Autor: Pablo Lira, Doutor em Geografia, Mestre em Arquitetura e Urbanismo, pesquisador do Instituto Jones dos Santos Neves – IJSN – e professor da Universidade Vila Velha – UVV)
A falta de honestidade intelectual se distancia substancialmente dos preceitos éticos, democráticos e republicanos. Com essa postura, o interlocutor se afasta da integridade analítica e se associa à arrogância, vaidade e soberba. O sujeito fica cego ou na melhor das hipóteses míope aos fatos do mundo real.
Essa postura nos remete à obra literária de José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”, a qual versa sobre uma misteriosa epidemia de cegueira branca que se dissemina por uma cidade, alterando o comportamento das pessoas e revelando o lado mais sombrio de determinados indivíduos.
O artigo “O hábito de olhar para o retrovisor”, publicado no último dia 04 de março, apresentou exemplos de pouco apreço pela honestidade intelectual, o que coloca sua credibilidade em xeque. O texto foi assinado pelo ex-secretário de Economia e Planejamento do ES (2015-2018). Por conta dessa trajetória profissional, prefiro acreditar em uma eventual desatenção do autor quando colocou no papel algumas de suas ideias.
Antes de comentar, respeitosamente, passagens do citado artigo gostaria de chamar atenção sobre o título. O autor reiteradas vezes cai na própria armadilha e prova que tem o hábito excessivo de “olhar para o retrovisor”. Já no início se apresenta como ex-secretário da SEP no período 2015-2018. Esses anos são citados sete vezes naquela redação. Isso indica que o narrador está preso em seu próprio retrovisor e o mesmo tem um grande ponto cego para negar o passado alheio.
Não tenho nada contra o passado. Pelo contrário, acredito que devemos olhar para trás com sabedoria e honestidade intelectual. Potencializar os acertos do passado, assim como aprender com os erros cometidos para corrigi-los no presente e projetar um futuro melhor. Isso vale para o nossa vida pessoal, governos e instituições. A história nos ensina muito, vide os legados de Eric Hobsbawm, François Dosse e de outros tantos historiadores. Negar a história ou distorcer fatos é um dos caminhos mais sorrateiros para fragilizar as sociedades e democracias.
O texto do ex-secretário afirma que “em 2015 implantamos o programa ocupação social”. Como sabemos por meio da história recente, o programa somente começou a realizar as primeiras ações no decorrer de 2016. Talvez por isso, torna-se compreensivo a imprecisão na seguinte afirmação: “Com o programa [ocupação social], o índice de homicídios de jovens de 15 a 24 anos caiu 55% nos bairros periféricos”. Ao final dessa frase, que também está presente no artigo do ex-secretário, surgem algumas dúvidas. A redução aconteceu em qual período? O ano de 2015 foi considerado nesse cálculo? Existe alguma avaliação de impacto, “baseada em fatos e evidências concretas”, que permite estabelecer relação de causalidade entre o programa e a propalada redução? Em caso de inexistência da referida avaliação, não seria essa uma relação espúria?
O ponto cego no “retrovisor” do autor aparece novamente quando ele menciona que na gestão 2015-2018, “alcançamos resultados notáveis – […] o menor índice de homicídios desde a década de 90 […]”. A história e os avanços do ES não se resumem ao período de 2015-2018.
Segundo os dados da Secretaria de Segurança Pública (SESP), os homicídios no Espírito Santo apresentam tendência acumulada de queda desde 2010. Parte dessa diminuição é explicada pela implementação do Programa Estado Presente entre 2011 e 2014. Essa constatação se baseia no recente estudo, baseado em fatos e evidências científicas, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) com o título de “Uma avaliação de impacto de política de segurança pública: o Programa Estado Presente do Espírito Santo”.
Um problema de hipermetropia analítica é detectado quando o autor omite por completo os resultados alcançados em 2019. Pela primeira vez, desde o ano de 1993, o estado fechou o ano com menos de mil homicídios registrados. Nesse último ano, o Espírito Santo alcançou a menor taxa de homicídios das últimas três décadas. Foram 24,3 assassinatos por 100 mil habitantes, ou seja, uma redução de 13,2% na comparação com 2018 (28,0 homicídios por 100 mil habitantes). Insta salientar que essa ainda é uma taxa elevada, contudo esses resultados demonstram que o Espírito Santo está no caminho da redução da criminalidade violenta.
A hipermetropia analítica também está presente na seguinte afirmação do ex-secretário: “E, em 2018, o Espírito Santo foi o único Estado do país com nota A em contas públicas, segundo o tesouro nacional”. Já que critica tanto o “hábito de olhar para o retrovisor”, por que o citado artigo omitiu o resultado mais recente das contas públicas capixabas? De acordo com a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), em 2019 o ES foi a única Unidade da Federação (UF) que conquistou nota A em capacidade de pagamento, uma demonstração clara do equilíbrio das contas públicas. Essa nota A foi alcançada ainda em 2014 e mantida nos anos seguintes. Na verdade, desde 2012 o Espírito Santo apresenta a nota mais elevada entre as UFs.
O equilíbrio nas contas públicas não deve ser um fim nele mesmo. Tal equilíbrio deve ser utilizado como propulsor de políticas públicas que viabilizem a articulação do crescimento econômico com desenvolvimento social. Essa foi a regra de ouro aprendida pelos capixabas ao longo das últimas décadas. Como nos ensina brilhantemente o Professor Orlando Caliman, “foi com temperança e prudência que o Espírito Santo foi governado nos últimos 17 anos”.
Na produção acadêmico-científica a honestidade intelectual consiste em um princípio essencial. Partimos desse valor, que é muito caro e imprescindível para a ciência, para desenvolvermos e implementarmos metodologias com o objetivo de testar hipóteses e tentar solucionar problemas.
Para além do ambiente acadêmico, a honestidade intelectual é uma virtude que deve ser cultivada por todos, sobretudo, formadores de opinião, gestores, políticos, especialistas e estudiosos. Sem a honestidade intelectual, a sociedade fica mais vulnerável a distorções ópticas da realidade ou até mesmo à cegueira analítica da verdade.
11/03/2020
Artigo publicado em A Gazeta