Quando a Administração Pública não cumpre seu papel, a Justiça entra em ação, sempre a favor da sociedade. É o que acaba de fazer a juíza Graciela de Rezende Henriquez, da 1ª Vara da Comarca de Iúna, município localizado na Região do Caparaó do Espírito Santo, ao julgar preliminarmente uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual. A magistrada determinou a chefe de Polícia Civil, delegada Gracimeri Gaviorno, que designe um delegado e quatro agentes de Polícia para a Delegacia de Iúna, até o dia 14 de junho, sob pena de multa diária de R$ 10 mil.
De acordo como Ministério Público, “a Polícia Civil no Município de Iúna não vem desempenhando a contento seu papel constitucional, sendo o principal motivo dessa omissão a absoluta insuficiência de seu quadro de pessoal.” Argumentou na ação, protocolada em agosto de 2014, que, “atualmente a Delegacia de Polícia de Iúna conta apenas com uma escrivã e quatro investigadores de Polícia.” Na época da entrada da ação, a Polícia Civil era comandada pelo delegado Joel Lyrio Júnior, hoje chefe da Superintendência de Tecnologia e um dos braços direito da Gracimeri Gaviorno.
Por isso, a atividade investigativa no município é nula. Os únicos inquéritos policiais que chegam concluídos e relatados ao Ministério Público são aqueles instaurados a partir do Auto de Prisão em Flagrante. Acrescenta o MP na ação que mais de 400 inquéritos se encontram amontoados nos escaninhos da Delegacia local e estão no aguardo do decurso do prazo prescricional. “Os inquéritos arquivados alcançam a prescrição sem que nenhuma diligência investigativa seja realizada”, diz o Ministério Público na ação.
Para sanar o problema, o MP requereu, inicialmente, a concessão de medida liminar, a fim de que “o Estado do Espírito Santo fosse obrigado a dotar a Delegacia de Polícia Civil de Iúna de recursos humanos que permitam o regular desempenho de suas atividades.”
Notificado, o Estado sustentou que a pretensão do Ministério Público “viola os princípios da separação dos poderes, previsão orçamentária e reserva do possível.”
Posteriormente, a juíza Graciela de Rezende Henriquez passou a analisar o caso e descreve que a Ação Civil Pública aborda “grave problema de repercussão social amplo nesta Comarca, qual seja a ‘ausência’ de segurança pública. Importa ressaltar que a questão não é nova, sendo objeto de acirradas discussões no Estado do Espírito Santo ao longo dos anos.”
A magistrada entende que no atual caso, “face à inércia do Estado, tem-se um verdadeiro confronto de princípios constitucionais. O princípio da segurança pública, fundamental, indeclinável, imprescritível e de observância obrigatória por qualquer ordenamento jurídico, versus os princípios da reserva do possível e da separação dos poderes.”
Na decisão proferida, a juíza ressalta que os municípios que compõe a Comarca de Iúna estão situados na microrregião do Caparaó, e abrigam uma população aproximada de 40 mil habitantes, conforme dados fornecidos pela prefeitura municipal.
A divisão política administrativa é composta pelo município de Iúna – distritos de Iúna (sede) –, Pequiá, Nossa Senhora das Graças (Perdição), Santíssima Trindade, São João do Príncipe e pelo Município de Irupi. A comarca de Iúna, segundo informações obtida no sistema E-Jud, do Tribunal de Justiça, possui, aproximadamente, 8 mil processos em tramitação.
“Verifica-se que nesses Municípios são praticados todos os atos da vida em sociedade, com exercício de comércio, estabelecimentos de ensino, instituições financeiras, trabalho urbano e rural, locais de lazer e recreação, além da própria vida forense. No entanto, os Municípios não estão dotados de infraestrutura mínima e de pessoal para garantir a necessária segurança da comunidade. Neste contexto, o crescimento do índice de violência na Comarca é público, notório e assustador”, afirma a juíza Graciela de Rezende Henriquez na decisão.
