Um dos ícones da Polícia Militar de Minas Gerais, o coronel reformado e escritor Klinger Sobreira de Almeida escreveu para o Blog do Elimar Côrtes um ensaio-romanceado. Trata-se de uma homenagem que o coronel faz às centenas de policiais brasileiros mortos em confrontos com bandidos. Em fevereiro deste ano, o coronel-escritor Klinger já havia publicado artigo neste Blog em que revelava a intenção do Partido dos Trabalhadores em acabar com as Polícias Militares Estaduais brasileiras. A denúncia dele congelou tal intenção.
Desta vez, Klinger Sobreira de Almeida revela todo seu talento de romancista e ficcionista. Ele cria uma personagem, a sargento Alda, que é assassinada por traficantes durante trabalho em uma das unidades de Polícia Pacificadora (UPP), por conta de seu trabalho em ajudar a retirar jovens do caminho do tráfico.
“A sargento Alda é uma ficção. O escritor busca o rol de acontecimentos e cria. É o que fizemos. Dezenas de policiais mortos, principalmente no Rio e São Paulo, ora em confronto, ora em emboscada. Entre eles, homens e mulheres que tiveram seus sonhos interrompidos. Assim, criando a sargento Alda, engendramos uma síntese. Ela representa todos os policiais – a maioria absoluta – que patrulham as cidades, investigam, protegem, socorrem e, se necessário, sacrificam a própria vida em defesa da comunidade. Se juntarmos a história de cada policial covardemente assassinado em todos os recantos do Brasil, teremos a história da sargento Alda”, explica o coronel-escritor Klinger ao Blog do Elimar Côrtes.
Nesse ensaio-romanceado, Klinger Sobreira de Almeida aborda também a questão da corrupção no meio policial. Do alto de sua experiência, garante que 98% de tropa de todas as Polícias Militares Estaduais são formados por homens e mulheres de bem:
“Por outro lado, no meu ‘brevíssimo romance social’, se assim posso chamá-lo, também quis evidenciar que os que se corrompem e praticam violência arbitrária constituem a minoria no seio das corporações. Nos ataques às UPPs e nas emboscadas das favelas do Rio, têm morrido muitas ‘Aldas’, falo aí no sentido homem ou mulher, e cada uma tem, atrás de si, famílias, sonhos e projetos.”
Além de militar reformado da PMMG, o coronel Klinger é escritor e membro efetivo-fundador da Academia de Letras João Guimarães Rosa (Minas).
Bem, explicação dada pelo próprio autor, vamos à leitura, que é simplesmente magnífica.
À GUISA DE PREFÁCIO
Não sei como classifico “Uma Figura de Transição”. Seria uma crônica? Não! Um ensaio? Não! Um artigo? Não! Prefiro classificá-la como “um brevíssimo romance social”. Curto. Poucas páginas. Cinco expeditos capítulos. Mas “um brevíssimo romance social” que traz uma mensagem na figura da sua heroína – a Sgt. Alda.
Por que o escrevi? Foi a primeira resposta à provocação de minha amiga baiana – Olvanir Marques de Oliveira – com a qual compartilhei jornadas espíritas por mais de dois lustros, sendo ela fundadora e Presidente do Núcleo Espírita Maria de Nazaré – Casa da Santíssima, Salvador/BA. Idealista, profundamente espiritualista e dativa, intelectual, educadora e poetisa, Olvanir juntou amigas – médicas, enfermeiras, assistentes sociais, voluntárias… – e amigos, e criou um espaço para socorrer, principalmente gestantes pobres. Foi maravilhoso participar de seu trabalho de difusão da doutrina espírita e concorrer, embora modestamente, com a sua atividade de doação aos desassistidos e ignorados.
Retornando ao Espírito Santo, continuei correspondendo com Olvanir – pessoa iluminada que, mesmo distante, nos envia eflúvios positivos – e acompanhando seu maravilhoso blog: http://velasaovento-vane.blogspot.com.br/ – Nessa interação, leio suas poesias e envio-lhe, com certa frequência, minhas breves reflexões sobre a vida e seus mistérios. Recentemente, mandei-lhe “As Estações da Vida”. Sempre gentil, deu-me, em 13Out, um feedback: “…. Gostei do texto, se me permite, seja mais romântico. Sinto muita didática. O que é próprio de vosmicê. Seja mais ousado nos seus escritos, contemplativo, apaixonado pela vida. Deixe brotar uma singular amorosidade que vive escondida, dentro de vc. Como sempre, vc é dez!Que tal experimentar a narrativa, um conto pitoresco, verídico?Adoraria ler, tb.”
Muita bondade, mas diante dessa provocação gostosa, resolvi, dentro de minhas limitações de escrevinhador (ela, talvez, não veja, pois enxerga os amigos por lentes coloridas), elaborar uma pequena narração, dedicando-lhe. Ao mesmo tempo, também quero homenagear a Polícia Militar do Rio de Janeiro que, no seu afã de levar a pacificação às favelas, vem perdendo seguidamente bravos policiais que tombam no confronto com o crime organizado. Alguns casos, descritos nos jornais, sensibilizam a todos nós, mormente considerando que “os intelectuais defensores de bandidos” nunca se lembram das famílias dos policiais mortos no cumprimento do dever, em defesa da sociedade. A partir de 2012, com os traficantes tentando recuperar o território do crime, dezenas de PMs morreram nas refregas diretas ou emboscados. No corrente ano, dentre os inúmeros desenlaces, dois nos comoveram bastante:
(1) Em 02Fev, a linda policial negra, Alda Castilho, 27, surpreendida pela ousadia da bandidagem que ataca a base da UPP no Parque Proletário/Vila Cruzeiro, é atingida nas costas por um tiro de fuzil; a corporação lamentava, pois Alda cursava Psicologia, pretendia casar-se em breve e tinha uma carreira promissora pela frente; era a primeira de uma família pobre que chegara ao ensino superior;
(2) Uma patrulha, encurralada por traficantes na favela Nova Brasília, resiste bravamente, mas o sd. Rodrigo, 33, é atingido. Deixa oito filhos entre 5 meses e 15 anos.Agonizando, dá seu último recado: “Manda um beijo para minhas filhas, que não vai dar mais não, parceiro”. Os jornais do dia 8 focalizam esse herói, ouvem familiares e traçam seu perfil de homem que amava a missão de proteger as pessoas. Duas filhas enviam mensagens comoventes pela rede social, despedindo-se do pai.
