Um relatório de 160 páginas, em que 28 testemunhas foram ouvidas e diversas interceptações telefônicas foram autorizada pela Justiça, a Corregedoria Geral da Polícia Militar do Espírito Santo revela como funcionava uma organização criminosa responsável pelo tráfico de drogas na Praia do Canto, um dos bairros mais luxuosos da Grande Vitória.
Por trás da organização criminosa, responsável por uma série de assassinatos, compra, venda e produção de drogas, fraudes, golpes para a venda de carros roubados, corrupção e outros crimes, estariam dois policiais militares, que acabam de ser expulsos da PMES. Um dos policiais militares era lotado, na época das investigações, no Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc), ligado à Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp).
As investigações se deram entre 2009 e 2010 – portanto, no governo passado de Paulo Hartung, em que o secretário da Segurança Pública era o agora prefeito de Vila Velha, Rodney Miranda, que, em tese, era o responsável por todas as operações do Nuroc, onde atuava o policial traidor.
O Conselho de Disciplina que decidiu pela expulsão dos dois militares foi instaurado pelo Comando Geral da Polícia Militar por meio da Portaria nº. 015/2011, datado de 16 de setembro de 2011. Ou seja, quase um ano depois do estouro do escândalo.
As investigações internas começaram, portanto, já no governo de Renato Casagrande (PSB), que, logo que assumiu, decidiu que não aceitaria ações criminosas dentro das instituições policiais. A conclusão do Conselho de Disciplina foi publicada no Boletim Geral da PM de nº 013, em 27 de março deste ano. O Conselho foi composto por três oficias. Os nomes deles estão sendo mantidos no anonimato por este Blog porque por trás do esquema apurado por eles existem bandidos de alta periculosidade – alguns encontram-se presos; outros já está soltos.
O Conselho de Disciplina contra os dois policiais agiu dentro da lei. Os três oficiais seguiram rigorosamente o que manda o regulamento, embora tenham deixado de lado a burocracia, o que é um fator positivo em seu brilhante trabalho. Realizaram diversas diligências, além de ouvir 28 testemunhas.
Os policiais acusados, julgados e condenados pelo Conselho de Disciplina são os soldados Anderson Francisco Piana, RG 18.434-2, e Jorge Barbosa Filho, RG 18.451-2. O primeiro, na época da instauração do Conselho, atuava no Batalhão de Trânsito, enquanto o soldado Piana estava 7º Batalhão da PM (Cariacica).
As acusações
De acordo com o Conselho de Disciplina, o soldado Anderson Francisco Piana foi acusado de: 1) Possuir vínculo de amizade com Edvaldo Garces de Deus, o Negão; 2) Possuir vínculo de amizade com Wilian Coutinho Dias; 3) Associar-se ao tráfico; 4) Vínculo de amizade com pessoas de conduta social reprovável, como quem teria se associado para a compra, venda e preparação de drogas ilícitas; 6) Fornecer informações privilegiadas a criminosos, utilizando de sua função pública, já que repassava dados sobre operações que intercedeu em ocorrência de trânsito no intuito de favorecê-lo; 8) Solicitar indevidamente que seu irmão, Alexandro Francisco Piana, prosseguisse a um desmanche de veículo para recolher o aparelho de som de um veículo roubado; 9) Exigir de suposto traficante o ressarcimento de um prejuízo causado a uma viatura do Nuroc que foi alvejada por traficantes no Bairro Itararé.
O soldado Jorge Barbosa Filho é acusado de: 1) Possuir vínculo de amizade com Edvaldo Garcês de Deus; 2) Possuir vínculo de amizade com Wilian Coutinho Dias; 3) Associar-se a quadrilha; 4) Pedir ressarcimento de um prejuízo causado a uma viatura do Nuroc que foi alvejada por traficantes no Bairro Itararé; 5) Repassar informações importantes e confidenciais sobre uma Operação Policial do Nuroc, tendo inclusive deixado o soldado Piana ouvir trechos da interceptação telefônica que estava em andamento.
Em um dos trechos da conclusão de sua investigação, os três oficiais recordam que o trabalho deles se deu por meio de apuração efetuada pela própria Polícia Militar e através do Grupo Especial de Trabalho Investigativo (Geti), do Ministério Público Estadual, que, amparados pelo Poder Judiciário do Espírito Santo, puderam corroborar suas denúncias por meio de farto material técnico, inclusive interceptações telefônicas.
De acordo com o relatório de 160 páginas da Corregedoria da PM, o Geti investigou traficantes que atuavam na região do Bairro da Penha, em Vitória, “e que contavam com o apoio de policiais militares, sobretudo do soldado Anderson Piana.”
Para a operação, o Geti, com apoio de um grupo de policiais da Diretoria de Inteligência (Dint) da Polícia Militar, “utilizou-se do emprego de interceptações telefônicas, ocasião em que policiais militares e demais pessoas, envolvidos no tráfico de drogas, tiveram suas linhas telefônicas monitoradas e suas conversas gravadas, com a devida autorização judicial, sendo que todo o resultado do trabalho investigativo foi disponibilizado para o Conselho de Disciplina como prova emprestada para a realização das apurações na esfera administrativa.”
