As imagens de pessoas raivosas espancando o adolescente Alailton Ferreira, de 17 anos, no bairro Vista da Serra II, na Serra, Espírito Santo, no dia 5 de abril de 2014, correram o mundo. Apontado pelos linchadores como suspeito de furto, o menino foi atacado com pedras, barras de ferro e pedaços de madeira. Foi alvo de um espancamento coletivo. Desacordado, Alailton foi levado em uma viatura da Polícia Militar ao hospital, mas não resistiu e morreu três dias depois.
No dia de maio, imagens de outro linchamento foram parar também nas redes sociais. A vítima, desta vez, foi a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, 31 anos. Ela foi espancada até a morte por um grupo de cidadãos comuns na cidade de Guarujá, em São Paulo. Ela foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças capturadas para rituais de magia negra. A foto da suposta seqüestradora estava nas redes sociais, mas não era Fabiane.
O que o caso do adolescente capixaba Alailton Ferreira e da paulista Fabiane Maria de Jesus tem em comum? O primeiro causou pouca repercussão. Afinal, Alailton era negro e, segundo sua família, sofria de distúrbios mentais. Fabiane era branca e inocente. Jamais cometeu qualquer tipo de delito. Parlamentares estudam criar uma lei, com nome de Fabiane, para punir com mais rigor quem comete linchamento no Brasil.
Durante os dois anos – final de 2011 a dezembro de 2013 – em que ocupou a Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, o desembargador Pedro Valls Feu Rosa sempre que participava de solenidades públicas alertava: “No Brasil, ocorrem quatro linchamentos em média por semana. E ninguém fala e nem faz nada”.
Pedro Valls, atualmente, está na Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília, de onde, na quinta-feira (15/05), concedeu entrevista ao Blog do Elimar Côrtes, via email. Ele fez uma análise do comportamento das pessoas que participam de linchamentos. Porém, ressaltou o que sempre alertava quando era presidente do Tribunal de Justiça:
“Inicio pelas cenas de doentes depositados no chão de corredores imundos de alguns hospitais públicos, gemendo e suspirando pela oportunidade de simplesmente ocuparem uma maca….Somos mesmo um povo solidário? O que dirão nossos descendentes ao saberem que, em diversos hospitais particulares, muitas vezes seres humanos gemendo de dor são recebidos nos Prontos-Socorros com a pergunta ‘você trouxe a carteirinha?’, e apenas atendidos após estar garantido o pagamento das despesas?…Em nossos morros e favelas diariamente morrem 20 crianças por falta de esgoto sanitário – apenas 25% dos brasileiros que residem em cidades são atendidos por rede de esgoto, e só 12% dos dejetos são tratados”.
O agora desembargador auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Pedro Valls Feu Rosa, concluiu a entrevista com a seguinte proposta: “A grande verdade, diante destes exemplos, é que já passou da hora de mudarmos a filosofia de atuação do nosso sistema judicial. Precisamos de leis mais simples e de uma maior participação da Sociedade nos julgamentos. Seria sonhar demais pensar em um sistema criminal no qual a própria população julgasse, de forma rápida e simples, suspeitos que hoje aguardam meses ou anos por um veredito?”
Antes da entrevista completa do desembargador Pedro Valls, vale recordar estudo do professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) José de Souza Martins, que analisa inchamentos há mais de 30 anos e documentou 20 mil casos. Em 2008, numa entrevista ao jornal Estadão, ele fez uma estimativa surpreendente: no Brasil, possivelmente o país que mais lincha no mundo, “há três ou quatro casos por semana”.
Pelo estudo de José de Souza Martins, “mais de 500 mil brasileiros e brasileiras, incluindo crianças, participaram de linchamentos nos últimos 50 anos – e quase ninguém foi punido.” A seqüência de agressões vai do apedrejamento à mutilação,diz ele.
“A pesquisa do professor José de Souza Martins é o mais contundente levantamento sobre linchamentos que conheci”, afirma Pedro Valls.
