No dia 1º de janeiro de 2003, quando tomou posse para dar início ao seu primeiro mandato como governador, Paulo Hartung (PMDB) encontrou a Polícia Militar aquartelada e a Polícia Civil em greve. No mesmo dia, ele escalou seu vice-governador, o hoje deputado federal Lelo Coimbra, para buscar uma conciliação com os representantes das duas categorias.
Lelo conseguiu. Ainda no mesmo dia 1º daquele ano, os policiais militares acabaram com o aquartelamento – uma espécie de greve na PM, que não tem direito à greve, conforme determina a Constituição Federal – e os policiais civis retornaram ao trabalho, suspendendo também sua greve.
A paralisação nas duas policias havia começado no dia 23 de dezembro de 2002, nos últimos dias do governo de José Ignácio Ferreira. A greve se deu em função do atraso do pagamento dos salários. Os servidores públicos em geral, naquela ocasião, iniciaram 2003 sem pagamento, o que foi restabelecido logo nos primeiros dias da era Hartung.
Em protesto contra o atraso no pagamento dos salários, os policiais militares capixabas deixaram de ir às ruas da Grande Vitória e municípios do Sul e do Norte do Espírito Santo desde o dia 23 de dezembro de 2002. Em 28 daquele fatídico dezembro, a Secretaria de Estado da Fazenda prometeu que no dia seguinte o pagamento seria efetuado.
A promessa levou os dirigentes da então diretoria da Associação dos Oficiais Militares Estaduais (Clube dos Oficiais) a suspender o levante e voltar às atividades. Mas, como a promessa não foi cumprida pela equipe do então governador José Ignácio, os praças decidiram permanecer aquartelados, motim que foi suspenso no dia 1º de janeiro de 2003, como forma de dar um voto de confiança ao novo governador, Paulo Hartung.
Além das negociações com Lelo Coimbra após a posse do novo governo, foi primordial o engajamento do coronel Júlio César Lugatto, primeiro comandante-geral da PM no recém instalado governo Hartung. No dia 31 de dezembro de 2002, o coronel Lugatto, que há 12 anos foi para a Reserva Remunerada, chamou o oficiais que lideraram o movimento para uma reunião em sua casa. Mostrou aos oficiais a importância da tropa dar um voto de confiança ao futuro governador Paulo Hartung e sua equipe, encerrando, assim, o aquartelamento. Os oficiais concordaram.
Naquela noite de Réveillon, o coronel Lugatto se dirigiu ao Quartel do Comando Geral, em Maruípe, Vitória. Foi recebido por praças e oficiais, que ficaram em forma no pátio do quartel. Ali mesmo, o futuro comandante-geral deu o recado: era o fim do aquartelamento, entre a noite de 31 de dezembro de 2002 e 1º de janeiro de 2003. Enquanto Paulo Hartung tomava posse na Assembleia Legislativa como novo governador do Estado, os soldados de Ortiz retornavam ao trabalho, levando, de novo, paz para as ruas da Grande Vitória e do interior do Espírito Santo.
Naquela ocasião, porém, mais de três mil policiais militares responderam a Processos Administrativos Disciplinares (PADs) e a Inquéritos Policiais Militares. Todos foram indiciados e correram o risco de exclusão. Entretanto, Paulo Hartung acabou usando da prerrogativa de governador e anistiou todos eles.
(Este blogueiro, inclusive, foi ouvido pelo oficial encarregado dos procedimentos contra os mais de 3 mil militares. É que oficiais e praças que procuravam a imprensa para protestar contra seus superiores e contra o Governador do Estado durante os dias que antecederam ao aquartelamento, de maneira covarde negaram o teor das entrevistas, afirmando tratar-se de invenção dos jornais A Tribuna e A Gazeta. Como eu era editor de Polícia de A Tribuna, prestei meu depoimento à Corregedoria Geral da PM e confirmei todas as entrevistas, relatando, inclusive, as vezes em que oficiais iam à redação de A Tribuna para dar entrevistas, todas devidamente registradas em gravador e máquinas fotográficas. Praças e oficiais desmentiram, quando ouvidos em IPMs e PADs, até mesmo seus discursos nas assembleias das categorias.)
Agora a situação é diferente para o governador Paulo Hartung. O aquartelamento encerrado no dia de sua posse, em 1º de janeiro de 2003, nada teve a ver com sua gestão. A anistia naquele momento foi um ato político, dada em troca do voto de confiança que ele recebeu da categoria.
Na crise atual da segurança pública, iniciada no dia 3 de fevereiro de 2017, quando um grupo de familiares de policiais bloqueou a entrada da 2ª Companhia do 6º Batalhão (Serra), no bairro Feu Rosa, Serra, o governo Hartung vem agindo para tentar restabelecer a normalidade. Já determinou a abertura de vários procedimentos em desfavor dos policiais aquartelados.