Ressalta ainda que a Delegacia de Iúna está desprovida do número de funcionários necessários “à garantia da Segurança Pública.” Atualmente, a delegacia conta apenas com uma escrivã e quatro investigadores de polícia, sendo que o delegado titular de Ibatiba (município Localizado a aproximadamente 30 quilômetros de Iúna) é quem responde pelos municípios de Iúna e Irupi.
Ainda de acordo com os autos, o primeiro procedimento administrativo presidido pelo Ministério Público a fim de tentar solucionar o problema foi instaurado em 2007, ou seja, há oito anos. “Neste aspecto, não é forçoso se concluir que o Ministério Público vem ao longo desses oito anos tentando, na busca de resguardar o interesse social, garantir aos cidadãos de Iúna e Irupi o direito a segurança pública. Sem êxito, contudo”, lamenta a juíza Graciela de Rezende Henriquez na decisão.
Principais tópicos da decisão da juíza Graciela de Rezende Henriquez
Investigações policiais precárias
“Esclareça-se que a população de Iúna e Irupi, que totaliza, reitero, aproximadamente 40 mil, não dispõe, atualmente, sequer de um delegado de Polícia Civil para prestar atendimento diante de ocorrência de delitos. Diante desse lamentável cenário, à luz das regras da experiência comum (art. 335 do CPC) não restam dúvidas de que as investigações, quando ocorrem, são dirigidas de maneira precária, interferindo na busca da verdade real – princípio basilar do processo penal – implicando em prejuízo à propositura da ação penal e, consequentemente, à prestação da tutela jurisdicional, uma vez que, não raras vezes, o reduzido número de servidores existentes na Delegacia de Iúna não atendem à necessidade de colheita dos vestígios do crime, realização de exames periciais, elaboração de laudos, enfim, a realização daquelas diligências previstas no artigo 6º do Código de Processo Penal”.
Descaso da cúpula da Segurança Pública
“É oportuno dizer que, conforme consta dos autos, já foram adotadas diversas medidas administrativas no sentido de solucionar o problema. Ressalte-se que inúmeros ofícios foram encaminhados ao Delegado Chefe de Polícia Civil/ES, ao Secretário de Segurança Pública e ao Procurador Geral do Estado pelo membro do Parquet visando solucionar o impasse. Todos os ofícios foram desconsiderados pelas autoridades competentes. A omissão prevaleceu em todas as tentativas.”
Mais exemplos de descaso do Estado
“Verifica-se dos autos da ação civil pública nº 02809001721-2, ajuizada em 2009, que o ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, em contestação apresentada às fls. 239/255 daquele processo, sustenta a inexistência de omissão por parte do ente político em relação aos problemas relacionados à unidade prisional de Iúna…Observa-se, ainda, que ao longo desses anos, o ESTADO DO ESPÍRITO SANTO se ateve a ‘justificar’ a sua omissão, sob os argumentos da separação dos poderes, da reserva do possível e da ausência de servidores. Vê-se da contestação apresentada pelo ente político em 2009, reitera-se, que este se comprometeu a designar servidores para a Delegacia de Iúna assim que fosse realizado concurso público para preenchimento de cargos. Ocorre que passados 06 anos, dois concursos foram realizados, os servidores foram nomeados e a situação da Delegacia local piorou, pois à época a Delegacia de Iúna contava com o contingente de um delegado, uma escrivã e seis agentes, ao passo que hoje, conforme relatado, não possui Delegado e conta tão somente com cinco servidores…”
…“Tais atitudes demonstram de forma nítida o total descaso do requerido (Estado) com os cidadãos dos Municípios de Iúna e Irupi, que não possuem o mínimo de segurança pública; com o Órgão do Ministério Público, que para desenvolver de forma satisfatória seu papel constitucional depende que a Polícia Civil exerça sua função investigativa de forma eficiente; e, por fim, com o Poder Judiciário, tendo em vista que o êxito da jurisdição criminal pressupõe, via de regra, um Inquérito Policial elaborado nos termos da Lei Processual Penal, o que inocorre na Comarca.”
