Tem sido comum, nos últimos meses, o registro de ocorrências envolvendo policiais militares que reagem a assaltos e matam os suspeitos. A prática (da reação do policial), geralmente, é noticiada com pompas pela imprensa capixaba, transformando o policial num verdadeiro herói. Não há questionamentos por parte da mídia e raramente há explicações plausíveis por parte das autoridades responsáveis pela investigação dos casos.
Recentemente um pai veio a público e, em reportagem publicada em A Tribuna e no site Século Diário, denunciou que um policial militar teria “exagerado” ao atirar em seu filho e em outro suspeito de roubo – os dois jovens morreram – em Vila Velha, no dia 17 de janeiro deste ano.
Alega o pai que o policial poderia ter prendido os rapazes sem a necessidade de atirar e matá-los no meio da rua, no bairro Nossa Senhora da Penha.
Em 1° de dezembro de 2011, um policial militar, que dirigia seu próprio táxi, teria também reagido e matado dois supostos assaltantes em um posto de gasolina, em Alto Laje, Cariacica.
Alega o policial que iria levar seu defensor em casa, quando parou no posto. Ao parar, dois homens, em uma moto, se aproximaram de sua porta – do taxista, que era o policial – e anunciaram o assalto. O policial reagiu e matou os dois jovens.
Os casos em que policiais “reagem” e matam “assaltantes” geralmente são cercados de mistério. E de mentiras. Não que as versões dos dois casos acima, em que foram mortos quatro suspeitos de assalto, sejam falsas. Mas há casos em que a mentira mais cedo ou mais tarde é descoberta.
Como acabou de concluir a Corregedoria Geral da Polícia Militar sobre um fato ocorrido em 6 de maio de 2010, no bairro Sólon Borges, na Grande Goiabeiras, em Vitória. Nessa data, um cabo da PM matou um assaltante e ainda feriu um trabalhador com bala perdida.
No dia da ação, o cabo foi tratado como herói pela imprensa. Parte de sua farsa, entretanto, foi desmascarada pela própria corporação a que pertence.
A versão publicada na imprensa foi a de que depois de ter R$ 30 mil roubados por dois motoqueiros armados dentro de um restaurante, o cabo, que à época tinha 44 anos, reagiu ao assalto e matou um dos assaltantes, às 11 horas do dia 6 de maio de 2010.
Ainda segundo a imprensa no dia, o cabo estava de folga e acompanhado da namorada. O acusado Marcelo Cardoso da Silva Ribeiro, 23, morreu no local com um tiro no peito. Com ele foi encontrado um revólver calibre 38
com seis balas intactas.
Em depoimento na Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o cabo informou que os R$ 30 mil eram provenientes da venda de um carro seu. O dinheiro havia sido depositado na conta da “namorada” do PM.
Antes de ir ao restaurante, ela sacou a quantia em uma agência do Banco do Brasil, em Camburi, e o policial foi ao local buscá-la. Em seguida, o casal foi para o restaurante. O policial reagiu quando os assaltantes fugiam. Ele sacou uma pistola ponto 40 da cintura e atirou.
A versão investigada e concluída por intermédio de um Inquérito Policial Militar (IPM) pela Corregedoria Geral da PM, que já encaminhou o caso ao Ministério Público Estadual e à Vara da Auditoria Militar, é outra, embora houvesse a figura do assalto. Na versão oficial da PM, o cabo não é nenhum herói e está sendo denunciado por homicídios, venda e compra clandestina de vale transporte e porte ilegal de arma.
De acordo com cópias do IPM obtidas pelo Blog do Elimar Côrtes junto ao Ministério Público, o cabo de fato estava de folga no dia 6 de maio de 2010 e teria agido (e não reagido) a um assalto em que matou o suspeito Marcelo e feriu um trabalhador que passava no meio da rua, com bala perdida. Na versão que apresentou à imprensa e à DHPP, o cabo dizia que deu somente um tiro, o que matou o suspeito.
