Faltavam poucos minutos para 1º de janeiro de 1998. Dentro do estúdio da Rádio Tropical FM, que naquela época se localizava no bairro Itaquari, Cariacica, o dublê de deputado-radialista Antário Alexandre Theodorico Filho, conhecido como Antário Filho, apresentava o tradicional programa da virada de ano. Era o programa do Réveillon. De repente, o assassino passa pela portaria da emissora, invade o estúdio e dá 10 tiros em Antário Filho, naquela noite de 31 de dezembro de 1997.
Noite de 15 de abril de 2002. O advogado criminalista Joaquim Marcelo Denadai retorna a pé para seu apartamento, na Praia da Costa, em Vila Velha, depois de fazer uma caminhada pelo calçadão da praia. Cercado por pistoleiros profissionais – um deles, soldado da Polícia Militar –, Marcelo Denadai é assassinado com dois tiros na cabeça.
O que o assassinato de Antário Filho tem a ver com o de Marcelo Denadai? Em tese, nada! Ou, em tese, tudo!
Algumas coincidências cercam os dois casos: o deputado e o advogado foram vítimas do crime organizado que sempre dominou o Espírito Santo. Antário Filho e Marcelo Denadai foram mortos devido à atuação deles em Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) para apurar desvio de dinheiro público em obras de saneamento.
Antário Filho era do PSDB e tinha 42 anos quando foi morto. Ele havia acabado de integrar a CPI do Prodespol, instalada pela Assembleia Legislativa, durante o governo de Vitor Buaiz, com o objetivo de apurar desvio de recursos públicos destinados para obras do Programa de Despoluição dos Ecossistemas Litorâneos do Espírito Santo.
O Prodespol se iniciou no governo de Albuíno Azevedo, entre 1991 e 1994. Foi suspenso em dezembro de 1997, quando venceram os primeiros contratos das empreiteiras com a Cesan, e o governador ainda era Vítor Buaiz (que era do PT, mas, para não ser expulso, migrou-se para o PV).
O Prodespol era administrado pela Cesan, a Companhia de Saneamento do Espírito Santo, que hoje volta a estar no olho do furacão da sociedade, da classe política capixaba, do Ministério Público do Estado do Espírito Santo e da Operação Lava Jato, devido a sua ligação com a Odebrechet e com outras empreiteiras acusadas de corromper políticos brasileiros e estrangeiros com bilhões de dólares.
As obras do Prodespol – o programa nasceu para ser um dos mais importantes projetos de despoluição do litoral brasileiro – foram suspensas por falta de verbas para contrapartida ao Banco Mundial, incompetência administrativa, suspeitas de corrupção e, sobretudo, pelo assassinato do deputado Antário Filho. O Prodespol foi orçado em R$ 308 milhões.
Antário Filho produziu um relatório paralelo ao apresentado oficialmente pela CPI do Prodespol. A Polícia Civil, na época, informou que ele foi assassinado por causa desse relatório. A Polícia Civil tentou autorização para ouvir depoimento de deputados estaduais daquela ocasião, mas o Plenário da Assembleia Legislativa não autorizou.
Oficialmente, a Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) apresentou dois irmãos como autores do assassinato de Antário Filho: os garis Edson Antônio da Silva e Luiz Antônio da Silva. Os dois foram absolvidos em 1999, no primeiro julgamento realizado pelo Tribunal do Júri de Cariacica. Entretanto, o Ministério Público Estadual recorreu e, em 2005, houve um novo julgamento em que Edson foi condenado e o irmão dele absolvido.
Hoje, Edson cumpre pena numa Penitenciária Estadual. Edson sempre confessou o crime, alegando, porém, que matou Antário Filho porque o radialista-deputado teria “cantado” sua esposa. Edson residia no bairro Bonfim, em Vitória, e alegou na época que sua esposa era fã do radialista. Claro, a alegação dele nunca convenceu aos investigadores e nem ao Ministério Público.