Tenho escrito e vergastado algumas polícias no tocante à corrupção e à violência – inclusive a PMERJ. Em 2012, difundi dois ensaios a respeito – CORRUPÇÃO E SUAS NUANCES – O Cancro Gangrenoso das Organizações Policiais – e POLÍCIA versus POVO – onde abordo os aspectos negativos citados, e a necessidade premente de erradicar esses desvios que mancham as instituições. Acontece, no entanto, eu, que vivi Polícia Militar desde criança, a conheço por dentro: 95% a 98% dos membros de uma corporação são homens e mulheres abnegados e corajosos, que amam a sublime profissão, e não hesitam em sacrificar a própria vida em defesa da comunidade. Porém, como ocorre em toda organização humana, uma pequena parcela, de 2% a 5%, é composta de indivíduos trevosos que não absorvem os ensinamentos e valores da instituição. Quando recebem a farda, fazem o juramento e são investidos da autoridade estatal, inebriam-se pelo poder e pela cobiça; são marginais travestidos de policiais. Assim, as ações de uma parte pequena enodoam o trabalho e a imagem da parte substanciosa que carrega o lábaro do dever.
Este “brevíssimo romance social”, dedicado à bandeirante social – Olvanir – é uma homenagem de um velho soldado, que já ensarilhou armas – aos bravos e valorosos policiais da PMERJ que, nos últimos tempos, vêm sofrendo o impacto de imagens negativas que envolvem oficiais e praças no lodo da corrupção. Sabemos que, enquanto alguns poucos se enlamearam, milhares de policiais-militares do Rio de Janeiro estão firmes, patrulhando todos os sítios, urbanos ou rurais, na missão de proteger a população. Para tanto, não se curvam diante do perigo, mesmo cientes de que, no decurso da refrega em defesa da comunidade, podem não rever seus familiares, esposas e filhos.
A heroína Sgt. Alda – integridade, coragem, respeito à dignidade do ser humano e incorruptibilidade – é o símbolo do patrulheiro do dever. É o símbolo do lídimo e autêntico policial – aquele que não se deixa atrair pelo “canto da sereia” que acena ilusões de riqueza e poder sobre o oprimido.
(Klinger Sobreira de Almeida*)
Figura de transição, no contexto humano, é a pessoa que, por seu poder de persuasão, caráter, capacidade/potencial para fazer acontecer, liderança e outros atributos positivos, seja capaz de promover a ascensão de um grupo nos aspectos econômico, social e/ou moral. Trata-se de ser humano invulgar e singular, dotado de imensa força interior, que assume, em situações ou circunstâncias prementes, o papel de agente ativo da transformação, logrando, inclusive, regenerar costumes, padrões e valores.
No seio das famílias que, às vezes, vêm degradadas de pretéritos anos, a figura propulsora da transição pode ser um pai, uma mãe ou um filho, ou até mesmo um parente próximo. Modernamente, caso façamos uma pesquisa entre famílias que, ao longo dos últimos 100 anos ou mais, ascenderam da extrema pobreza ou da miserabilidade aos patamares de classe média alta, detectaremos exemplos fabulosos. Lá atrás, naqueles primórdios, veremos a figura de um ex-escravo, saindo do nada para edificar uma família, trabalhar com coragem e denodo e educar os filhos rumo à ascensão econômica e social. Em contrapartida, há famílias que se expandem, de geração em geração, permanecendo nos patamares mais baixos, inclusive morais, sem que se encontre uma figura de transição. Não há duvidas, e a marcha da história no-lo mostra, de que, na ascensão moral, social e/ou econômica das famílias, as figuras de transição deixaram suas marcas sinalizadas em matizes bem vivos.
Ampliando a visão dessa mobilidade ascendente dos núcleos familiares, onde a figura de transição sempre emerge de forma bem sinalizadora, vamos nos deparar com o fenômeno, também de matizes acentuados, no âmbito das comunidades ou outros grupamentos de pessoas (grupo de trabalhadores, tribos, classe oprimidas etc). E isto chega até a nação, o que a história nos demonstra com exuberância na figura de estadistas cujos nomes foram imortalizados no tempo.
Figuras de transição, assumindo posições de liderança e reivindicando tratamento justo, retiraram muitos obreiros, nos primórdios da revolução industrial, da condição sub-humana de trabalho, impondo regras de respeito à dignidade humana. As falanges de escravos, por sua vez, tiveram na luta pela emancipação, a vanguarda de líderes que emergiam, de tempos em tempos, arrostando o poder e a força. Essas figuras fizeram a transição, resgataram a liberdade de milhares, restituíram-lhes a dignidade mesmo que, para tanto, tenham sido sacrificados, torturados ou mortos de forma ignóbil.
Como explicar o aparecimento da figura de transição no seio de determinadas famílias ou de certas comunidades?
