Um trabalho realizado pelo Departamento de Criminalística da Superintendência de Polícia Técnico-Científica da Polícia Civil mostra com riquezas de detalhes onde foi parar parte dos recursos públicos desviados do Instituto de Atendimento Sócio-Educativo do Espírito Santo (Iases), uma instituição ligada à Secretaria de Estado da Justiça (Sejus), de 2008 a meados de 2012.
Oficialmente, o valor preliminar do desvio é de R$ 32 milhões. No entanto, levando em consideração o montante apurado pela perícia contábil no período de janeiro de 2012 a julho do mesmo ano, que foi de R$ 10.151.906, 90, a Polícia Civil calcula que o prejuízo aos cofres públicos pode chegar a R$ 50 milhões. O valor total do desvio ainda é investigado agora no âmbito da Justiça.
Realizada pelos peritos criminais Leonardo Lorenzon Mazocco, Dalton Guimarães Pereira e Valdirene Strela, a perícia contábil atendeu a solicitação da Força Tarefa – comandada pelo delegado Rodolfo Queiroz Laterza – criada pelo governador Renato Casagrande, em 2011, para apurar violação de direitos humanos e ilegalidade no Iases .
Na ocasião, já haviam surgido denúncias de maus tratos e tortura aos adolescentes em conflitos com lei internados em unidades do Iases, além de irregularidades administrativas, como desvio de recursos públicos. A perícia foi pedida por meio do ofício número 29756/2012, em que figura como vítima o Estado do Espírito Santo e como averiguada – colocada na condição de suspeita ou investigada – a Associação Capixaba de Desenvolvimento e Inclusão Social (Acadis). A Acadis foi criada em 30 de julho de 2008 justamente para prestar serviços ao Iases.
Em seu relatório, que já se encontra em poder do Juízo da 8ª Vara Criminal de Vitória, os peritos informam ter rastreado e analisado documentos relativos a 39 volumes, compreendendo a movimentação de gastos do Centro Sócio Educativo de Cariacica e das duas unidades de internação (provisória e definitiva) de Linhares, administradas pela Acadis, no período de janeiro a julho de 2012.
São documentos apreendidos durante a Operação Pixote, estourada no dia 17 de agosto de 2012, em que foram presas 13 pessoas, incluindo a então presidente do Iases, Silvana Gallina, e o ex-presidente da Acadis, o falso bispo colombiano Gerardo Bohorquez Mondragon. Além deles, foram presos Edna Lúcia Gomes de Souza, Euller Magno de Souza, Ricardo Rocha Soares, Severino Ramos da Silva, Antônio Haddad Tápias, Marcos Juny Ferreira Lima, Tatiane Melo, Ana Rúbia Mendes de Oliveira, Douglas Fernandes Rosa, André Luiz da Silva Lima e Danielle Merisio Fernandes Alexandre.
Todos estão soltos respondendo a processos em liberdade. Também foi indiciado pela Polícia Civil e denunciado pelo Ministério Público Estadual pela acusação de envolvimento com o grupo o secretário de Justiça da época, Ângelo Roncalli de Ramos Barros.
Ao encaminhar pedido de perícia contábil ao Departamento de Criminalística, o delegado Rodolfo Laterza elaborou, em conjunto com sua equipe de investigadores, 17 tópicos. Todos respondidos pelos peritos criminais Leonardo Mazocco, Dalton Guimarães e Valdirene Strela, com vasta experiência na perícia contábil. Antes, porém, de responder os questionamentos, os peritos fizeram um breve histórico da Operação Pixote, lembrando que ela se originou dos trabalhos apuratórios, “conduzidos e presididos pela Polícia Civil”.
Ressaltam ainda que no decurso das investigações, “a Força Tarefa percebeu irregularidades no uso do dinheiro público, recursos esses que eram transferidos do Iases, órgão responsável pelo sistema socioeducativo do Espírito Santo, a uma empresa não governamental (Organização Social) conhecida como Acadis”.
Ainda segundo os peritos, o Iases realizou convocação pública por meio de edital de qualificação de Organização Social (OS), que pudesse gerir o Centro Sócio Educativo de Tucum, em Cariacica, com capacidade para 80 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de internação. “Após todo o processo, a Acadis foi intitulada de Organização Social e vencedora da licitação para gestão de unidade de Cariacica, assinando o contrato de gestão nº 01/2008”, assinalam os peritos.
Posteriormente, segundo eles, a Acadis firmou nova parceria com o Iases, assinando o contrato de gestão 02/2001 “onde assumiu a gerência das unidades de internação e internação provisória de Linhares com capacidade para 150 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de internação.”
“Exposto isso, o presente trabalho visa esclarecer, no que tange a parte contábil, como foram geridos os recursos públicos pela então averiguada Acadis”, esclarecem os peritos criminais, salientando, porém, tratar-se de uma perícia parcial.
