Uma investigação em curso do Ministério Público do Estado do Espírito Santo mostra como funciona um esquema criminoso de corrupção praticado, em tese, pela coordenadora da Unidade Administrativa Regional de Praia Grande, Anitha Cristina Souza Martins, e um motorista de uma empresa privada. Anitha, que acaba de ser afastada da função pública por ordem da Justiça, era uma espécie de subprefeita de Praia Grande, balneário localizado no município de Fundão. Ela e o motorista Edilson Mathias Barbosa são acusados de cobrar até R$ 300,00 por serviços que a Prefeitura de Fundão paga normalmente a uma empresa particular pelos mesmos serviços. O promotor de Justiça Egino Rios ofertou a Representação Criminal em desfavor de Anitha e Edilson no dia 10 de outubro deste ano, mas somente um mês depois o juiz da Vara Única e Fundão, Alcemir dos Santos Pimentel, decidiu sobre as medidas solicitadas.
Segundo o MPES, foi instaurado e encontra-se atualmente em tramitação o Procedimento Investigatório Criminal MPES nº 2022.0021.5802-15, cuja investigação envolve esquema de pagamento de propina e fraude na execução de contrato de serviço de esgotamento de fossa sanitária firmado entre a Prefeitura Municipal de Fundão e a empresa HFF Transportes Ltda ME, implicando diretamente a servidora pública municipal Anitha Cristina e o motorista Edilson Barbosa, empregado da empresa HFF. A Lei Municipal nº 1.341, de 20 de dezembro de 2021, estabelece que a Prefeitura de Fundão executa “programa de limpeza de fossas sépticas ou similares em propriedades particulares, mediante o pagamento de tarifa para compartilhamento de custos de manutenção do serviço”.
No entanto, nos termos da lei e decreto regulamentar (Decreto nº 008/2022), o Município oferta caminhão de auto fossa alugado em procedimento licitatório, beneficiando parcela da população que ainda não é atendida com o sistema de esgotamento sanitário em suas residências, podendo o serviço ser estendido a unidades comerciais.
Diz a lei que, para as pessoas consideradas em situação de vulnerabilidade social, é prevista a isenção de tarifa, desde que preenchidos determinados requisitos, relativos à faixa de renda per capita e inscrição em cadastro único de programas sociais. Para os outros segmentos da população de Fundão, todavia, o serviço é prestado mediante o pagamento prévio de tarifa, por meio de guia de arrecadação, no valor atual de R$ 250,00 em área urbana e R$ 200,00 em área rural. A Representação do Ministério Público acrescenta ainda que as normas de regência são expressas ao exigir, em todos os casos, que o interessado dê entrada em requerimento administrativo junto à Secretaria Municipal de Obras, preenchendo formulário próprio e juntando documentos, devendo, ainda, expedir guia de recolhimento para pagamento antecipado por intermédio da rede bancária credenciada, sendo expressamente “vedado o pagamento diretamente a servidores municipais”.
A Promotoria Única de Fundão informa na Representação que a investigação criminal foi deflagrada tendo por base depoimentos prestados pelos vereadores Antônio Marcos Guilhermino e Aelcio Rodrigues Peixoto, que receberam denúncias de moradores acerca de esquema de propina envolvendo o caminhão fossa contratado pela Prefeitura, tendo os representantes do Poder Legislativo local realizado diligências preliminares de confirmação, angariando fortes indicativos de procedência do informe, o que motivou a busca pelo Ministério Público para formalização.
Consta que a servidora Anitha Cristina é a pessoa responsável por executar o programa que atende todo o território municipal (Fundão-Sede, Timbuí e Praia Grande), tendo por base de atuação a conhecida “Subprefeitura Municipal de Praia Grande”. Diz a Representação ministerial que, ao invés de orientar a população sobre os trâmites legais e regulamentares de praxe, ao ser questionada sobre o serviço, “Anitha Cristina Souza Martins costuma pedir que o munícipe entre em contato diretamente com o motorista do caminhão fossa, Edilson Mathias Barbosa, que é empregado da empresa contratada para fornecimento de mão de obra e equipamentos.”
Ainda de acordo com as investigações, dentro do esquema ilícito, o motorista solicita o pagamento indevido de R$ 300,00, dando preferência à ordem de atendimento. Consta também que “Anitha Cristina se apodera de R$ 200,00, enquanto Edilson Barbosa fica com R$ 100,00 por cada serviço prestado.” Diversos moradores considerados pobres e necessitados vêm reclamando acerca da lista de espera e demora de atendimento, percebendo que as pessoas que pagam pelo serviço “por fora” conseguem atendimento preferencial.
Para acobertar o esquema, os investigados Anitha Cristina e Edilson Barbosa incluem e atestam falsamente os serviços prestados “por fora” na lista de pessoas com direito à isenção de tarifa, fazendo com que a empresa receba pela fossa coletada por meio dos pagamentos efetivados pela Prefeitura de Fundão, causando prejuízo ao erário, além de revelar enriquecimento ilícito.
