A Polícia Comunitária possui conceito tradicional formulado pelos norte-americanos Robert Trojanowicz e Bonnie Bucqueroux, em 1994, que a definiram como uma “[…] filosofia e estratégia organizacional, que proporciona uma nova parceria entre a população e a polícia. Baseia-se na premissa de que tanto a polícia quanto a comunidade devem trabalhar juntas para identificar, priorizar e resolver problemas contemporâneos tais como crime, drogas, medo do crime, desordens físicas e morais, e em geral a decadência do bairro, com o objetivo de melhorar a qualidade geral da vida na área”. Trojanowicz e Bucqueroux (1994, p.4). (Grifos nossos).
Os termos em destaque mencionam que a população e a polícia devam trabalhar juntas. Essa primeira reflexão assevera que não há um ambiente verticalizado. Entra em cena a horizontalização e comunicações construtivas, sem relações de poder com foco em subordinações ou conotações de cumprimento de ordens. Muito embora, por outro lado, haja a necessidade de organização e respeito às regras conjuntamente estabelecidos.
O argumento anterior se fundamenta de modo que as comunicações inerentes aos trabalhos comunitários devem permear por meio mutuamente respeitoso, buscando na audição bilateral a possibilidade de construções e as necessárias convergências entre todos os envolvidos.
Os ambientes desses debates têm se consolidado como sendo os Conselhos Comunitários de Segurança Pública que, conforme definição nos cursos de promotor e multiplicador de Polícia Comunitária pela SENASP constitui-se como sendo: Entidade de direito privado, com vida própria e independente em relação aos segmentos da segurança pública ou a qualquer outro órgão público; modalidade de associação comunitária, de utilidade pública, sem fins lucrativos, constituída no exercício do direito de associação garantido no art. 5º, inciso XVII, da Constituição Federal, e que tem por objetivos mobilizar e congregar forças da comunidade para a discussão de problemas locais da segurança pública, no contexto municipal ou em subdivisão territorial de um município. (SENASP, 2007, p. 297). (Grifos nossos).
Emergem nesse contexto os Conselhos Comunitários enquanto organizações da sociedade civil (OSC), denominação também apontada pela Lei Federal nº 13.019/2014 que instituiu os seus Marcos Regulatórios. O conceito apresentado então depreende organizações de terceiro setor, independentes do poder público, constituídos pela própria sociedade civil por meio de estatutos registrados em cartório com personalidade jurídica legalmente reconhecida e acolhida na Constituição Federal no âmbito do direito de reunião, associação, segurança, liberdade de manifestação do pensamento, dignidade humana, dentre tantas outras terminologias correlatas e transversais.
Mas essa “independência” do poder público não se pode confundir como totalmente desatrelada e unilateral por parte dos Conselhos. O trabalho deve estar pautado de forma mutuamente colaborativa buscando convergências. O processo de comunicação e de relacionamentos interpessoais sadios é fundamental, cabendo ressaltar importantes valores nos Conselhos como a isenção político partidária, primazia por projetos sociais, interesse público, honestidade, probidade, dentre tantos outros. Não estamos aqui substituindo a atribuição do Estado, mas “[…] implica que a própria sociedade crie meios de solucionar os problemas com os quais o Estado por si só não seja capaz de lidar”. (HENRIQUES, 2010, p. 36).
Esses espaços residem no mundo do 3º setor que, segundo o doutrinador José Eduardo Sabo Paes, o termo significa: “[…] o conjunto de organismos, organizações ou instituições dotadas de autonomia e administração própria que apresentam como função e objetivo principal atuar voluntariamente junto à sociedade civil visando ao seu aperfeiçoamento”.
Desta feita há a necessidade de o pleno reconhecimento de que essas organizações necessitam de autonomia de modo a garantir a democracia e a não intervenção estatal ou do poder público em suas discussões, deliberações e encaminhamentos.
