O juiz Miguel Maira Ruggieri Balaz, da 3ª Vara Criminal de Cachoeiro de Itapemirim, absolveu o chefe do Comando de Polícia Ostensiva da Região Sul (CPO SUL) da Polícia Militar, coronel Alessandro Marin, e mais três policiais da acusação de torturar o comerciante Lirio Moreira Gomes Filho, ao confundi-lo com um ladrão. O caso aconteceu em 12 de junho de 2001 e somente no dia 12 de junho de 2017 foi proclamada a sentença.
O Ministério Público do Estado do Espírito Santo, entretanto, já recorreu da decisão de primeiro grau. Se o recurso for acolhido, o coronel Marin será julgado agora pelo Tribunal de Justiça. Na esfera cível, porém, o Estado foi condenado a indenizar o comerciante Lirio em R$ 40 mil. A Justiça entendeu que ele foi preso ilegalmente
Na mesma ação penal, de número 0010115-34.2012.8.08.0011, foram denunciados junto com o coronel Marin os militares Amilton Dias Feliciano (2ºsargento), Angélica Cristina Zanardi Franco (1º sargento) e Vitorino Rangel Filho (sargento da Reserva Remunerada).
De acordo com a denúncia do Ministério Público, das 8 às 14 horas do dia 12 de junho de 2001, o então major Marin e os demais policiais militares teriam, dentro do quartel do 9o Batalhão da PM (Cachoeiro), agredido Lirio Moreira, “com o fim de obter confissão, mediante o emprego de violência e grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico e moral.”
Num primeiro momento, a denúncia foi rejeitada pelo juiz Evandro Cunha, por entender que “não havia elementos suficientes para recebimento da ação penal pelo crime de tortura, mas apenas indícios de um suposto crime de lesão corporal, já prescrito na época”.
O Ministério Público entrou com Recurso em Sentido Estrito. A defesa dos acusados apresentou contrarrazões ao recurso e a juíza Rosalva Nogueira Santos, que passou a responder pela 3ª Vara Criminal de Cachoeiro, manteve a decisão de rejeição anterior, não realizando o juízo de retratação.
O Ministério Público, então, recorreu junto ao Tribunal de Justiça, que, por meio da Primeira Câmara Criminal, reformou a decisão de primeiro grau para determinar o recebimento da denúncia, fato que aconteceu em 30 de julho de 2014.
Os autos, então, retornaram ao Juízo de primeira instância. Ouvidos, os policiais negaram a acusação de tortura. Nas alegações finais, o Ministério Público requereu a condenação dos réus nos termos da denúncia, entendendo “provada autoria e materialidade em relação a todos os réus pelo crime de tortura”. A defesa requereu preliminarmente o reconhecimento da prescrição e no mérito a absolvição por falta de provas e a desclassificação para o crime de lesão corporal.
Ao analisar todo o fato, o juiz Miguel Maira Ruggieri Balaz faz questão de registrar a dificuldade circunstancial de instruir e julgar um processo criminal em que o fato ocorreu há aproximadamente 16 anos atrás. “Não só a sentença está sendo prolatada muitos anos após o fato, mas a própria instrução iniciou-se no ano de 2016, sendo inegável o prejuízo para a busca da verdade real. Todavia, sendo vendado no nosso sistema o non liquet (do latim non liquere: “não está claro”) é uma expressão advinda do Direito Romano que se aplicava nos casos em que o juiz não encontrava nítida resposta jurídica para fazer o julgamento e, por isso, deixava de julgar.), passo ao julgamento”, reconhece o magistrado.
Sobre a preliminar de prescrição, o juiz não acolheu o pleito da defesa. “Tendo em vista a capitulação da denúncia (no art. 1o, I, “a” c/c §4o, I, da Lei n 9455/97), a pena máxima possível ao réu seria 10 anos e 08 meses de prisão, sendo que a prescrição nesse caso abstrato ocorreria apenas em 16 anos. Constato que a denúncia foi recebida pelo acordão de fls. 413 na data de 30 de julho de 2014. Assim sendo, entre a data do fato e o recebimento da denúncia não se superou o prazo prescricional em abstrato, motivo pelo rejeito a preliminar”, pontuou Miguel Maira Ruggieri Balaz. Ele também deixou de desclassificar a denúncia por crime de tortura para o de lesão corporal.
Para o juiz, apesar das declarações da vítima, nos autos “não há materialidade para o crime de tortura”. Na sentença, Miguel Balaz apresenta depoimentos da vítima e dos policiais e conclui que as “declarações de vítima e réus são diametralmente opostas”.
O magistrado entende que a palavra da vítima assume relevância nos crimes em que os fatos normalmente ocorrem as escondidas, de forma oculta. Todavia, pondera, “as declarações da vítima devem guardar consonância com os demais elementos dos autos, o que não acontece no presente caso”.
E explica: “O primeiro ponto que chama a atenção quanto a versão trazida pela vítima é que foi brutalmente agredido e ficou com várias sequelas, inclusive uma hérnia. Todavia, a sua versão de que foi agredido não encontra respaldo no laudo pericial. Logo ao ser entregue à Autoridade Policial a vítima foi submetida a exame de corpo de delito. Não se faz necessário conhecimentos aprofundados de medicina legal para constatar que a lesão apresentada no laudo, com ‘discreta equimose violácea irregular e inespecífica, medindo 40 por 30mm, na face interna da coxa esquerda’, não pode representar as agressões brutais alegadas pela vítima. Não se constatou nenhuma lesão na cabeça, barriga, costas, face, nenhuma hérnia, mas apenas uma discreta equimose na coxa esquerda, ou seja, algo tão insignificante a ensejar a materialidade do crime de tortura”.
Mais adiante, Miguel Balaz explica que “não estou a fundamentar que toda tortura deixa marcas, mas foi a própria vítima que afirmou que foi agredido de forma severa fisicamente, o que não é mostrado pelo laudo”.
Diante de outros depoimentos, inclusive de testemunhas, e de provas técnicas, o magistrado conclui que “a prova produzida durante a instrução não é suficiente para condenação, já que não me convenci que a palavra da vítima é verdadeira, já que se encontra rechaçada por outras provas, em especial, o laudo pericial. Recaem sobre os acusados meras suspeitas. O fato pode ter acontecido, mas não há provas suficientes, sendo a dúvida em favor dos réus”.
Portanto, finaliza o magistrado, “não havendo prova cabal da materialidade do crime de tortura a absolvição é medida que se impõe”.
Na esfera cível, o processo tramitou de maneira mais célere. Em primeira instância, o Juízo da 2ª Vara dos Feitos da Fazenda Pública Estadual de Cachoeiro condenou o Estado a indenizar o comerciante Lirio em R$ 30 mil. Ele e o Estado recorreram. Em novembro de 2010, a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça publicou acórdão, em que aumentou o valor da indenização para R$ 40 mil.
O Tribunal de Justiça entendeu que a prisão do comerciante foi “ilegal e arbitrária”, pois ele sequer estava em flagrante e foi conduzido ao quartel do 9º Batalhão sem nenhum amparo legal – não havia mandado de prisão expedido pela Justiça.