Blog do Elimar Côrtes – Por que há linchamentos nessa sociedade chamada moderna?
– Desembargador Pedro Valls Feu Rosa – Vejo, em suas perguntas, um questionamento sobre o perfil do povo brasileiro. Pois bem: no já distante ano de 1618 um holandês de nome Dierick Ruiters deu um marcante testemunho acerca do que foram os anos de escravidão no Brasil: “Vi, certa feita, um negro faminto que, para encher a barriga, furtara dois pães de açúcar. Seu senhor, ao saber do ocorrido, mandou amarrá-lo de bruços a uma tábua e, em seguida, ordenou que um negro o surrasse com um chicote de couro. Seu corpo ficou, da cabeça aos pés, uma chaga aberta, e os lugares poupados pelo chicote foram lacerados a faca. Terminado o castigo, um outro negro derramou sobre suas feridas um pote contendo vinagre e sal. O infeliz, sempre amarrado, contorcia-se de dor. Tive, por mais que me chocasse, de presenciar a transformação de um homem em carne de boi salgada e, como se isso não bastasse, de ver derramarem sobre suas feridas piche derretido. O negro gritava de tocar o coração. Deixaram-no toda uma noite, de joelhos, preso pelo pescoço a um bloco, como um mísero animal, sem cuidarem de suas feridas”.
Exatos 250 anos depois, Joaquim Nabuco alertava sobre o vírus da violência, da falta de piedade e de compaixão que os anos de escravidão inocularam na sociedade brasileira. A escravidão, escreveu ele, “vivendo com a sociedade intimamente, adaptou-se a ela, comunicou-lhe os seus vícios, carregou de sombras o seu futuro”.
Já nos nossos dias, o escritor Jean Marcel Carvalho França bem analisou o custo desta “herança de insensibilidade” que recebemos: “nunca é demais lembrar que o “flagelo do cativeiro de negros” durou mais de três séculos entre nós e foi, queiramos ou não, constitutivo daquilo que entendemos por sociedade e povo brasileiros. É difícil crer que, alicerçada em tais bases, esta mesma sociedade, tradicionalmente muito lenta em corrigir distorções e reticente em discutir e alterar padrões, pudesse ou possa produzir um “povo pacífico”, um povo de “bom coração”, como se costuma dizer”.
Estas palavras induzem – ou pelo menos deveriam induzir – uma profunda reflexão sobre algumas cenas que vemos em nosso dia-a-dia, as quais, apesar de chocantes ao extremo, têm sido tratadas com uma insensibilidade surpreendente.
Inicio pelas cenas de doentes depositados no chão de corredores imundos de alguns hospitais públicos, gemendo e suspirando pela oportunidade de simplesmente ocuparem uma maca. Não, não se diga faltarem recursos: um Brasil que gasta tanto com tantos supérfluos tem, sim, recursos para dar um leito de hospital aos seus filhos.
Somos mesmo um povo solidário? O que dirão nossos descendentes ao saberem que, em diversos hospitais particulares, muitas vezes seres humanos gemendo de dor são recebidos nos Prontos-Socorros com a pergunta “você trouxe a carteirinha?”, e apenas atendidos após estar garantido o pagamento das despesas?
Dia desses divulgou-se uma chocante pesquisa segundo a qual ocorrem no Brasil quatro linchamentos por semana. Constatou-se ainda que, dentre 20 mil linchamentos pesquisados, apenas uma pessoa foi punida. O autor da pesquisa, estimando que 50% da população suporte, ainda que não claramente, esta prática, concluiu que “já não somos um povo cordial”.
Em nossos morros e favelas diariamente morrem 20 crianças por falta de esgoto sanitário – apenas 25% dos brasileiros que residem em cidades são atendidos por rede de esgoto, e só 12% dos dejetos são tratados.
Uma vez mais, não se fale em “falta de recursos” – um país riquíssimo como o nosso, que só em propaganda oficial gasta mais de R$ 1 bilhão a cada ano, poderia sim salvar as vidas destas crianças.