Cada ser humano, questionador e pensante, terá sua explicação. E esta se fundamenta nas suas crenças e convicções, ou no entendimento que a pessoa tenha do que seja a vida e seus mistérios. Eu, que perfilo na ótica espiritualista, prefiro enfocá-la pela vertente da doutrina espírita. Segundo esta, a Terra é um planeta de provas e expiações. Aqui, aportamos para expiar ou resgatar débitos pretéritos. As provas são, às vezes, terríveis, mas cabe-nos enfrentá-las e vencê-las na senda da ascensão cósmica. São bilhões de Almas – Espíritos Encarnados – a vivenciar provas da riqueza, da pobreza, do poder, da ganância, da vaidade etc… No meio destas Almas em teste – aprendizagem e/ou aperfeiçoamento, resgate ou correção – a misericórdia divina concede a dádiva da reencarnação de Espíritos Missionários que já se encontram em esferas superiores ao nosso planeta. Estes vêm com missão específica, sempre acudindo a famílias ou comunidades que anelam o reerguimento e a retomada do voo cósmico ascensional. Pode ser que venham para o bojo de uma família exorbitante em poder e riqueza, mas em profunda deterioração moral através de gerações, ou direcionados a famílias que vêm curtindo pobreza ou miserabilidade em gerações sucessivas mas que almejam a postura humana de viver em dignidade e contínuo progresso. Esses Espíritos Missionários muitas vezes têm curta passagem terrena; cumprem a missão e partem fugazes e breves, deixando, à esteira, uma semeadura que irá frutificar abundantemente. Resumindo, mas respeitando ideias e entendimentos divergentes: A Figura de Transição vem ao planeta Terra em missão. É um Espírito Missionário.
Um barraco de dois cômodos na favela Morro do Urubu. Nele residia a vigorosa negra Jacira e seus quatro filhos: Alda, 14; Beto, 10; Marcelo, 8; e Augusto, 6. A garota, uma guria viçosa, que despertava a cobiça dos gaviões do morro, era herança de seu primeiro marido, morto num entrevero com traficantes. Do segundo companheiro, os machos. Este, também, tivera o fim inglório ao resistir à exploração da milícia que, associada aos delinquentes do pedaço, sufocava a população trabalhadora. Fora a última tentativa de Jacira para uma vida conjugal. Daí em diante, vacinada contra tragédias, ela não mais quisera saber de homem e, olho-no-olho, edificou sua couraça psíquica de coragem e destemor, pronta, se necessário fosse, a enfrentar quem ousasse perturbar suas crias. Mas precisava trabalhar para sustentá-las, e o fazia como faxineira-diarista. Nesse afã, levantava-se toda madrugada, deixava os filhos aos cuidados da mais velha e partia para a refrega constante que era o uso do precário transporte público até o local de sua faina. A qualidade de seu serviço, sua disposição para o trabalho e a honestidade garantiram-lhe uma boa e fiel clientela. Sua vida era o trabalho do nascer ao pôr do Sol.
Devota da Virgem Maria, Jacira, ao levantar-se e ao deitar-se, não se esquecia da oração, invocando sua protetora. Agradecia-lhe, principalmente, por aquela joia com que fora presenteada: a filha Alda. Esta era uma garota incomum. Cuidava dos irmãos em sua ausência, alimentava-os, levava-os à escola, controlava-lhes os estudos, educava-os nos bons costumes e não permitia que se juntassem aos garotos “soldados do tráfico”. Ao rezar, Jacira pensava consigo mesmo: “Como pode existir uma menina tão meiga, responsável e corajosa; só mesmo uma bênção de Deus, e eu fui agraciada; se não fora ela, meus pimpolhos estavam jogados ao léu ou, talvez, mortos”.
Vida sofrida! Família grande, recursos parcos. Mas Alda, enquanto a genitora se esfalfava nas casas alheias, sabia se virar. Na padaria do morro, ia ao pão refugo, isto é, o pão velho e seco, que custava mais barato; e as crianças gostavam, deliciavam-se, amolecendo-o no ralo café, ou, às vezes, no leite, quando este aparecia com a sobra dos trocados. Imaginativa, porém realista, bolava artifícios de sobrevivência para que não faltasse alimento no lar: na fábrica de biscoito, distante alguns quilômetros, tinha preferência para comprar a quilo a quebra, ou seja, o restolho do estoque; na feira do bairro, esperava o término do movimento para arrebanhar folhagens e frutas que os feirantes normalmente se desfaziam. Dos aproveitamentos e dos restos ainda servíveis, fazia verdadeiros milagres em sucos, caldos, doces, bolos e guloseimas diversas. Sua preocupação era economizar o pouco que a mãe ganhava, fazer uma poupança para roupas, produtos de higiene, material escolar e emergências, mas, ao mesmo tempo, proporcionar aos irmãos e à genitora uma alimentação substanciosa.
Naquela sociedade, um imbróglio de pobreza e miséria, apesar da violência dos marginais, das rixas entre vizinhos por coisas de somenos – em que o álcool funcionava como agente motivador – paradoxalmente, reinava a solidariedade: troca ou empréstimo de gêneros alimentícios, auxílio com remédios e socorros mútuos. E a vizinhança admirava aquela garota que atuava, secundando a mãe Jacira, tal qual uma adulta responsável. Tinham-na como referência na energia e no modelo educacional, impedindo que seus irmãos se tornassem “soldados do tráfico” ou descambassem para integrar a horda de pequenos delinquentes que, dirigindo-se ao comércio e bairros nobres, retornavam trazendo produtos: adereços femininos, relógios etc – arrancados em “trombadas” e ações velozes (e algumas mães recebiam o produto dessas façanhas criminosas com alegria, aninhando, assim, a criança que seria o futuro delinquente). A adolescente Alda, repudiando o errado e exemplificando no correto, representava, naquele meio, a referência saudável, a estrela-guia.