As investigações constataram também, por meio de fotos, que o caminhão utilizado para a execução do serviço (Placas OYI -1628) opera sem qualquer identificação oficial, tendo apenas registro da empresa proprietária, “o que é irregular, uma vez que o contrato administrativo vigente (Contrato nº 079/2018), em sua cláusula 8.11, é expresso ao exigir a colocação de dois adesivos, um de cada lado do veículo, com logotipo e os dizeres: “À SERVIÇO DO PMF – SESIM”.
“Tal omissão dos sinais de identificação do caminhão é proposital por parte dos investigados e visa dificultar a fiscalização, dando a entender que o serviço é particular e prestado diretamente pela empresa, permitindo o acobertamento do programa oficial e perpetuação do esquema ilícito de pagamentos indevidos”, pontua o promotor de Justiça Egino Rios.
Para reforçar “as fortes suspeitas”, o vereador Antônio Marcos Guilhermino, que atua como construtor civil, relatou que, recentemente, foi procurado por Anitha Cristina Souza Martins, que externou interesse em adquirir um terreno e construir uma casa, afirmando que seria “sem burocracia” e que “iria fazer rir” com o negócio. A abordagem causou estranheza, uma vez que a investigada, que é pessoa conhecida na região de Praia Grande, não aparenta dispor de condições financeiras de contratar uma empreitada em tais termos, dando a entender que está de posse de dinheiro de origem ilícita.
O Ministério Público Estadual obteve planilhas oficiais disponibilizadas no Portal da Transparência da Prefeitura de Fundão, sendo possível constatar que, apenas no período compreendido entre os meses de janeiro a setembro de 2022, já foram empenhados, liquidados e pagos, em favor da empresa HFF Transportes Ltda ME, respectivamente, as quantias de R$ 488.562,71; R$ 402.920,58; e R$ 293.884,13.
“Salta aos olhos que, no curto período em referência (cerca de nove meses do ano de 2022), após a edição e regulamentação de novo marco legal sobre o tema, o programa de esgotamento de fossa vem sendo prestado de forma recorrente e crescente, chegando a atingir a cifra de meio milhão de reais, possibilitando que os investigados operam o esquema ilícito e se locupletem indevidamente, em prejuízo ao erário”, descreve o MPES na Representação.
Na sequência das apurações, foi apresentada manifestação anônima perante a Ouvidoria do Ministério Público, com imagens e áudios que teriam sido vazados, que revelariam conversas e tratativas firmadas diretamente entre os investigados Anitha Cristina Souza Martins e Edilson Mathias Barbosa. As imagens apresentadas registram supostas quantias em espécie recebidas a título de propina pelos investigados, inclusive com a indicação do nome da servidora pública implicada e nota de prestação de serviço em nome da empresa HFF Transportes Ltda ME e da Prefeitura Municipal de Fundão.
Mas não é só, prossegue a Representação ministerial: “Também foram apresentados áudios com registros de supostas conversas travadas entre os investigados Anitha Cristina Souza Martins e Edilson Mathias Barbosa, nos quais são feitas tratativas acerca dos próximos serviços de fossa que serão prestados e a divisão dos ‘lucros’, inclusive com adiantamento de quantias e abatimentos dos valores ilícitos auferidos por cada um dos envolvidos com o esquema.”
Neste contexto, concluiu o MPES, “de modo a permitir o avanço e o aprofundamento eficaz das investigações, obtendo-se outras provas de materialidade e de autoria, em todas as suas circunstâncias penais relevantes, com a possível confirmação dos vínculos interpessoais existentes entre os investigados e as tratativas ilícitas que foram travadas, elucidação do modus operandi e da extensão da participação de cada agente, além da identificação de outros potenciais envolvidos com o esquema ilícito, que aparenta ser de considerável dimensão e necessita sem interrompido em possíveis frentes de ação, resguardando-se a lisura que deve nortear os atos da Administração Pública, mostra-se estritamente necessária a adoção de medidas cautelares pertinentes previstas na legislação, tais como a busca e apreensão, a prisão preventiva e a suspensão do exercício de função pública e de atividade econômica, razão pela qual é formulada a presente Representação Criminal.”
Ao analisar a Representação Criminal ofertada pelo Ministério Público, o juiz da Vara Única de Fundão, Alcemir dos Santos Pimentel, indeferiu apenas o pedido de prisão dos investigados. Der acordo com os autos nº 0000638-85-2022.8.08.0059, que começou a tramitar em segredo de Justiça, o magistrado determinou o cumprimento de mandado de busca e apreensão nos endereços de Anitha e Edilson e também na Unidade Administrativa Regional de Praia Grande.
Ainda no mesmo dia 10 de novembro de 2022, o juiz Alcemir Pimentel determinou o afastamento de Anitha do cargo comissionado que ocupava na Prefeitura de Fundão e a quebra dos sigilos telefônicos e de outras correspondências eletrônicas e do motorista Edilson. Os mandados de busca e apreensão foram cumpridos pelo Ministério Público na última sexta-feira (11/11).