Nessa esteira, os mesmos autores, Trojanowicz e Bucqueroux, apontam importantes teorias: a do “patrocínio normativo” (SOWER, 1957) e a “social crítica” (FAY, 1984). Remontam a participação da sociedade nessas construções e partem do pressuposto, respectivamente, que as comunidades têm boa vontade e irão cooperar umas com as outras e, necessitam de “esclarecimento”, “poder” e “emancipação”.
O esclarecimento sobre circunstâncias, antes de pleitear mudanças. O poder de modo que as pessoas venham a agir para melhorar suas condições e a emancipação de modo que possam atingir a liberação através da reflexão e da ação social. Uma comunidade não é um sujeito abstrato, é nela que existem as dinâmicas dentro das quais retroalimentam a violência, a criminalidade e o cotidiano social.
O conceito inicialmente apresentado de “Polícia Comunitária” também aponta a necessidade da resolução conjunta de problemas de “crime, drogas, medo do crime, desordens físicas e morais, e em geral a decadência do bairro”. Os crimes, como parte de uma visão multifacetada, evidenciam que as drogas, as desordens e degradações fazem parte de um cenário amplo e de construções para muito além de mecanismos meramente reativos.
O 3° setor realiza interfaces de fiscalizações diretas cobrando estruturas de iluminação, obras, imóveis abandonados, arbustos sem poda, lixos expostos e toda a sorte de abandonos e degradações nos bairros. Essas interfaces fazem parte da ordem pública e da arquitetura que envolve a convivência humana. Teorias das “janelas quebradas” (James Q. Wilson e George keeling – 1982) e “econômica da escolha racional” (Gary Becker – 1968) remontam essa necessidade.
O abandono associado à oportunidade acaba por combinar misturas explosivas que potencializam as incidências de delitos, agravando-os. Esse preceito deve fazer parte de maneira contundente do modus comunitário de enxergar a criminalidade para muito além da perspectiva policial.
Apesar de sua plural forma de arquiteturas, esses ambientes quando se situam no 3º setor, possuem autonomia em relação ao poder público. Esse preceito enseja debates abertos sobre os problemas locais, captação de recursos, construção de projetos sociais e, principalmente, a fiscalização do poder público.
Vale destacar relevante reflexão neste sentido: “[…] Uma organização comunitária que depende do apoio policial para garantir a mobilização de seus membros e viabilizar as suas ações acaba convertendo-se em uma mera extensão civil da instituição policial, e não um instrumento efetivo de participação comunitária. Organizações que não dependem da polícia para a sua existência podem trazer significativos desafios para a polícia”. (SENASP, 2007, p. 220). (Grifo nosso).
O termo em destaque talvez apresenta o centro dentro do qual a autonomia dessas organizações não seja vista com bons olhos por parte das organizações policiais. Esses desafios estão centrados na fiscalização, cobrança de resultados e financiamentos exclusivos dos organismos policiais sem pontuar espectros mais amplos e voltados à prevenção primária o que já gerou desvirtuações e problemas alusivos à improbidade e o mal uso de recursos.
A polícia, segundo (BAYLEY, 2006, p. 236) acaba por ter um papel de: […] diminuir a ameaça do crime […] vem não apenas da prisão de criminosos, mas também através da mobilização ativa da população, de modo a atingir tanto as causas quanto os sintomas do crime. Para fazê-lo, a polícia não pode se distanciar das reivindicações desagregadas; de fato, precisa encarar essas reivindicações como oportunidade de se envolver nos processos fundamentais de interação social. Em resumo, a polícia deve se envolver em situações não relacionadas à lei para proporcionar uma prevenção de crimes mais eficaz […].
Márcio Simeone Henriques traz o poder da mobilização social que […] é a reunião de sujeitos que definem objetivos e compartilham sentimentos, conhecimentos e responsabilidades para a transformação de uma dada realidade, movidos por um acordo em relação a determinada causa de interesse público. Henriques (2010, p. 36) (Grifos nossos)
Neste sentido, a transformação de realidades muitas vezes desafiadoras partem do compartilhamento de sentimentos, conhecimentos e responsabilidades pautados no interesse público por meio de acordos, convergências e comunicações devidamente respeitosas entre todos os envolvidos.