A vida da família prosseguia. Alda crescia e tomava corpo. Aos 20 anos, uma exuberância de mulher. Negra esbelta e linda. Conduta retilínea, não se deixava levar por convites tendenciosos, como o do traficante Zenólio, que, insinuante e ostentando poder, lhe oferecera uma vida de luxo na cidade, para ela e seus irmãos. Era tenaz em sua resistência. Proficiente na proteção aos irmãos. Por sua vez, a genitora, forjada na luta, numa vida que não lhe dera tréguas, se impunha pelo valor: não temia nem mesmo os marginais que exterminaram seus ex-maridos; continuara morando no mesmo local, adotando conduta que impunha respeito no imenso círculo de vizinhos. E algo ela sempre deixara bem claro: sua família era sagrada, que ninguém se atrevesse a penetrar naquele cinturão moral de respeitabilidade. Ela era ousada, o que assegurava sua sobrevivência e da família. Quando da investida de Zenólio em cima de Alda, advertira-o pessoalmente – “não se meta, não criei filha para putaria ou pasto de quem quer que seja, vá caçar noutra freguesia” – e ele, bom entendedor, não quis dar sequência aos seus espúrios desejos.
Alda concluíra, em escola pública, o 2º grau. Seus irmãos, sob sua severa vigilância, seguiam a mesma trilha nos estudos. Beto, aos 16 anos, constituía-se num bastião daquela vida exemplar, e bem consciente de que o caminho do mal não era o viés para a família. Tudo corria bem, mas Alda estava inquieta e angustiada. Confidenciava à sua mãe nos fins de semana e nas conversas noturnas: – Mãe, preciso trabalhar. Ganhar dinheiro para ajudá-la. Buscar algo que nos permita mudar para um bairro não dominado por traficantes e milicianos. Quero também fazer um curso superior. Jacira retrucava: – Te entendo filha. Vamos com calma. Tudo tem seu tempo. Ainda dou conta do recado. A Virgem Maria me dá forças. Veja que nunca adoeço. Jacira era, realmente, uma mulher de uma força incrível. E seus diálogos com a filha sempre se repetiam. E Alda, que poderia seguir a mãe como diarista ou mesmo empregada doméstica, queria um emprego mais consistente que lhe permitisse fazer carreira e puxar os irmãos, oferecendo-lhes uma merecida vida de conforto.
Quem busca encontra! Certo dia, passando em frente a um comércio, Alda deparou-se com cartaz anunciando concurso para soldado da Policia Militar. Raciocinou: É uma boa carreira. Digna e respeitável. Permite uma ascensão através do estudo. Ligeira do pensamento à ação, no dia seguinte estava de posse de todas as informações e já se inscrevera. Estudou com afinco, preparou-se intelectual, física e emocionalmente e, quatro meses depois, estava no rol dos aprovados para o Curso Básico de Segurança Pública. Matriculada na escola de polícia, iniciou uma nova vida.
Nova fase na vida. Tempo integral nos estudos. Agregado aos ganhos da mãe, sua renda e a de Beto que começara a trabalhar. Alda, no íntimo amava o morro e seu povo, e anelava potencializar suas grandezas e mitigar ou erradicar as mazelas que imperavam, torpedeando os anseios de progresso e paz. Queria constituir-se numa agente modificadora, porém precisava, antes, ser alguém, garantir a segurança da mãe e dos irmãos. A farda, odiada por muitos que mais adoravam os bandidos, trazia-lhe rumores desfavoráveis. Conversou com os familiares, e decidiram: mudança para um bairro proletário, decente e livre da marginalidade. Assim deliberado, assim o fizeram. Com o coração confrangido, despediram-se dos vizinhos e amigos, mas Alda, atendendo a um apelo interior, dissera-lhes: -Até breve. No silêncio de seu âmago, afirmou para si mesma: – Retornarei, tenho certeza de que meu destino é este morro e seu povo.
Aos 22 anos, Alda, altaneira e garbosamente, patrulhava as ruas da cidade, compondo uma Companhia de Motociclistas. Não estacionou. Fez o Curso de Formação de Sargento, galgando a graduação que lhe dava um novo status de salário e comando. Concomitantemente, tentou o vestibular de Psicologia na Universidade Federal, obtendo êxito. Entendia que a Psicologia, ciência do comportamento, agregar-lhe-ia na missão policial, ajudando, apoiando e melhor compreendendo os seres humanos. Seria um valioso instrumento para atuar em prol das crianças, seu desiderato.
Militar estadual – orgulhosa e carregando os valores da instituição bissecular – enxergava na profissão policial uma oportunidade de promover o bem-comum. O patrulheiro existia como uma aba de proteção à comunidade, garantindo-lhe segurança e tranquilidade – este era seu pensamento e sua concepção. Aliás, isto aprendera e internalizara nos cursos de formação. Contudo, na vida real, a prática de uma parte da organização a que doravante pertencia se lhe exibia com aspectos podres e fedorentos. Alguns companheiros e companheiras, atraídos pelas ilusões de um mundo enganoso, inebriavam-se pelo poder que lhes era consentido e agiam como algozes do povo; atuavam com violência repugnante, e mais: chafurdavam-se na corrupção, muitas vezes em conluio com os delinquentes aos quais deveriam, por missão, reprimir e concorrer para a recuperação. Tudo isto lhe repugnava. Mas não podia desertar. Seus pensamentos divagavam: A maior parte da polícia é constituída de pessoas probas e vocacionadas para o bem-servir. Como pode uma minoria de marginais, travestidos em policial, enxovalhar nossa instituição e envergonhar a minoria? Os bons não podem se amesquinhar, ceder aos maus! Precisamos reagir, isolar e expor os corruptos e violentos! Precisamos sanear para que os indecisos e frágeis de caráter não se contaminem…
A família de Jacira, que vivera na subpobreza com dignidade, subia no contexto social, mas mantinha aquela mesma humildade e disposição dos tempos da favela, do barraco tosco de dois cômodos. Alda, 26 anos, 2º sargento, no 8º período de psicologia. Beto servia ao Exército, onde fazia carreira, tendo cursado a Escola de Sargento das Armas, em Três Corações-MG. Marcelo, bancário. E Augusto, preparando-se para o vestibular de medicina.