Juíza dá uma aula de conhecimento científico às autoridades policiais
“É importante mencionar que de acordo com a recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU) para a segurança pública, o número ideal de policiais é de um policial para cada 250 habitantes. Nesse sentido, se a Comarca de Iúna possui, aproximadamente, 40 mil habitantes, chegaríamos ao ideal aproximado de 160 policiais, realidade está muito distante dos atuais cinco investigadores de Polícia e 25 Policiais Militares…”
Uma aula de cidadania e respeito às instituições
“É necessário medidas urgentes e concretas. É preciso dar um basta a essa situação vexatória. O Judiciário Capixaba deve mostrar-se protagonista e não coadjuvante diante do problema da Segurança Pública na Comarca de Iúna/ES, não permitindo que a Constituição do Estado e da República tornem-se mera Folha de Papel, conforme nos ensina Ferdinand Lassalle (O que é uma Constituição, 2ª edição, 2007, Russell editores, p. 30)…”
…“Não é aceitável que o Poder Judiciário se mantenha inerte diante da caótica situação em que se encontra o Município de Iúna, onde, sob a justificativa de ausência de recursos e reserva do possível, a Administração Pública, não presta aos habitantes do Município, direitos fundamentais mínimos para garantir a dignidade de qualquer ser humano, tais como, saúde, não há hospital público; acesso à justiça aos menos favorecidos por meio da defensoria pública, não há defensor público designado; e segurança pública, não há Delegado e nem agente de polícia.”
Em defesa da população
“Diante desse triste cenário, indaga-se: qual seria a conveniência e oportunidade que o Administrador tem utilizado na gestão do Município em comento? quais vêm sendo as escolhas feitas pelos gestores em relação a este Município? quais os direitos vêm sendo garantidos em detrimento de outros aos Cidadãos de Iúna? Pois, se não há prestação efetiva, por parte do Estado, de “nenhum” dos direitos fundamentais básicos aos cidadãos, não há que se falar em discricionariedade, conveniência e oportunidade…”
…“Na hipótese dos autos, estamos tratando, insisto, do direito da população local à segurança. Trata-se de um direito fundamental, assegurado no caput do artigo 5.º da Constituição da República, em função do qual se impõe um dever ao Estado, qual seja, o dever de desempenhar, com um mínimo de eficiência, a custódia daqueles que por decreto dele próprio, Estado, estão sob sua custódia, pois, em liberdade, poderiam comprometer a ordem pública, a instrução penal, ou frustrar os fins da lei penal. Ao deixar de cumprir com tal mister, com um mínimo de eficiência, portanto, o Estado falha em seu dever de garantir à sociedade o seu direito à segurança.”
…“À luz das premissas apresentadas, no caso em tela, constata-se, nitidamente, que se encontram presentes os requisitos necessários à concessão da medida liminar, na forma do art. 12 da Lei 7.347/85. A plausibilidade do direito invocado, qual seja, o fumus boni iuris, está plenamente evidenciado pela flagrante desobediência às referidas normas constitucionais e infraconstitucionais, haja vista que a população desta comarca encontra-se privada do acesso efetivo à segurança pública, face a ausência de Delegado e servidores na Unidade Policial Civil.”
Decisão final
“Caso persista, portanto, a negligência do Estado, os cidadãos de Iúna e Irupi, já privados e desassistidos de uma gama imensa de direitos – tais como saúde, uma vez que no município não há hospital público; educação; acesso à justiça por meio de defensoria pública, não há defensor público na Comarca – poderão sofrer danos irreparáveis, repita-se, de ordem moral e patrimonial, em face do descaso governamental em lhes prestar assistência policial de investigação…”
…“Assim sendo, neste lamentável cenário, presentes os requisitos do fumus boni juris e do periculum in mora, conforme visto alhures, impõe-se o deferimento da medida. Ante o exposto, despiciendas demais considerações, DEFIRO PARCIALMENTE A LIMINAR PLEITEADA, para o fim de determinar ao ESTADO DO ESPÍRITO SANTO QUE DESIGNE UM DELEGADO CIVIL e 4 AGENTES DE POLÍCIA PARA A DELEGACIA DE ÍUNA, até o dia 14 de Junho do corrente ano, data do término do Curso de Formação Profissional para Delegado de Polícia Civil do Espírito Santo(turma formada por 23 Delegados), sob pena de multa diária, que arbitro em R$ 10.000,00 (dez mil reais).”