Como exemplo emblemático na área do terceiro setor, vale destacar importante iniciativa do Estado do Mato Grosso que no ano de 2019 instituiu a lei estadual nº 10.931, de 15.08.2019, que reconheceu que os Conselhos Comunitários de Segurança Pública necessariamente devem enquadrar-se como entidades de direito privado no âmbito do 3º setor. Expressivos resultados puderam ser evidenciados por meio de parcerias dos Conselhos junto ao Ministério Público e Poder Judiciário no sentido de captação de recursos em termos de ajustamentos de condutas (TACs) para fins de investimentos nos organismos de segurança pública.
Mais além, esses espaços devem alcançar campanhas, palestras orientadoras, trabalhos de grafitagens, oficinas integradas de lazer, campanhas sobre perturbação ao sossego, matérias sobre arbustos sem poda, imóveis abandonados, softwares de monitoramento de equipamentos sociais com alimentações virtuais dos residentes e comerciantes que permitam a melhoria da qualidade de vida, além de um considerável leque de possibilidades de ações. Todos com focos na mudança de comportamentos mais seguros e inclusivos, e que podem e devem ser realizados nesses espaços.
Portanto, a adoção da filosofia de polícia comunitária está intensamente conectada com as atividades alusivas ao terceiro setor. Este ambiente pautado na garantia da autonomia com relação ao poder público e liberdade de manifestação e participação estão associados à fusão citada da filosofia de polícia comunitária em que polícia, comunidades e poder público em geral devem atuar juntos numa comunicação intersetorial mutuamente respeitosa buscando convergências e a melhoria da qualidade de vida da sociedade.
O Estado do Espírito Santo, por meio da Diretoria de Direitos Humanos e Polícia Comunitária da Polícia Militar encontra-se realizando um diagnóstico nacional junto a todos os Estados do Brasil no sentido de levantar as principais informações dos organismos responsáveis pelas interfaces e coordenações com os Conselhos Comunitários de Segurança Pública. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) em Brasília está apoiando a pesquisa que, em 2021, terá importante contribuição para subsidiar possíveis construções voltadas para esses ambientes. São muitas as arquiteturas pelo Brasil e todas possuem uma finalidade: a busca pela paz e tranquilidade na sociedade.
Por fim, o poder público deve criar condições para que esse exercício transcorra de forma democrática e cidadã. As divergências devem fazer parte das agendas como pontos de partida para a busca de soluções conjuntamente estabelecidas. São imensos os desafios, mas, exatamente estes que pavimentarão as estradas das ações locais de segurança pública: o escoamento dos recursos para onde existam as reais necessidades.
REFERÊNCIAS
______. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Curso Nacional de Multiplicador de Polícia Comunitária. SENASP, 2007.
BAYLEY, D. H. Padrões de policiamento: uma análise Internacional Comparativa. Tradução de Renê Alexandre Belmonte. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. (Série Polícia e Sociedade; n.1).
HENRIQUES, Márcio Simeone. Comunicação e mobilização social na prática de polícia comunitária / Márcio Simeone Henriques. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
MATO GROSSO. Lei Estadual nº 10.931, de 15 de agosto de 2019 – D.O. 16.08.19. Reconhece o relevante interesse coletivo e a importância social das obras dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública – CONSEGs e da Federação dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública do Estado de Mato Grosso – FECONSEG/MT e seus filiados.
PAES, José Eduardo Sabo. Fundações, Associações e Entidades de Interesse Social. Aspectos jurídicos, administrativos, contábeis, trabalhistas e tributários. 2019.
TROJANOWICZ, Robert. BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento comunitário: como começar? Tradução de Mina Seinfeld de Carakushansk. Rio de Janeiro: PMERJ, 1994.
Sobre o autor deste artigo:
Sandro Roberto Campos é major da Polícia Militar do Espírito Santo e especialista em Segurança Pública, Terceiro Setor, Educação em Direitos Humanos, Ciências Jurídicas e Psicologia Social (concluindo).