Alda, com efeito, uma pessoa singular; tal qual a mãe, religiosa e devota da Virgem Maria. Queria se casar e estruturar família tão logo concluísse seu curso de Psicologia, todavia, a reverso da maioria das moças modernas, permanecia virgem; reservava-se para seu futuro marido – o noivo Ângelo – estudante de Engenharia. Aliás, essa questão da virgindade, ícone para Alda como o fora pra Jacira, merece uma digressão que demonstra uma linhagem de caráter herdada da África. Segundo a tradição, a bisavó de sua mãe, chamada Luanda, nascera escrava. Tomando corpo, era uma negra escultural, parecia uma deusa. A exuberância de beleza e sensualidade despertara a cobiça sexual do filho do Senhor. Este, reputando-se dono, julgava-se no direito líquido de possuir aquela mulher escrava, e tentou, mas foi rechaçado vigorosamente: o corpo escravizado, possuía uma Alma livre que trazia, e respeitava, a cultura de seus antepassados – a mulher reservava-se para o seu futuro cônjuge. A resistência digna resultou no tronco seguido de açoite, que não matou Luanda, porque a Senhora, mãe do insensato, interveio, mandou soltá-la, tomou-a sob sua proteção e exigiu respeito aos valores morais da escrava. O fato serviu como um divisor de águas naquela senzala, e veio, juntado ao acervo da tradição, sendo verbalmente transmitido de geração em geração. Portanto, Alda recebera esse valor cultural e, malgrado a permissividade sexual dos tempos modernos, optou por preservar esses valores avoengos.
Integrante da Polícia Militar, cultivava os valores éticos da instituição, mas, como assinalamos, indignava-se com os desvios cometidos por uma minoria considerável da tropa – a já mencionada parte podre – useira e vezeira em atos de corrupção e violência covarde. Gostaria de regenerar o meio, mas sentia-se sozinha ou pregando no deserto. Tivera desentendimentos com companheiros de patrulha por não concordar em prática de achaques ou violência contra pessoas indefesas. Gostava da profissão, mas a podridão reinante, além de indigná-la, atormentava-a. E, permanentemente, voltava às suas elucubrações: O que fazer? Como atuar mais decisivamente para modificar o quadro lamacento? Pretendia continuar na Polícia Militar depois de formada em Psicologia, ingressando no Curso de Formação de Oficiais ou, talvez, como oficial do Quadro de Psicólogos. Contudo, teria de fazer algo de efetivo para não se atolar naquele lamaçal fétido – O mais fácil seria sair da policia… Em poucos anos lograra um acervo de experiência que lhe permitiria colococar-se no mercado de trabalho – pensava ela. Porém, rememorando valores, continuava refletindo: – O correto é permanecer, arregimentando companheiros e companheiras do bem para influenciar e limpar a corporação dessas chagas… É o que vou fazer – decidiu-se.
No torvelinho dessas cogitações e reflexões, Alda tomou uma resolução. Voltaria às suas origens. Sim, queria retornar à favela Morro do Urubu, onde se instalara, recentemente, uma UPP – Unidade de Polícia Pacificadora. Fez o pleito. O comando da corporação o acolheu, pois a favela era uma das mais problemáticas, e a pleiteante, miliciana de escol, já muito admirada por superiores e colegas, tendo sido criada no local, poderia ajudar no processo de pacificação. Foi designada sub.cmt. da UPP.
Assim, retornando ao antigo lar – cenário de uma infância e adolescência que, apesar das agruras, lhe dera resistência e caráter rijo – foi lembrada e muito bem recebida pela comunidade. Apoiada pelo Cmt. Heitor, da UPP – um tenente idealista que comungava os mesmos ideais: polícia protetora, imune à corrupção e à violência, zeladora da dignidade humana – passou a “fazer uma polícia diferente”. O que antes ela desenvolvera no pequeno universo de sua família – evitara que seus irmãos se tornassem “soldado do tráfico” e engajara-os num processo educacional – faria agora numa dimensão maior, abrangente de toda a comunidade. Deu sua mensagem aos companheiros de farda, sintetizada num chamamento – Faremos uma polícia de proteção às famílias, uma polícia de acolhimento às crianças e aos jovens; cada cidadão deve sentir no patrulheiro o anjo da guarda – e estes aplaudiram-na, acompanharam-na. Alda, por seu caráter que denotava elevado padrão moral, invejável nível intelectual e postura impecável, tornara-se uma líder natural, que galvanizava e atraia seguidores.
No seu propósito, foi arrebanhando crianças e jovens e, com apoio das lideranças sadias, proporcionava-lhes momentos de aprendizado moral, além de atividades lúdicas. No início, tudo muito lento e incipiente. Porém, aos poucos e gradualmente, aquela mensagem foi se expandindo. Atraiu a atenção de autoridades municipal e estadual, pastores e clérigos. Vieram também, nas asas da abertura, voluntários das comunidades de classe média e empresários altruístas.
A tarefa não fora fácil. Alda, já formada em Psicologia, se entregara, há três anos, de corpo e alma, àquela missão: fazer da polícia uma instituição estatal de proteção à comunidade; uma instituição de transformação. E ela, nesse pouco tempo, promovera um grande avanço. O Prefeito da cidade, atento ao que acontecia, atendeu aos pleitos: reformou o educandário do Morro do Urubu, transformando-o em escola de tempo integral – da manhã à tarde, com três refeições gratuitas – dotada de área para práticas desportivas e eventos artísticos. A seu pedido, ela, uma espiritualista que frequentava todos os cultos, lograra convencer o Padre católico, o Pastor evangélico e o Presidente do Núcleo Espírita Maria de Nazaré a promoverem, como rotina, reuniões ecumênicas, nas quais se irmanavam, na reverência a Deus, todos os credos e até os ateus.
