Um estudo inédito, feito com os dados disponibilizados pela Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp) e em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves e o Instituto Sou da Paz, mostra como está sendo nefasta para a população a política de flexibilização do porte de armas e munição feita pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). A política armamentista de Bolsonaro permitiu que diversas categorias profissionais e os chamados CACs (clubes, escolas de tiro e colecionadores, atiradores desportivos e caçadores) pudessem comprar armas e munições com facilidade. Centenas de armas e munições apreendidas no Espírito Santo chegaram aos bandidos depois de “furtadas, extraviadas e ou roubadas” de quem as adquiriu de maneira legal.
A política de Bolsonaro, no entanto, foi desfeita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, ao tomar posse em 1º de janeiro de 2023, editou decreto que revogou uma série de normas do governo passado que facilitavam e ampliavam o acesso da população a armas de fogo e munição. O estrago, entretanto, vai permanecer por décadas.
O estudo sobre as armas e munições apreendidas em solo capixaba está dentro do Anuário de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo e é uma compilação abrangente e detalhada dos dados estatísticos relacionados à segurança pública. Integra o Programa Estado Presente em Defesa da Vida. O anuário, inserido no Observatório Estadual da Segurança Pública (GEOSP/Sesp), é mais um produto inovador que fornece, de forma transparente, estatísticas, séries históricas e análises espaciais sobre crimes contra a pessoa e contra o patrimônio, ocorrências no trânsito, emergências atendidas pelos bombeiros militares, dentre outros tipos de evidências científicas que são essenciais para subsidiar a elaboração e aprimoramento de políticas de segurança pública, Justiça Criminal e áreas correlatas.
Também traça um perfil – tema desta reportagem – das armas e munições apreendidas no Estado ao longo do ano passado, como tipo de armamento, marcas, nacionalidade, calibres e a distribuição por regiões capixabas. Em 2022, as forças policiais apreenderam 4.761 armas no Espírito Santo. Destas, 3.950 eram armas de fogo, 539 foram classificadas como simulacros (falsas) e 272 eram armas de pressão (91% do tipo airsoft). A comparação com o ano de 2021 aponta queda de 3,6% nas apreensões de armas de fogo e aumento de 46,2%, nas apreensões de armas de pressão.
Ainda segundo o estudo, o ranking dos cinco tipos de armas mais apreendidas em 2022 é composto por 1.324 revólveres (33,4%); 1.167 pistolas (29,5%); 525 espingardas (13,3%); e 316 submetralhadoras (8,0%). A maior parte das submetralhadoras apreendidas eram armas de fabricação semi industrial. Segundo a Sesp, chama a atenção a apreensão de armas de pressão, do tipo airsoft, modificadas para efetuar disparo de munição real. Em 2022 foram apreendidas 41 armas com estas características.
No anuário, o Instituto Sou da Paz faz uma análise inédita sobre a dinâmica das ocorrências e o perfil das munições que foram desviadas do mercado legal para o ilegal (roubadas, furtadas ou extraviadas) e das munições apreendidas pelas polícias capixabas entre janeiro de 2018 e junho de 2022. Foram identificadas 154 ocorrências envolvendo 5.394 unidades de munição desviadas do mercado legal para o ilegal. Há um aumento importante de 54% no período: no primeiro semestre de 2018 houve 13 ocorrências, passando para 20 no início de 2022. A média por ocorrência foi de 35 unidades, havendo 22 casos com desvio de mais de 50 munições.
Ainda segundo o Sou da Paz, Serra, Vila Velha, Cariacica e Vitória se destacam somando 53% das ocorrências. Já a Área Integrada de Segurança Pública AISP 2, que engloba os municípios de Nova Venécia, Boa Esperança, Montanha, Mucurici, Ponto Belo, Pinheiros, São Gabriel da Palha, Vila Pavão e Vila Valério, também se destaca com 9%.
De acordo com os dados analisados pelos técnicos do Instituto Sou da Paz, a dinâmica de furto foi mais frequente, com 47% do total, seguida por 27% de extravios e 26% de roubos. A marca CBC (foto ao lado) é hegemônica, com 88% do total das munições desviadas, havendo 11% sem informação de marca e menos de 1% com outras marcas identificadas. O calibre .22LR, comum em tiro desportivo e na caça de pequenos animais, destaca-se com 28% das munições desviadas, seguido pelo .40S&W com 21% do total, e pelo .380 com 19% do total.
Chama a atenção dos especialistas o fato de que o principal local desses desvios são residências: 45% das ocorrências e 56% das munições desviadas. Em seguida estão vias públicas, com 30% das ocorrências e 20% das munições. Apesar da menor quantidade, três ocorrências em repartições públicas se destacam pela maior média de unidades levadas. “Os locais com maior média de munições desviadas por ocorrência podem ser um orientador para fortalecer fiscalizações preventivas”, reforça o Instituto.
Na análise das 22 maiores ocorrências de desvio de munições (com mais de 50 unidades), pelo menos três em cada quatro casos ocorreram em residências (73%). As dinâmicas mais comuns foram de furto (73%) sem os proprietários presentes. Dentre os 27% de casos de roubos, muitos tinham indícios de informações privilegiadas sobre a presença de armas e munições no local.