Talvez, neste início de milênio, mereça mesmo alguma reflexão a responsabilidade que temos de deixar para as futuras gerações de brasileiros a mensagem de que sentimentos como solidariedade e compaixão são nobres e devem ser cultivados. É, talvez seja o momento de nos perguntarmos se estão abalados os sentimentos de fraternidade e religiosidade que nos ensinaram serem tão típicos da nossa gente.
– A descrença da população em instituições como Política, Justiça e Polícia é um fator que pode provocar linchamentos?
– Seu questionamento aborda o igualmente grave problema da impunidade. Fiquei a pensar nos dados da pesquisa que já estudei. Considerei, ainda, que apenas está havendo alguma repercussão porque vitimaram um inocente. Juntando tudo, recordo-me de que não faz muito tempo li no jornal Clarín uma séria entrevista do presidente da Suprema Corte da Argentina, Ricardo Lorenzetti, na qual este defendia que “a Justiça não pode ser uma porta giratória”. Transcrevo um trecho da notícia: “O presidente da Corte Suprema se somou ontem às vozes que pedem uma postura mais firme dos juízes na luta contra a insegurança. Ele declarou que respeitar as garantias não significa que a Justiça seja uma porta giratória, em clara alusão à discussão sobre a soltura de presos que logo reincidem no crime”.
Menos diplomata foi o ex-presidente Néstor Kirchner: “é hora de a Justiça vestir calças”. A notícia trouxe também uma declaração da presidenta Cristina Fernández: “a Polícia prende e logo os juízes soltam”.
Estas fortes opiniões me trouxeram à memória uma outra declaração, publicada alguns meses antes no mesmo jornal: “Os juízes não pensam que isto pode acontecer com eles. Gostaria de saber onde estão os filhos dos juízes, porque a minha está morta. Seguramente eles têm responsabilidade”.
Estas palavras foram proferidas por Sandra, mãe de Nayla Policicchio, assassinada quando contava apenas 19 anos de idade, durante um assalto. Segundo consta, a Polícia teria recebido uma denúncia de que o autor do crime era um elemento condenado a 7 anos de prisão, mas que estava pelas ruas há 2 meses. Revoltada, Sandra indaga o motivo de porque aqueles que cometem crimes contra famosos sofrerem a ação enérgica do Estado, enquanto que o caso de sua filha segue rápido para o esquecimento. Indaga ela: “minha filha é menos que alguém famoso?”
Puxei mais o cordão. E descobri, em meus arquivos, uma forte entrevista do Chefe Comunal de Vilarino, local do interior da Argentina atormentado por uma alta incidência de roubos seguida de ampla impunidade: “se não houver uma solução para os roubos e para todas estas agressões, o que vai acontecer é que serão formados esquadrões da morte, porque há muitos moradores armados e com ovos suficientes para brecar o avanço destes idiotas criminosos”.
No dia seguinte a presidenta da Associação de Agricultores da região, Graciela López, em apoio a este posicionamento, declarou que anda armada e que “primeiro disparo eu, e depois o outro”. Alertou, ainda, que “todos os produtores estão armados, e que a qualquer momento pode haver enfrentamentos”. Um destes produtores, Hugo Mancere, desabafou: “a situação chegou ao limite; se não se corrige o sistema punitivo, não há saída”. Completa a matéria a fala de um agricultor, criticando a impunidade em torno do assassinato de sua esposa: “se amanhã acontecer algo mais com minha família, deverei ir lá matar o juiz?”
Mais ou menos na mesma época uma Juíza de Menores de Buenos Aires declarou que não dá a liberdade a infratores que sejam claramente culpados, argumentando que “se eles fossem libertados poderiam surgir outros mecanismos informais de defesa social, como a justiça pelas próprias mãos”.