As coisas boas iam acontecendo e se propagando. Vieram artistas e profissionais voluntários. Abriram-se salas de aprendizagem musical e artes plásticas. Ergueram-se oficinas-escola para formação nas áreas de alimentação, manutenção de prédios e veículos. O poder público, puxado pela liderança da Psicóloga-Soldado, fez-se presente em obras de infra-estrutura e saúde. O Ten. Heitor e seus companheiros uniram-se a Alda no reconhecimento natural de sua capacidade para aglutinar forças em prol do bem, para agir e fazer acontecer em prol da comunidade. A policia tomou a conotação de sua verdadeira e lídima missão: inibir, pela presença dinâmica e protetora, a vontade de delinquir daqueles que cortejam a linha tênue da marginalidade, como também diminuir os espaços propícios às práticas delituosas. Assim, na aba da proteção policial, exercida de maneira humana, nenhuma criança ou jovem em idade escolar ficava a perambular por logradouros públicos. As salas escolares, os areópagos artísticos e as oficinas-escola estavam sempre cheias de alunos e aprendizes.
Num triênio, a implantação de um novo modelo de comunidade. A Sgt. Alda, a Psicóloga-Soldado, liderara uma revolução pacífica. Fizera da força de sua UPP um foco de irradiação de paz e progresso. A policia, sem nenhuma mancha de corrupção e violência, era amada e tida como fator construtivo de uma comunidade melhor. O morro esmaecera como logradouro de comércio de drogas. Os traficantes viam a mão de obra escassear, não mais conseguiam “aviões” nem “soldados do tráfico”; os clientes, principalmente da classe média-alta, os grandes incentivadores do comércio nefando, não mais rodeavam o Morro do Urubu. . Alda estava esfuziante com o êxito de seu empreendimento comunitário, já aplaudido e apoiado pelo comando de sua corporação. O governo, pasmo, assistia a repercussão do que fora construído sem nenhuma interferência política. E Alda era, incontestavelmente, semeadora de uma futura polícia, e sua experiência, o embrião do desejável em matéria de segurança pública. Contudo, o pedestal em que a colocavam, as loas e elogios não lhe inebriavam. Permanecia a mesma, ostentando o lema do servir: acessível e humilde. Sua recompensa: ver as crianças emergirem daquele antigo estado de desprezo e miserabilidade; vê-las alimentadas e oportunizadas em saúde e educação.
O Morro do Urubu vivera uma metamorfose. Era o Morro da Luz e da Esperança.
Se conseguira levar um ideal iniciado em seu lar para a extensão de uma comunidade, Alda colhia, na vida particular e familiar, o triunfo. Seus irmãos haviam alcançado sucesso como cidadãos e profissionais. Beto firme em sua carreira militar, habilitara-se ao oficialato. Marcelo alçara ao cargo de Gerente na instituição bancária. Augusto, cursando medicina. Sua genitora – Jacira – aposentada, dedicava-se a uma ONG beneficente com foco no Morro do Urubu, que, doravante, por iniciativa dos moradores e apoio das autoridades municipais, fora rebatizado com a denominação de Morro da Esperança. E ela – Alda – regozijava-se. Seus ideais e sonhos realizavam-se. E outro sonho de vida, muito acalentado, estava prestes a se concretizar: casamento marcado para daí a quatro meses com Ângelo, seu noivo, que concluíra Engenharia e fora contratado por uma grande empresa.
Uma aura do bem envolvera o Morro da Esperança. Contudo, ainda paira sobre a humanidade muita treva. O mal não aceita passivamente ser derrotado. Reage e, quase sempre, virulentamente. Zenólio, aquele mesmo traficante que cobiçara Alda, quando esta adolescente, e fora recusado, tinha no antigo Morro do Urubu seu logradouro mais rentável, e via seu reinado esboroar. A mão de obra escasseara. As crianças e os jovens viviam atividades sadias em tempo integral, e a comunidade, como um todo, repudiava aquele comércio asqueroso, queria paz e progresso.
Zenólio, em sua mansão de um bairro nobre, reuniu-se com os seus homens-chave para debater o problema: – Isto não pode continuar, temos que reagir antes que outras Aldas surjam por aí. Nossa competitividade é ter uma polícia corrupta e violenta. Imaginem vocês esse exemplo de polícia da Alda propagando. Nós perderemos o controle dos mercados de drogas. A receita caiu em 60%. Temos de reagir!… Um grupo de sete capitães do crime ouvira atento o desabafo do temível Zenólio, chefe inconteste daquelas bandas. Então um deles, o Zé Capeta, tomou a palavra: – Chefe, o caminho é eliminar o mal pela raiz. Mostrar nossa força. Mostrar que não aceitamos um polícia diferente. Veja só: a mulher modificou a polícia; em nossa escrita não há nenhum policial, e isto é perigoso pra nós. Proponho eliminar Alda. Ela é a força desse movimento que aglutinou a comunidade do Urubu contra nosso comércio de drogas. Se ela morrer, todos sentirão que não adianta se insurgir contra o nosso poder. O povo é medroso. E teremos novas alianças na polícia – A reação às palavras de Zé Capeta foi unânime: – Essa menina passou da hora. Tem de morrer.
A Sgt. Alda se tornara uma figura popular e extremamente querida no Morro da Esperança. Andava sozinha e despreocupada, pois o tráfico não mais encontrava espaço naquela comunidade. Assim, ao anoitecer de certo dia, uma semana após o concílio do mal, presidido por Zenólio, ela, despreocupadamente, deixara a sede da UPP para assistir ao ensaio da banda de jovens, produto de seu incentivo, quando duas motocicletas passaram. Das armas dos caronas, partiram os tiros fatais. Alda tombou sem vida.