Os trabalhos foram executados dentro dos limites técnicos determinados pelas Normas Brasileiras de Contabilidade (NBC-113 e NBC-P2) e observados os preceitos da Lei Complementar nº 489/09, do decreto nº 2.484/R/10, do Manual de Compras e Contratações de Serviços da Acadis e demais legislações pertinentes ao caso.
Ao primeiro quesito formulado pela Força Tarefa, os peritos informam que R$ 10.151.906, 90 foram movimentados pela Acadis entre janeiro de 2012 e julho do mesmo ano, recursos repassados pelo Iases.
No mesmo período, ainda segundo a perícia contábil parcial, foram destinados em depósitos bancários R$ 177.135,00 para o colombiano Gerardo Mondragon e seus quatro sócios. O repasse foi feito pela Acadis, do dinheiro oriundo do Iases. São repasses relativos a diárias e salários. Para Mondragon, foram destinados R$ 72.520,63, enquanto seus sócios receberam: R$ 31.453,67 (Ricardo Rocha Soares); R$ 21.818,31 (Fabrício Lopes da Silva); R$ 21.262,22 (Douglas Fernandes Rosa); e R$ 30.080,17 (Marcos Juny Ferreira).
A Força Tarefa quis saber também se seria possível comparar os gastos pela Acadis e Iases junto a empresas prestadoras de serviços com os padrões de mercado e os valores referenciais adotados pela Secretaria de Gestão e Controle do Estado.
Neste item, “foram encontradas algumas discrepâncias”. Em um dos contratos com a Buffet Restaurante Paladar, para fornecimento de alimentação aos adolescentes da unidade de Cariacica, foram gastos R$ 588 mil. O mesmo serviço sairia, segundo a perícia contábil, por R$ 258.257,774, uma diferença de quase R$ 330 mil.
À mesma empresa, foram repassados também mais 1 milhão para fornecimento de refeição nas unidades de Linhares. De acordo com a perícia, o preço de mercado seria de R$ 442.079,67, diferença de R$ 557.920,33.
Foi encontrada diferença entre valor de mercado e o que a Acadis e Iases repassaram a uma empresa de vigilância para prestação de serviço na unidade de Cariacica: o valor pago para serviço entre janeiro e julho de 2012 foi de R$ 187.520,20, enquanto o valor de mercado é de R$ 163 mil. Nesse mesmo período foram repassados também quase R$ 550 mil para a empresa de segurança da família de um deputado estadual.
A perícia contábil parcial constatou que, no período periciado, foi gasto um total de R$ 18.483,27 somente com pagamento de juros mora. Com passagens aéreas, viagens e estadias, foram gastos R$ 23.062,47 entre janeiro e julho de 2012.
Os peritos apresentam ainda no relatório compras em desacordos ao Manual de Compras e Contratação de Serviços Acadis. Segundo eles, conforme manual de compras extraído do endereço http:/WWW.acadis-es.org.br/?p=12&i=640 em seu artigo 8º estão previstos os procedimentos para aquisição de bens e serviços. Balizados nestes procedimentos, os peritos, ao fazerem o levantamento dos gastos, “observaram que R$ 336.702,13 foram gastos com aquisições de bens e serviços em desacordo ao referido artigo, ou seja, não foram encontrados nos lançamentos às requisições de compras/serviços ou as propostas orçamentais ou a nota fiscal ou a deliberação coordenação administrativa que segundo o parágrafo 3º do referido artigo o conjunto desses documentos foram o processo de compras.”
Quem conhece os bastidores da segurança pública, sabe que a Operação Pixote vai servir de inspiração para que delegados de Polícia Civil realizem ainda este ano outras operações similares em todo o Estado, com o intuito de combater a corrupção.
Os integrantes da Força Tarefa criada pelo governador Renato Casagrande entendem que os peritos Leonardo Lorenzon Mazocco, Dalton Guimarães Pereira e Valdirene Strela agiram de forma abnegada, superando todos os tipos de adversidades. A perícia contábil foi realizada graças à iniciativa corajosa do então chefe da Superintendência de Polícia Técnico-Científica, delegado Guilherme Daré.
Os desvios estavam menos intensificados em 2012 porque a partir daí o governador Casagrande colocou os órgãos de fiscalização do Estado para agirem dentro da Sejus, além da participação do Tribunal de Contas do Estado.
De acordo com policiais que integraram a Força Tarefa e, posteriormente, o Núcleo de Combate às Organizações Criminosas e à Corrupção (Nuroc), levando em conta o desvio de 2012 – mais de R$ 10 milhões –, pode se deduzir que o desvio nos quatro anos anteriores, a partir de 2008, pode chegar a R$ 50 milhões. Inicialmente, as investigações do delegado Rodolfo Laterza chegaram a um montante de R$ 32 milhões desviados.
Segundo relatório da Força Tarefa, os aditivos foram feitos pelo Iases à Acadis, a partir de 2008, “em descontrole com a legislação, sem comprovação de necessidade.” O aditivo, afirma um dos agentes do Nuroc, “tem que ser uma exceção e não uma regra.”