Foi apurado ainda que o cabo tinha ido a uma agência bancária em Camburi com a moça que, na versão inicial, ele dizia ser sua namorada, onde sacaram R$ 30 mil. Por volta das 11 horas, o cabo e a suposta namorada pararam em um restaurante no bairro Sólon Borges, quando teria surgido um assaltante, dentro do estabelecimento, e exigido a entrega do dinheiro que havia sido sacado no Banco do Brasil.
O cabo, então, disse ao criminoso que o dinheiro estava em sua caminhonete, dentro de uma bolsa. Neste momento, o militar jogou a chave do veículo para o ladrão.
Após abrir o carro e retirar do interior o dinheiro, o criminoso subiu na garupa da moto de seu comparsa, que o aguardava fora do restaurante, e antes que pudesse fugir, foi baleado pelo cabo, que “efetuou dois disparos contra os criminosos”. Esta conclusão da Corregedoria já desmente uma das versões do cabo, que disse ter dado somente um tiro.
Os agentes da Corregedoria da PM, responsáveis pela investigação interna, descobriram que os tiros disparados pelo cabo provocaram a morte do assaltante e lesões corporais em outro cidadão, “que passava pela rua no horário do fato, sendo baleado na perna”.
A Corregedoria descobriu ainda que os R$ 30 mil foram sacados da “namorada” do cabo e pertenciam ao policial militar. O dinheiro, de acordo com a Corregedoria, seria proveniente da venda de um veículo.
Inicialmente, o cabo e a moça se apresentaram aos policiais que atenderam a ocorrência como namorados, mas os autos apontam para o fato de que a moça é funcionária da esposa do cabo, que explorava (na ocasião, junto com o cabo) clandestinamente a venda de vale transportes em uma loja próximo ao Aeroporto de Vitória, em Goiabeiras.
O cabo, para matar o assaltante, utilizou uma pistola registrada em nome de um soldado PM, “vendida de forma irregular”, segundo investigação da Corregedoria enviada ao Ministério Público e à Justiça Militar.
A Corregedoria apurou também que o cabo e a funcionária de sua esposa também foram vítimas de roubo em 12 de novembro de 2009, quando tiveram pertencem levados, entre eles o carro do militar e a arma da Corporação que ele portava.
Em seu depoimento, o cabo e a funcionária confirmaram que a moça sacou R$30 mil de sua conta e que o dinheiro era do cabo. Revelaram que foram ao restaurante para almoçar, onde foram rendidos “por um homem armado, que depois de pegar o dinheiro na caminhonete, tentou fugir com seu comparsa, fato que fez com que o policial o alvejasse”.
De acordo com o relatório final da Corregedoria Geral da PM encaminhado ao Ministério Público e à Auditoria Militar, há indícios da prática de crime comum na conduta do cabo pelo assassinato do suspeito de assalto Marcelo Cardoso da Silva, pelas lesões corporais no rapaz atingido por bala perdida e porte ilegal de arma de uso restrito.
Ainda de acordo com a própria Polícia Militar, “vislumbra-se” também a prática de transgressão disciplinar “em desfavor” do cabo por ter, “em tese, participado de comercialização irregular de vale transportes; e por ter portado arma de fogo em desacordo com as normas vigentes e de transgressão disciplinar”. Também está sendo punido o soldado que vendeu, de forma irregular, a pistola para o cabo.
Em algum momento desse caso o cabo foi até vítima. Afinal, bandidos tentaram roubar dele R$ 30 mil. O problema é que o cabo, conforme apurou a própria Corregedoria da PM, mantinha um comércio ilegal de compra e vendas de vales transportes.
É bom lembrar que este tipo de atividade ilícita por muitos anos lesou as empresas de transporte coletivo, o poder público e os passageiros. Hoje, o sistema de vale transportes foi abolido e substituído por um mais seguro, que é cartão de passagem.
Ao mesmo tempo, o cabo tinha uma arma irregular, que ele utilizou para matar um suspeito de roubo. E o cabo foi pego também nas mentiras que contou para a imprensa e para os policiais militares e civis que iniciaram a ocorrência.
Mentir pega mal para qualquer cidadão. Para uma autoridade, então, como é o caso do policial militar, é mais grave ainda: é crime.