Desta vez, a palavra “anistia” passa longe do Palácio Anchieta. Os policiais aquartelados têm demonstrado intransigência diante das necessidades da população. Por sua vez, Hartung e sua equipe têm evitado o diálogo com os familiares dos policiais e tratam a crise com arrogância. O motim dos policiais já chegou ao seu vigésimo dia, aumentando o desgaste para a tropa e trazendo uma série de incertezas, do tipo “qual o futuro da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo depois desse triste e lamentável episódio?”
Hoje, diferente do ocorrido em 2002, tropas do Exército e da Força Nacional de Segurança, além da Polícia Rodoviária Federal, são obrigadas a patrulhar as ruas do Estado pela ausência de policiamento na sua essência. Dados do governo indicam que, do total de 9.500 policiais da ativa, pelo menos 6.500 homens já teriam retornado para o trabalho. No entanto, somente 2.500 militares estariam nas ruas. Há ainda cerca de 3 mil militares aquartelados – deste total, boa parte de licença médica.
O problema é que os aquartelados não estariam permitindo a saída de viaturas dos pátios dos batalhões. As viaturas que se encontram nas sedes de companhias, estão com pneus arreados ou furados. De todo modo, a população raramente vê a presença da Polícia Militar nas ruas. O comando está sendo obrigado a colocar majores e até tenentes-coronéis para patrulhar as ruas ao lado de cabos e soldados.
Em 2002, o aquartelamento foi promovido por lideranças de dentro a própria PM. Desta vez, os amotinados contam com liderança externa. A movimentação de protesto, iniciado por esposas, pais, filhos e amigos de policiais, logo se estendeu para todo o Estado. Teve adesão maior dos novos soldados, que conseguiram atrair até mesmo os mais veteranos.
São esses novatos – que ainda estão no estágio probatório, que é de 10 anos – que agora correm o risco iminente de expulsão. É mais fácil, para o Comando Geral da PM, expulsar os novatos do que os praças mais antigos. O rito processual é mais célere e menos desgastante.
Há outras diferenças entre o que ocorreu no final de 2002 com a revolta deste início de 2017: as redes sociais e a cobertura da imprensa. Naqueles quase 15 anos atrás, não havia Facebook e nem WhatSapp, dois de alguns instrumentos utilizados agora para espalhar notícias falsas (boatos que causam pânico na população) e verdadeiras sobre o movimento dos militares. Ferramentas utilizadas, também, para ataques pessoais à imprensa, autoridades do Judiciário e do Executivo Estadual, aos dirigentes da Associações de Classe e até mesmo ao Alto Comando da Polícia Militar, o que aumenta a ira de quem tem a caneta nas mãos.
Desta vez, pautada, sobretudo, pelas manifestações nas redes sociais, a imprensa está de peito aberto na cobertura jornalística do aquartelamento. Desde que o movimento começou, o assunto é manchete de capa dos jornais A Tribuna e A Gazeta; o tema não sai das rádios e nem das TVs.
Em 2002, as notícias sobre o aquartelamento tiveram força maior nos primeiros dias do movimento. Nos últimos dias, sumiu dos jornais. Ao ponto de, no dia em que policiais militares e civis decidiram encerrar a greve, ter espaço somente em um box na página 17 de Polícia de A Tribuna (edição do dia 3 de janeiro de 2003).
É hora de apagar os holofotes. A própria imprensa pode contribuir para o fim desse movimento paredista dos policiais militares que, cansados, já não exigem nem mais reajuste salarial: o que eles querem é a anistia – se livrar de processos criminais e administrativos – e uma alteração na tabela de referência de seus salários. O governo até concorda em conversar, desde que as mulheres saiam das entradas dos quartéis e os policiais voltem a trabalhar.
Pelo jeito, a geração das redes sociais é mais teimosa do que aqueles verdadeiros guerreiros que, em 2002, pararam a polícia com o objetivo de apenas receber em dia os seus salários. Desta vez, os guerreiros são os sobreviventes (cidadãos capixabas) da carnificina que se transformou o Espírito Santo desde o dia 3 deste mês: sem polícia nas ruas, bandidos já mataram 189 pessoas até este momento.
Da vez passada, Paulo Hartung estava chegando ao governo. O momento exigiu dele gratidão e paciência com o movimento que lhe deu um voto de confiança. E ele soube retribuir, ao conceder anistia aos ex-aquartelados. Será que agora a história vai se repetir? A tolerância dos jovens soldados da era das redes sociais não é mais a mesma. E a paciência do governador, 14 anos mais velho, também não é mais a mesma.