Diante de uma realidade tão conturbada, fico a pensar no quanto a humanidade sofreu para conseguir o que hoje nós chamamos de Estado de Direito, materializado na paz que a obediência às leis deveria proporcionar – eis aí um patrimônio que não podemos sequer colocar sob risco, tão sagrado que é para a sociedade. E, diante desta reflexão, nunca tão própria a advertência do sempre lembrado Martin Luther King: “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”.
– O senhor defende leis mais rigorosas para punir linchadores? Ou que a Justiça aja com mais celeridade em processos relativos a linchamentos?
– Percebo sua intenção de saber o que deveria ser mudado no mundo das leis. Seriam necessárias leis mais duras? Ou mudanças no Judiciário? Pois bem: há poucos dias li nos jornais que a União Européia lamentou, de forma oficial, a milésima execução de uma pena de morte nos Estados Unidos desde o retorno deste tipo de punição, em 1976.
Peguei uma calculadora e fiz algumas contas. Foram mil execuções em uns 33 anos. Isto dá umas 30 por ano. Concluí que a média mensal de execuções ficou em 2,5 – arredondemos para 3. Podemos assumir, assim, que a cada mês são executados três seres humanos nos Estados Unidos.
O Brasil não tem pena de morte. Aliás, em todas as vezes que alguém apresentou propostas neste sentido vimos a Sociedade se levantar protestando – afinal, este é um país humano, cordial e tolerante. Temos orgulho disso!
No entanto, segundo um detalhado estudo conduzido pelo sociólogo José de Souza Martins, da Universidade de São Paulo, ocorrem aqui no Brasil – este mesmo Brasil que tantas vezes repudiou a pena de morte – inacreditáveis quatro linchamentos por semana. O mais chocante é que, dentre 20 mil casos pesquisados, localizou-se uma única condenação!
Voltei à calculadora e concluí que nos mesmos 33 anos nos quais os Estados Unidos executaram mil condenados nós matamos, no meio de nossas ruas, 6.336 suspeitos! Uma advertência: não estão computadas as mortes em tiroteios ou confrontos – estes números só incluem os linchamentos!
Há ainda um outro aspecto a ser realçado: aqui não se executa ninguém por injeção letal ou coisa que o valha – em nosso país recorremos aos chutes, pontapés, pauladas, pedradas e o que mais estiver à disposição. Até um cavalo foi utilizado, há poucos meses, para pisotear dois suspeitos que estavam sendo linchados sob as vistas de umas mil pessoas.
Destes números podemos extrair uma primeira conclusão: já passou da hora de o Brasil, discutindo de forma séria o combate ao crime, retomar o caminho da civilidade. E, nesta caminhada, talvez fosse bom olharmos para um curioso aspecto que envolve os linchamentos: o acerto dos vereditos!
Não, não me refiro ao acerto da conduta dessas pessoas, e fique isto muito claro – repudio os linchamentos e declaro-me contrário à pena de morte. Refiro-me apenas à conclusão de culpa ou inocência. Segundo constatou-se, em 20 mil casos pesquisados a sabedoria popular errou em menos de 3% dos casos. Eis aí algo digno de nota.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, um estudo sobre 4.578 processos durante 22 anos concluiu que 68% das condenações à morte continham erros e foram anuladas. Apurou-se que a margem de erro nos três estados norte-americanos com o maior índice de execuções é absurda: 18% na Virginia, 52% no Texas e 73% na Flórida. Recordo que no Brasil o veredito popular mostrou-se incorreto em menos de 3% dos casos. Há algo de bom a se extrair disso.
A grande verdade, diante destes exemplos, é que já passou da hora de mudarmos a filosofia de atuação do nosso sistema judicial. Precisamos de leis mais simples e de uma maior participação da Sociedade nos julgamentos. Seria sonhar demais pensar em um sistema criminal no qual a própria população julgasse, de forma rápida e simples, suspeitos que hoje aguardam meses ou anos por um veredito?
A quem disser que isto não pode ser, respondo que já é, e da pior e mais desumana forma possível. Que o digam os quatro suspeitos condenados à pena de morte e executados a pauladas e pontapés pelas ruas do civilizado Brasil todas as semanas.