça tese de assassinato e diz que laudos indicam que empresário teria “usado cocaína” antes do crime
O Ministério Público Estadual foi ao STJ lutar pelo julgamento do réu Luiz Cláudio Sardenberg. Impetrou recurso especial, que foi julgado em 19 de fevereiro de 2009, tendo como relator o ministro Arnaldo Esteves Lima. No recurso, o MPES sustentou violação ao artigo 408 do Código de Processo Penal, “uma vez que o juiz sentenciante logrou demonstrar os indícios de autoria constantes dos autos que o levaram a pronunciar o acusado pelo crime previsto no art. 121, § 2º, I, III e IV, do CP, afastando, portanto, a hipótese de suicídio da vítima.”
Em seu voto, seguido à unanimidade pela Corte, o ministro Arnaldo Esteves Lima diz que “não pode o Tribunal Estadual, sob pena de usurpar competência do Conselho de Sentença, afastar a imputação dada pela Sentença de Pronúncia, ao fundamento de que não havia prova da existência de crime, quando, conforme constate dos autos, há prova inequívoca da morte da vítima (materialidade) e indícios de autoria em desfavor do acusado.”
Prossegue o ministro: “Para melhor elucidar a questão, colho da sentença de pronúncia o seguinte trecho: A materialidade do delito está devidamente comprovada pelo laudo de Exame Cadavérico de fl. 25 e Laudo de Exame de local de Morte violenta de fls. 254 a 227 da vítima Grabriela Regattièri Chermont. Outrossim, tanto na polícia, quanto em juízo, o acusado nega a autoria do delito, dando para o presente caso a versão de suicídio da vítima. Entretanto, essa versão não se coaduna com a prova testemunhal lançada ao bojo do processo”.
De acordo com Arnaldo Esteves Lima, os indícios de autoria do homicídio “afloram, mais ainda, em desfavor do acusado (Luiz Cláudio Sardenberg) pelo Laudo de Exame de Lesões Corporais e fotografias de fls. 315 a 319. Pelos referidos documentos verifica-se que o acusado apresentou cicatrizes recentes no dorso da mão esquerda sugerindo serem provenientes de luta corporal com a vítima na madrugada dos fatos.”
No voto, o ministro ressalta a importância do “diligente, detalhado e judicioso relatório de fls. 377 a 414, da lavra do Delegado de Polícia que presidiu o inquérito policial que deu origem ao presente processo, conclui, sem nenhum titubeio, pela exclusão do suicídio praticado pela vítima, frutificando os fortes indícios hipotéticos e compatíveis de ser o acusado o autor do homicídio referenciado por ser a única pessoa que acompanhava a infeliz moça naquela noite.”
Arnaldo Lima informa ainda que o Laudo de Exame Clínico, em conjunto com o Laudo Toxicológico, realizados no dia 21 de outubro de 1996, “apontam que o acusado Luiz Cláudio Sardenberg fez uso de Benzolimetilexgonina, vulgarmente conhecida por cocaína.”
Ressalta o ministro que a perita e farmacêutica Bioquímica do DML que assinou o Laudo Toxicológico, em seu depoimento em juízo, diz que a urina do acusado foi colhida entre 7:00 e 8:00 horas da manhã do dia 21 de outubro de 96, e que geralmente, a positividade do exame ocorre até 12:00 após a ingestão de cocaína e passando desse período, referida substância não é mais encontrada.
“Portanto, a prova técnica pericial aponta que o acusado fez uso de cocaína momentos antes dos fatos. Por outro lado, no meio médico e psiquiátrico forense há o entendimento que os usuários de cocaína sofrem alucinações, delírios, depressões, perda do apetite sexual e são tomados por desenfreada violência. Por tudo isso, e estando a acusado no momento dos fatos sob os efeitos da cocaína, é que afloram os indícios de que o mesmo teria assassinado a vítima que não tinha razões plausíveis para suicídio, projetando o corpo da mesma ao espaço do 12º andar do prédio referenciado.”
Para o ministro Arnaldo Lima, o Laudo de Exame de Morte Violenta do Departamento de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo, assinado por dois peritos, “concluiu pela possibilidade de ação voluntária da vítima, porém, ficando condicionadas às demais provas dos autos e dos suplentes dos médicos legistas.”
Já o Laudo de Exumação do corpo de Gabriela periciado no Departamento Médico Legal, da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo, assinado por dois médicos legistas, dentre outras conclusões, “afirma a ausência de fraturas dos pilões tibiais, talus e calcâneos, excluindo por completo a possibilidade de queda em pé da mesma.”
Por sua vez, o Laudo de Exame de Morte Violenta do Instituto de Criminalística da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal conclui que face “as lesões encontradas no exame necroscópio como o ponto de impacto no solo não são característicos do suicídio por projeção voluntária da vítima.”
Já o parecer técnico, realizado por um Escritório de Criminalística particular e juntado aos autos pela defesa do acusado, converge para o suicídio da vítima. Porém, o ministro Arnaldo Lima pondera sobre esse laudo:
“Destarte, li com minudência referidos laudos e vejo frutificar nos mesmos fortes indícios que posicionam o acusado como sendo o autor do homicídio praticado contra a vítima. Por tudo isso, ancorado no princípio da livre apreciação da prova e sendo a pronúncia mero juízo de admissibilidade, entendo que o melhor caminho a ser percorrido será submeter o acusado ao crivo do Tribunal do Júri.”