Aquela tarde de domingo, 28 de março de 2004, ainda está fresca em minha memória. Acabava de chegar à Redação de A Tribuna para mais um fechamento na Editoria de Polícia. A edição já estava praticamente pronta, mas de repente a repórter plantonista liga para o jornal avisando que estava indo cobrir um acidente na Serra.
Ao mesmo tempo, uma equipe da Editoria de Esportes de A Tribuna retornava para a Redação, depois de cobrir uma corrida no antigo Barródromo. Eram pouco mais das 3 horas da tarde e os jornalistas de Esportes chegaram primeiro ao local do acidente, na avenida Civit II, próximo ao Cemitério Jardim da Paz, na Serra, porque ali também era seu itinerário.
O que os repórteres de A Tribuna – e, mais tarde, os de A Gazeta também – viram foi uma cena de tristeza e melancolia. Duas crianças mortas e outras duas pessoas gravemente feridas em um acidente que envolveu três carros: em dois deles, seus motoristas faziam um pega, de maneira criminosa e irresponsável.
Nem me lembro se os dois criminosos que provocaram o pega foram presos em flagrante. Se foram, com certeza pagaram fiança e colocados em liberdade. Hoje já não funciona muito assim.
No dia seguinte, porém, o delegado Fabiano Contarato, que desde aquela época já iniciara a luta árdua e difícil de tentar acabar com as tragédias no trânsito, sendo implacável com motoristas irresponsáveis, abriu o Inquérito Policial. E logo indiciou os responsáveis (ou irresponsáveis) pela tragédia: David Nunes Pereira e André Felipe Rocha dos Santos.
Em 21 de maio de 2004 o processo contra os dois foi distribuído na 3ª Vara Criminal da Serra (Privativa do Júri). O Ministério Público Estadual denunciou André e David por duplo homicídio doloso. Ou seja, quando os autores de um acidente têm consciência de que poderão provocar morte.
Oito anos depois, um dos dois criminosos foi julgado pela Justiça. David Nunes Pereira, 31 anos, foi condenado a 14 anos de reclusão pela morte dos irmãos Helen Jesus da Silva, 5 anos, e Renan Jesus da Silva, 10 anos. Também ficaram feridos o pai das crianças, o taxista Hélio Alves da Silva, e outra filha dele, Letícia Jesus da Silva, 6 anos.
Na sentença, o juiz Carlos Magno Teles, que presidiu o Conselho de Sentença do Tribunal do Júri da Comarca da Serra – o julgamento ocorreu no dia 21 de novembro –, condenou David a cumprir, inicialmente, a pena em regime fechado, mas permitiu que ele recorra em liberdade.
No mesmo processo de número 048040066853 também foi indiciado André Felipe Rocha dos Santos, com quem David disputava o “pega”. André não foi julgado porque a defesa recorreu da sentença de pronúncia no Tribunal de Justiça.
De acordo com denúncia do Ministério Público Estadual, David dirigia o Voyage, placas MRO-1356, e André guiava o Gol, placas CBF-1691.
Os dois, segundo apurou o delegado Fabiano Contarato, desenvolviam “velocidade excessiva e, deliberadamente, assumindo o risco de violação da integridade física dos personagens que integravam aquela área de circulação, realizaram uma disputa de velocidade em seus automóveis, popularmente conhecida como racha ou pega”, que culminou com a colisão com o veículo Fiat Uno Mille, placas MSD 0032, onde se encontravam o taxista Hélio e seus filhos Renan, Hellen e Letícia.
A Polícia Civil e o Ministério Público descobriram também que David e André, antes da tragédia, estavam no antigo Baródromo, onde acompanhavam corrida de carros.
Depois, foram embora e, quando estavam indo ao Civit II, André se aproximou do veículo de David e o convidou para um desafio de pega. Foi nesse desafio que eles atingiram o carro dirigido por Hélio e mataram as duas crianças.
Os jurados do Conselho de Sentença da Serra consideram Davi culpado da morte de Renan e Hellen e pela autoria do crime de lesão corporal grave (perigo de vida) contra Letícia. Entretanto, na mesma votação, o corpo de jurado absolveu o réu do crime de lesão corporal grave em relação a Hélio.
O juiz Carlos Magno Teles decidiu permitir o réu recorrer em liberdade:
“O réu encontra-se solto, o que demonstra que não se evadirá ou impossibilitará a devida aplicação da pena ora estabelecida. Assim sendo, entendo haver motivo ensejador para permitir que o réu continue em liberdade até o trânsito em julgado desta sentença”, diz o magistrado na sentença.
O Ministério Público Estadual recorreu, em parte, da sentença do juiz Carlos Magno Teles. Para a Promotoria de Justiça Criminal da Serra, o juiz, ao aplicar a pena de 14 anos, levou em consideração que David praticou somente um homicídio, quando, na verdade, o acidente praticado por ele matou duas pessoas.
Já a defesa de Davi recorreu também por considerar a “pena excessiva” e que seu cliente não praticou nenhum pega e que a morte das duas crianças “foi mero acidente”.
Na sentença, o juiz Carlos Magno Teles explica o porquê, na dosimetria da pena, aplicou somente 14 anos de reclusão para David:
“Os crimes cometidos enquadram-se na primeira parte do ‘caput’ do artigo 70 que reza: ‘Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade”’.
Prossegue o magistrado na sentença: “O crime de homicídio qualificado previsto no artigo 121, §2°, do Código Penal Brasileiro, tem pena prevista entre 12 a 30 anos de reclusão. O crime de lesão corporal grave tem a pena prevista de 01 a 05 anos de reclusão. Assim sendo, levando em consideração o previsto no supra citado artigo 70 do Código Penal, as circunstâncias judiciais e a pena prevista no artigo 121, § 2°, aplico ao acusado a pena-base de 12 (doze) anos de reclusão, ou seja, a mais grave das penas cabíveis, no mínimo legal. Não existem circunstâncias agravante ou atenunates previstas nos artigos 61 e 65 do Código Penal. Não há circunstância de diminuição de pena. Existe a circunstância de aumento de pena prevista no artigo 70, ou seja, um sexto ou metade da pena aplicada. Face a isto aumento a pena anteriormente aplicada em um sexto, ou seja, 02 (dois) anos de reclusão. Assim sendo, aplico em definitivo ao réu David Nunes Pereira, a pena de 14 (catorze) anos de reclusão a ser cumprida inicialmente em regime FECHADO, conforme estabelece o artigo 33, §2°, alínea “a” do Código Penal Brasileiro.”
Para o chefe da Delegacia de Delitos de Trânsito da Polícia Civil, delegado Fabiano Contarato, a condenação de David é uma vitória da sociedade:
“A condenação desse sujeito não vai trazer de volta a vida das duas crianças. Mas é um estímulo a mais para que esses jovens pensem muito antes de saírem de maneira irresponsável dirigindo seu carro. O pega é um crime. Por isso, eles (David e André), ao praticar o pega, sabiam que poderiam colocar em risco a vida de outras pessoas. Esperamos que o outro réu também seja julgado logo e tenha o mesmo fim de David. A condenação vai fazer esse rapaz refletir sobre seu ato, que destruiu uma família com a morte de dois irmãos, ainda crianças. Mais uma vez, nosso sistema de Justiça funcionou. Graças a Deus”, disse o delegado.