Ao longo dos anos, a Polícia Civil chegou a indiciar supostos intermediários do assassinato, mas nunca os verdadeiros mandantes. Até o já falecido Dejair Camata, Cabo Camata, que morreu em acidente de carro quando era prefeito de Cariacica, chegou a ser apontado pela DGPP como suposto mandante. Mas nada foi provado e Cabo Camata negava veementemente a acusação. A Polícia Civil capixaba, para sepultar de vez o assunto, deixou para indiciar Cabo Camata depois que ele morreu. Claro, o caso foi arquivado.
Nos autos do processo que julgou o assassinato de Marcelo Denadai, a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, com base no Inquérito da Polícia Federal, consta que o advogado foi morto por causa das denúncias que apresentou à CPI das Galerias, instaurada pela Câmara Municipal de Vitória para apurar desvio de dinheiro público.
Consta que Denadai foi assassinado a mando do empresário Sebastião de Souza Pagotto – já condenado pelo crime em todas as instâncias –, dono da empresa Hidrobrasil Saneamento e Limpeza Industrial Ltda.
O Ministério Público Estadual sustentou na denúncia que o empresário teria mandado matar Marcelo Denadai para ganhar licitações supostamente fraudulentas na Prefeitura Municipal de Vitória.
De acordo com os autos do processo nº 035.020.096.380, o soldado da Polícia Militar Dalberto Antunes da Cunha foi denunciado em virtude de matar Marcelo Denadai com tiros de pistola.
Segundo o MP, Dalberto executou o homicídio acompanhado do ex-tenente da PMES Paulo Jorge dos Santos Ferreira, o PJ – que já foi assassinado como queima de arquivo. Ainda segundo o Ministério Público, Dalberto e PJ mataram o advogado “mediante paga ou promessa de recompensa, já que exerciam a função de seguranças particulares do denunciado Sebastião de Souza Pagotto.”
Sustenta o MP em sua denúncia que “o motivo torpe para o cometimento do hediondo crime foi desavenças entre o mandante Sebastião Pagotto e Marcelo Denadai, pois houve uma licitação fraudulenta no Município de Vitória visando a contratação de empresa para limpeza de galerias pluviais, que originou a denominada “CPI das Galerias”.
A CPI das Galerias teve como presidente o então vereador Antônio Denadai, irmão de Marcelo Denadai. Como advogado, “Marcelo assessorava o irmão com informações relevantes sobre as fraudes, em virtude das quais foi beneficiada a empresa Hidrobrasil Saneamento e Limpeza Industrial Ltda., de propriedade de Sebastião de Souza Pagotto.”
Salientou ainda o Ministério Público que mesmo após o arquivamento da CPI – devido as pressões dos políticos ligados a Pagotto e à base do então prefeito de Vitória, Luiz Paulo Vellozo Lucas –, Marcelo Denadai continuou a “investigar” os fatos, o que desagradou Sebastião Pagotto, “beneficiado pelas fraudes”.
Ainda segundo a denúncia do Ministério Público, após o assassinato de Marcelo Denadai, foram realizados a renovação e aditamento do contrato, sendo certo que “o denunciado Sebastião de Souza Pagotto tinha interesse em se ver livre da Vítima, antes da renovação e do aditamento.”
O valor original do contrato firmado entre a Prefeitura de Vitória e a empresa vencedora da licitação – a Hidrobrasil – foi de aproximadamente R$ 4,9 milhões, sendo que a renovação também alcançou o montante aproximado de R$ 4,9 milhões, “havendo notícias de que ainda foi efetuado um aditamento.”
Portanto, sustenta o Ministério Público em sua denúncia, “o homicídio da vítima Joaquim Marcelo Denadai teve como objetivo assegurar a execução, a ocultação, a impunidade e a vantagem de outro crime, ou seja, a fraude no procedimento licitatório, no qual foi beneficiada a empresa Hidrobrasil Saneamento e Limpeza Industrial Ltda., de propriedade do denunciado Sebastião de Souza Pagotto.”
