Ano horrível! Amaldiçoado para quase todo mundo. No quase, há os que viram o filho nascer, os que encontraram o amor e até mesmo os poucos que conseguiram emprego. Nascimentos, amores e ganhos acontecem todos os anos. Terminam por serem banais. Ainda que filhos, amores e ganhos nada tenham de banal.
É pelo excepcional que normalmente se julga um ano. 2020 teve mortes evitáveis, que não evitamos. E inevitáveis cuidados, que evitamos. Aglomerados, sem máscara e sem responsabilidade, ajudamos a matar. Mais por enfado que por necessidade. Mais em busca por prazer e alívio que por afeto. 2020 nos impôs necessidades e reagimos a elas com desprezo.
Ano é intervalo de tempo. Contagem de rodopios da Terra em torno do Sol – Terra que é redonda, por favor! –. Coisa para contabilizar as estações que modificam o clima, lembrando que tudo passa. E que depois se repetem, lembrando que tudo se renova. Entre mudanças e renovações, confundimos o clima com o tempo. O clima faz apenas o calor do verão, o que fazemos durante o tempo quente é coisa nossa mesmo.
Culpar um ano pode ser apenas a forma de contabilizar desgraças na folhinha do calendário. Mas pode servir também para que ignoremos o que causamos durante tempo. Transferência mágica para o “ano” das culpas que são nossas.
Vírus são coisa da natureza, mas esta pandemia precisou de um empurrão humano para acontecer. Biólogos avisam há tempos que desmatamentos geram doenças. Preferimos cortar árvores e matar bichos. Se doença vem depois para os outros e o lucro vem agora para nós, então que se danem os outros.
Em 2020 seguimos nos danando para os outros. Revelador de egoísmo e inconsequência, estampados nas aglomerações de gente que se aglomera porque tem dinheiro para embebedar os outros ou para embebedar-se com os outros. Ou nas gentes que se impuseram sem máscara porque ela é desagradável. Às vezes com violência, noutras com carteirada, em todas com arrogância e egoísmo. Em 2020, o mau caráter exibiu com orgulho seu mau-caratismo.
A história mostra que a política é mais hábil em criar motivos para morrer do que para viver. Neste ano, a boçalidade política alcançou novamente limites mortais. Nelson Rodrigues dizia que a burrice é infinita. Mas sempre que ela dá um passo para o infinito, surpreende.
Testemunhamos um presidente (o p minúsculo é proposital) negar a pandemia para escapar das responsabilidades e militar contra vacinas só porque o “herói” da vacinação não seria ele. Para os que morrem pela falta de responsabilidade ou vacina, um raivoso “e daí?”.
A claque que transforma em mito quem mente e em messias quem mata, revelou que a indiferença é pandêmica. A truculência nas redes, com gente mitando e lacrando mais que dialogando, mostra que a política foi feita com ódio e não com amor.
Num clima assim, não tinha como 2020 ser bom mesmo. Mas nós poderíamos ter sido melhores. Feliz 2021.
(Júlio Pompeu é escritor e palestrante. Professor de Ética do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo e ex-secretário de Estado dos Direitos Humanos do Espírito Santo).
(Este artigo foi extraído do ‘site’ Terapia Política, do qual o professor Júlio Pompeu é um dos editores).