“Quando uma virgem morre, uma estrela aparece,
Nova, no velho engaste azul do firmamento,
E a alma da que morreu, de momento em momento,
Na luz da que nasceu, palpita e resplandece.” (Olavo Bilac)
O planeta Terra – logradouro de provas e expiações – habitado por Almas em diferentes estágios de evolução: uns poucos, plenos de luz; outros poucos, dividindo espaços de luz e sombras; e grande parte, afundada em trevas – vem em trajetória moral evolutiva através dos séculos. Adiantamos? Sim. A escravatura, chaga que persistiu por várias eras, teve fim. Os castigos tenebrosos como sacrifícios humanos para apaziguar os deuses, crucificações coletivas ou queima nas fogueiras da inquisição por causa de ideias, foram apagados do cenário das nações. A matança desenfreada dos vencidos nas guerras – prisioneiros, população civil, mulheres e crianças – assim como o genocídio generalizado, recebeu repúdio no concerto dos povos. Muito evoluímos, mas o planeta ainda continua recebendo Espíritos degenerados, verdadeiros calcetas cósmicos, que aqui aportam em expiação de pretéritos tenebrosos. O certo, no entanto, é que, apesar dos desvios que perseveram, do egoísmo exacerbado de uma parte, a grande massa quer evoluir, quer seguir em frente com dignidade e cultivando valores. Mas, sem se dobrar, temos de conviver com os delinquentes que ainda infestam o planeta. Além, a questão do egoísmo leva à injustiça social e formas disfarçadas de exploração das massas. Vide a pobreza desumana e a miserabilidade que se espraiam nos países periféricos e ainda vicejam até em países desenvolvidos, o que serve de pano de fundo para grassar a delinquência e a corrupção nos poderes públicos.
Ao longo dessa, diríamos, penosa trajetória evolutiva, o planeta tem sido agraciado com os chamados Espíritos Missionários que, no momento adequado, chegam para apoiar, influenciar e/ou regenerar grupos micros e macros, ou comunidades. Também, liderando, têm sido as vozes que se levantam, que modificam, que impulsionam. Constituem Figuras de Transição. Costumam pagar com a vida a ousadia de romper o status quo nocivo ou retrógrado. Reportemo-nos a alguns exemplos mais significativos que a história nos descreve.
Sócrates – o filósofo ateniense – que, com suas ideias inovadoras, rompeu o status quo da elite local, atraindo a juventude. Tornado inimigo público, a reação lhe caiu em cima, prendendo-o, julgando-o e condenando-o a suicidar-se com a ingestão do veneno chamado cicuta. Não deixando nada escrito, seu pensamento foi replicado pelos discípulos Platão e Xenofonte, e varou os séculos.
Jesus, o Cristo, há 2.000 anos propagou a mensagem do amor entre todos. Ofereceu-nos a figura do Deus-Pai de infinito amor, sabedoria e bondade. Levantando-se contra as distorções e a hipocrisia reinante, foi crucificado.
Giordano Bruno, queimado, em 1623, pela inquisição, foi acusado de panteísmo e defesa de ideias que contrariavam a fé católica. Defendia com ardor a tese de que a Terra não era o centro do universo, e o Sol era uma estrela, entre uma infinidade de outras, e muitos planetas, possivelmente habitados.
Zumbi, o líder guerreiro dos Palmares, lançou na década de 1670, o seu grito contra a escravidão de seus irmãos negros. Sua pretensão era o fim da odiosa escravidão com a libertação de todos os negros. Montou uma resistência fabulosa, lutou e resistiu, até que forças poderosas do reino português, comandadas pelo temível Domingos Jorge Velho, rompeu a defesa dos quilombolas. Zumbi, vítima de uma traição, foi capturado e teve sua cabeça decepada e pendurada em local público até a total decomposição.
Mahatma Gandhi, pregando nos primórdios do Sec. XX, espalhou a resistência à tirania inglesa, através da desobediência civil massiva, não violenta. Concomitantemente, numa peregrinação humilde, propunha a coesão nacional, a defesa dos direitos humanos e a eliminação da pobreza. Logrou seu intento primeiro: a Índia, em 1947, obteve sua independência. Porém o apóstolo da paz não pôde continuar: foi assassinado em 1948.
Martin Luther King, pastor protestante, fez ecoar sua voz contra a discriminação do negro americano. Na década de 1960, assomou como o grande líder dos direitos civis dos negros. Sua mensagem sempre se lastreou na paz, porém fundada numa denúncia forte e irrespondível pela sociedade discriminadora. Dentre os seus slogans, enunciado nas praças públicas como chamamento, fixou-se na mente do povo: “O amor é a única força capaz de transformar um inimigo num amigo”. Assassinado em 04Abr68.
Os tiranos e os assassinos não aprendem com a lição da história. Matam o líder, massacram a Figura de Transição, mas não “matam” a mensagem. Ao contrário, morto o mensageiro, derramado seu sangue no assassinato covarde – veneno, crucificação, forca, fogueira, espada, projétil de arma de fogo… – a ideia propaga-se com maior intensidade e força. Os discípulos, antes poucos, se alastram, levantam o lábaro da mensagem, fazem-na triunfar. E isto vem desde Sócrates, passando por Jesus, até chegarmos a Luther King, cuja morte foi o divisor de águas da emancipação civil do negro americano.
Faz cinco anos que a Sgt. Alda foi assassinada, covardemente, em frente à UPP do Morro da Esperança, quando, ao anoitecer, se dirigia a uma atividade artística de jovens favelados, da qual era incentivadora e patrona.
Sua mensagem, não apenas palavras, mas fazendo acontecer, metamorfoseou seu grupo policial em “polícia realmente pacificadora”. Conseguira irradiar aos colegas de farda que a polícia existia para proteger o povo; que, ao policial, impunha-se um comportamento avesso à corrupção, pois lhe cabia o exemplo à comunidade. A UPP do Morro da Esperança se tornara o modelo exibido pelo Comando da Policia Militar. Morta a colega, sua mensagem apagou-se? Não! Ao contrário, a figura de Alda, numa tela pintada por um de seus pupilos, colocava-se à entrada da UPP, e, abaixo, em letras grandes e vivas, trecho de suas preleções aos soldados: “Nós, policiais, temos o dever da incorruptibilidade. Cabe-nos proteger os membros da comunidade, respeitando a dignidade do ser humano, e nunca recorrendo à violência arbitrária. Emprego da força, nos limites da lei, para vencer resistências, não se confunde com violência. O policial é um profissional que sabe usar seus meios para defesa do cidadão e da família.” Ela pregava e praticava. A UPP, comandada pelo agora Cap. Heitor, manteve a tradição de probidade e respeito à dignidade das pessoas. Nenhum policial, que ali servia, ousava desrespeitar aquela mensagem. Era como se a Sgt. Alda estivesse viva, presente, fitando cada companheiro.