Em maio de 2006, o Ministério Público Estadual ofereceu denúncia contra quem, na Prefeitura de Vitória, teria permitido que a empresa de Pagotto vencesse licitações supostamente fraudulentas.
O assassinato de Marcelo Denadai é, portanto, mais um dos casos emblemáticos do Judiciário capixaba. Marcelo havia programado encaminhar à Justiça, no dia 16 de abril de 2002 – ele morreu na noite anterior –, uma queixa crime em que citava o envolvimento de 12 empresas, algumas administradas por laranjas, em fraudes em licitações, concorrências e serviços públicos nas 78 prefeituras existentes no Espírito Santo, e outras no Rio de Janeiro.
Outra curiosidade: com exceção de Pagotto e do soldado Dalberto, todas as demais pessoas envolvidas no assassinato de Marcelo Denadai já morrerem: o ex-tenente da PM Paulo Henrique Jorge, o PJ; o ex-PM Juliano César da Silva; o comerciante Eduardo Victor Vieira; – indiciados criminalmente –; e Leonardo Maciel Amorim – na condição de testemunha.
O ex-tenente PJ foi assassinado com mais de 30 tiros próximo ao Cais do Hidroavião, em Santo Antônio, Vitória, para onde tinha sido atraído para almoçar em um restaurante local. O comerciante Eduardo foi morto dentro de um ferro velho no bairro Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha, em março de 2003. O ferro velho foi invadido por dois homens armados, que anunciaram um suposto assalto e atiraram nele, matando, também, o empregado de Eduardo, o mecânico Carlos Alberto Almeida, como queima de arquivo.
Também foi assassinado o comerciante Leonardo Amorim, uma das testemunhas do caso Denadai, no bairro Santa Rita, Vila Velha. Já o ex-PM Juliano César foi executado com cinco tiros em Itapoã, Vila Velha, em 2004, depois de prestar depoimento na Polícia Civil relatando informações sobre os cinco assassinatos anteriores – Marcelo Denadai, PJ, Juliano, Eduardo, Carlos Alberto e Leonardo.
Como se observa, quase 20 anos se passaram desde o assassinato do deputado e radialista Antário Filho. Já se vão 17 anos da morte do advogado Marcelo Denadai. De novo, o pedido de abertura de uma nova CPI causa polêmica e mexe com os deputados estaduais e com os homens fortes do governo do Estado.
De um lado, os deputados Euclério Sampaio e Josias Da Vitória correm atrás de assinaturas para instalar a Comissão Parlamentar de Inquérito da Odebrecht, para investigar os contratos do governo com a empreiteira. No alvo da CPI também estão a Camargo Corrêa e a Delta. O plano dos dois parlamentares é focar nos contratos firmados com órgãos públicos estaduais e municipais, por meio de suas secretarias.
A CPI também quer analisar as licitações, contratos e todos os serviços efetuados e prestados também pela Cesan, como cobranças “abusivas de taxa de esgoto, sem contraprestação de serviços”, cobrança de taxa de instalação abusiva cobrança de taxa casada, corte de fornecimento sem comunicação prévia e poluição, entre outras questões. A maioria dos deputados e o governo do Estado são contra a CPI.
O que os políticos contrários a uma nova CPI temem agora? Uma certeza a sociedade tem: os capixabas estão cansados de chorar e sepultar seus mártires, como Antário Filho e Marcelo Denadai, que mexeram com fogo – ou melhor, com água – e foram sumariamente assassinados.
Como alerta, vale recordar uma célebre frase do governador Paulo Hartung, lá em 2003, quando do início de seu primeiro mandato: “A onça está ferida, mas não está morta” – numa referência ao crime organizado capixaba.
O governador tem razão!