Em relação às munições apreendidas, foram identificadas 14 mil ocorrências envolvendo 269 mil unidades de munição, uma média de 16 ocorrências por dia. A média de munições apreendidas por ocorrência foi de 19 unidades, havendo 26 ocorrências com mais de 500 unidades e 10 ocorrências com mais de mil unidades.
“Assim como nos casos de desvio, vemos uma tendência de aumento das ocorrências de apreensão. O início de 2022 teve um aumento de 15% em relação a 2018. No entanto, na comparação entre tipos de locais, os ritmos de crescimento são diferentes. A via pública soma 62% das ocorrências e apresentou crescimento de 7% no período, já as residências somam 25% do total, mas cresceram 29%, aumentando sua importância frente ao total”, frisa o Sou da Paz.
Entre os grupos de incidentes criminais, os casos de posse e porte irregular se destacam com 52%, seguidos dos crimes relacionados à política de drogas, com 18%. Entre as agências que conduziram as ocorrências, 85% foram pela Polícia Militar, seguida de 12% da Polícia Civil,2% de guardas municipais e 1% da Polícia Rodoviária Federal.
“É visto que há também uma melhora na qualidade do dado sobre marca, o patamar de 21% de munições sem informação em 2018 caiu para 3,7% no início de 2022. Essa melhora pode estar relacionada ao Grupo de Trabalho de Controle de Armas, aos cursos de análise criminal oferecidos pelo Instituto Jones dos Santos Neves ou ainda de outras ações internas da SESP que merecem ser reconhecidas”, enaltece o Instituto Sou da Paz.
Por fim, o estudo aponta que, em relação aos calibres, há grande predominância dos relacionados a armas de porte (pistolas, revólveres e carabinas) que somam três em cada quatro munições apreendidas, com destaque para o .380 (27% do total), .38 (17%) e o 9mm (14%). O calibre .232LR também se destaca com 14% estando entre os calibres de armas longas de alma lisa (como espingardas). Os calibres compatíveis com uso em fuzis somam 3% do total. Quando se analisa apenas as 26 maiores ocorrências (que somam mais de 500 unidades), 31% foram realizadas em cumprimento de mandados, 15% na apuração de denúncias e 12% em patrulhamento.
“Entre todos os grandes casos, apenas um teve relato inicial de troca de tiros, coerente com o perfil de ações que usam informações qualificadas apuradas de denúncias ou de investigações policiais, possibilitando maior segurança na ação e o fator surpresa a favor da polícia, reduzindo chances de confrontos. Dois grandes casos, entre eles o maior com mais de quatro mil munições, envolveram cumprimento de mandados em residências de pessoas com registro legal de armas, havendo ainda uma terceira grande ocorrência envolvendo fiscalização em clube de tiro. Destacaram-se também dois grandes casos envolvendo crimes ambientais”, conclui o estudo.
Em relação às marcas das armas apreendidas em terras capixabas, em primeiro lugar aparece a fabricante brasileira Forjas Taurus (42,0%), seguida da também brasileira Amadeo Rossi (10,3%) e depois a austríaca Glock (2,7%). “Cenário perfeitamente compatível com os tipos de armas apreendidas, uma vez que os revólveres são os produtos mais comercializados pelas fabricantes Taurus e Rossi. Destaque para as apreensões de pistolas da marca Glock e Canik”, aponta o estudo.
No ano passado, 56,7% das armas de fogo apreendidas no Espírito Santo foram fabricadas no Brasil, tendo como principais fabricantes Forjas Taurus S.A. (Taurus), Amadeo Rossi S.A. (Rossi), Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), Indústria de Material Bélico (IMBEL) e E. R. Amantino (Boito). Dentre as marcas internacionais identificadas, destaque para as de nacionalidades austríacas (2,7%), americanas (2,4%) e turcas (2,3%).
No ano passado, pelo menos 56,5% das apreensões de armas de fogo ocorreram em municípios fora da Grande Vitória, o que representa um montante de 2.233 armas de fogo. Os municípios metropolitanos concentraram 43,5% das apreensões (1.717 armas). Desde o ano de 2016 as apreensões de armas de fogo passaram a ocorrer em maior proporção nos municípios do interior do Estado.
De acordo com o estudo, 78% das apreensões ocorreram em crimes previstos na Lei Federal nº 10.826/03 (como porte e posse ilegal, comércio e fabricação), crimes de tóxicos e em operações policiais. O uso de simulacro fica evidenciado na prática de crimes contra o patrimônio. Para o anuário, torna-se de grande importância a atuação conjunta das forças de segurança Federais, Estaduais e Municipais no combate ao uso ilegal de armas de fogo, sendo a sociedade a grande beneficiada dessas ações.
Para o Instituto Sou da Paz, a análise trouxe um retrato inédito das munições desviadas e apreendidas no Espírito Santo. “É preocupante a tendência de aumento das ocorrências tanto de desvio quanto de apreensão de munições, dados coerentes com informações qualitativas de policiais que afirmam perceber aumento na apreensão, inclusive de munições ainda em suas embalagens originais”, diz o estudo.
A mudança no perfil das marcas de munições apreendidas, o aumento de casos envolvendo residências e a presença de grandes apreensões envolvendo pessoas com registro legal ou clube de tiro também sinalizam para a possibilidade de maior proximidade com o mercado legal, que teve normas de controle flexibilizadas entre 2019 e 2022, reflete a análise do Sou da Paz.