Quando de seu assassinato, os policiais da UPP ajudaram a equipe da Delegacia de Homicídios na identificação dos autores e mandantes, porém, em momento algum, partiram para desmandos ou vindita. O preso identificado, sem nenhuma violência, era entregue à autoridade. E o povo do morro foi o colaborador principal no desmantelamento total da quadrilha de Zenólio e Zé Capeta.
E a comunidade? Esta cultuou a memória da Sgt. Alda. Seu nome, antecedido do posto que honrou, tornou-se denominação do educandário, ginásio de esportes e da principal avenida do Morro da Esperança. A comunidade colaborou com a polícia na prisão de todos os traficantes. Continuou a política de educação integral para as crianças e jovens. O culto ecumênico – os Evangélicos da Igreja Batista, os católicos da Igreja Santo Afonso e os espíritas do Núcleo Espírita Maria de Nazaré – juntando todos, cristãos e não-cristãos, acontecia pelo menos uma vez por mês, sempre aglutinando mais e mais pessoas num grandioso ato de amor, quando o nome de Alda, a incentivadora, era sempre lembrado e invocado como paradigma de união, solidariedade e fraternidade. O poder público viu-se no dever de investir em infraestrutura e outras necessidades básicas da comunidade que, de braços dados com a polícia, fechou-se ao assédio do crime. E é isso o exemplo que ficara: polícia e povo podem agir juntos, interagindo, na prevenção do crime.
A negra Jacira, líder de sua ONG, voltou para o morro. Sua família comprou-lhe uma casa. Lá fora sua origem, dizia para si mesmo: – lá será meu fim. E os filhos – irmãos de Alda? Casaram-se e foram para o Morro da Esperança. Beto, tenente do EB. Marcelo, Gerente da Agência local da CEF. E Augusto, médico da UPA do morro. O Engenheiro Ângelo, tornando-se empresário, concorria para o progresso do lugar.
Hoje, o Morro da Esperança, antigo Morro do Urubu, não é mais caracterizado como favela. É um bairro urbanizado. Sim! Urbanizado como modelo para todo o Brasil, esta nação infestada de políticos cínicos e hipócritas – politiqueiros egoístas que só querem usufruir da coisa pública. A Prefeitura e o Estado, recebendo os ecos da mensagem da sargento assassinada pelo crime horripilante, acordaram e quiseram dar uma resposta. A comunidade – exemplo único – tem 100% das residências atendidas por água e esgoto. Todas suas escolas públicas acolhem os alunos em tempo integral; não há crianças nem jovens perambulando nas vias e logradouros públicos. Estes, além do ensino, têm oportunidade do desenvolvimento moral e cívico para a vida com o despertar vocacional rumo às artes, esportes e ofícios, inclusive inclusão massiva em informática. Em suma, o Morro da Esperança acha-se permeado por uma aura de ordem e progresso, dístico que simboliza nossa bandeira. Nele, não há lugar para simbologia do sangue: foice e martelo. É uma utopia? Não!. Caso haja uma regeneração moral dos políticos brasileiros – ressalvando as honrosas exceções – é possível retomar o exercício da política na sua tradição de promover o bem-comum. Então os recursos públicos – gerados pelas forças produtivas atuando na imensidão das riquezas do chão brasileiro – serão devidamente canalizados, e não mais escorregarão para os dutos da corrupção incentivadora do crime e da violência.
Alda se foi. Sua mensagem insculpira-se na mente de seus companheiros e de toda a comunidade. Os delinquentes que, matando-a, acreditavam retomar o controle da juventude para o crime, enganaram-se; ao contrário, eles é que foram irremediavelmente desmantelados e afugentados do Morro da Esperança. A Vida pertence a Deus. Ninguém, nenhum bandido ou fanático, tem o poder de tirá-la. Atinge-se o corpo perecível, mas a Alma imortal se liberta, e as grandes forças espirituais propagam e insculpem a mensagem na mente coletiva.
A Sgt. Alda – o Espírito Missionário – que promovera a transição de sua família, a transição de seus companheiros policiais e a transição de uma comunidade carente e violenta, deixara o Morro da Esperança? A população e os policiais da UPP dizem que não! Qual o mistério? O que estaria acontecendo?
A virgem, vitimada pelas balas assassinas, pereceu no corpo físico, mas uma estrela, nova, como exclamou o poeta, nasceu no velho engaste azul do firmamento. E a Alma de Alda empolgou essa estrela que palpita e resplandece sobre o Morro da Esperança. Ilumina a noite nas ruas e nas casas. O fato sobrenatural cristalizou-se tal qual uma lenda acolhida e cultivada. Inscreveu-se no painel cultural e psíquico da comunidade.
As pessoas dizem e juram que, nas horas da noite, uma linda negra – Alda – coberta por um luzente manto azul, esvoaçante, voa sobre as ruas, adentra aos lares em aflição, e consola; afaga as crianças, e estas não mentem; aparece aos doentes, e dá-lhes o bálsamo da esperança; visita seu quartel, e zela pelos policiais que vigiam. Muitos já viram, sentiram, perceberam, extasiaram-se… E relatam. Não há como duvidar!.
(O autor é coronel reformado da PMMG e membro efetivo-fundador da Academia de Letras João Guimarães Rosa/Minas)