Ainda segundo o relatório, durante a Operação Êxodo – assim denominada pelo Ministério Público Estadual –, realizada entre outubro de 2009 e abril de 2010, “identificou-se que o soldado Piana, lotado à época no 1º BPM (Vitória), morador do bairro Bonfim, era bastante atuante nos bairros Itararé e Bairro da Penha, bem como tinha estreita ligação com criminosos da área, mantendo relação promíscua com eles.”
Ainda segundo a conclusão do inquérito do MP e da Corregedoria da PM, “os autos demonstram seu (do soldado Piana) vínculo com a produção e o tráfico de drogas ilícitas, além do envolvimento com extorsão, divulgação de informações privilegiadas a criminosos, ameaças e outros crimes.”
O relatório da Corregedoria, que acaba de ser entregue ao Ministério Público Militar Estadual, informa que, ainda no período da investigação, o PM Piana demonstrou possuir estreita e indistinta ligação com o soldado PM Jorge Barbosa Filho, que na época trabalhava no Nuroc.
“As apurações apontaram que o soldado Jorge Barbosa também manteve ligações com criminosos, divulgou informações sigilosas ao soldado Piana e participou de extorsão a meliantes, com o soldado Piana”, diz o relatório.
Defesa dos dois policiais militares
A defesa do soldado Anderson Piana alegou ao longo do Conselho de Disciplina algumas nulidades e preliminares, que foram todas afastadas pelos oficiais-investigadores, que fundamentaram adequadamente todas as arguições e indeferimentos.
Piana requereu a suspensão do Processo Administrativo Disciplinar em decorrência de sentença judicial de sua interdição provisória. Depois de tudo, ele se considerou “maluco”.
Entretanto, os oficiais membros do Conselho de Disciplina, baseados na Legislação, e “argumentando de forma prolixa e exaustiva que a interdição e a curatela são institutos jurídicos regulamentados pelo Código Civil e pelo Código de Processo Civil, com efeitos meramente patrimoniais, não possuindo vinculação com a imputabilidade, que é instituto de Direito Penal e Processual Penal, decretada pelo juízo criminal. Ou seja, a curatela e a inimputabilidade são institutos diferentes e com efeitos diversos.” Os três oficiais, assim, deram uma aula de Direito aos advogados do soldado Piana.
Os três oficiais que integraram o Conselho de Disciplina apuraram que os fatos ocorreram no ano de 2009 e 2010, “ou seja, muito antes da interdição do PM Piana”. Além disso, para corroborar com o indeferimento da suspensão do Conselho de Disciplina, os oficiais, sabiamente, juntaram parecer da Procuradoria Geral do Estado do Espírito Santo (PGE/ES), entendendo que o PAD não pode ser suspenso quando os fatos apurados forem de período anterior à interdição.
Além disso, o soldado Piana foi submetido à perícia médica, em que a Junta Militar de Saúde (JMS) da Polícia Militar concluiu que o soldado estava apto para responder Processo Administrativo Disciplinar.
A defesa do soldado Piana alegou ainda que o policial, de fato, conhecia o traficante Edvaldo Garcês de Deus, o Negão, e Willian Coutinho Dias “em decorrência de o militar ser morador do bairro Bonfim, mas que não mantinha com eles relação de amizade.”
Porém, os oficiais do Conselho de Disciplina entenderam que há provas nos autos, “notadamente ligações telefônicas interceptadas com autorização judicial, do envolvimento do soldado Piana com Negão e e Willian Dias, indivíduos ligados ao tráfico de drogas ilícitas.”
Defesa tentou alegar que policial era agente secreto infiltrado no tráfico
A defesa do soldado Piana tentou arguir algo surreal. Afirmou que o policial teria atuado como agente infiltrado da Diretoria de Inteligência da PMES na quadrilha de traficantes do Bairro da Penha. Só que a atuação do policial Piana era tão secreta que nem mesmo o comando da Dint conhecia tal procedimento.
Tanto que os oficiais membros do Conselho de Disciplina provaram que “o militar não era e nunca foi agente infiltrado da Diretoria de Inteligência, bem como de nenhum outro órgão ligado à atividade de Inteligência, conforme respostas enviadas pela Dint e pelo Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc)” ao Conselho de Disciplina.
Já a defesa do soldado Jorge Barbosa Filho argumentou que a relação de amizade entre ele e o PM Piana decorre do fato de ambos serem da mesma turma do Curso de Formação de Soldados (CFSd), “assegurando que o acusado desconhecia o envolvimento de Piana com pessoas de índole duvidosa.”
Testemunha diz que comprava, por vez, 100 gramas de cocaína com PM Piana
Uma das 28 testemunhas ouvidas pela Corregedoria Geral da PM prestou depoimento em que afirmou que adquiria cocaína com o militar Piana. A mesma testemunha revelou que comprava por vez, com o militar, 100 gramas de cocaína pelo valor de R$ 1 mil e que, posteriormente, o soldado Piana o teria convidado para vender drogas na região do Triângulo das Bermudas, na Praia do Canto, próximo ao Bar Abertura.
Em depoimento à Corregedoria, outra testemunha revelou que havia um ponto de vendas de drogas na região do Triângulo das Bermudas, na Praia do Canto, que “pertencia ao soldado Piana”.
Também informou que o militar transportava as drogas utilizando uma motocicleta e que guardava o material ilícito na residência de sua irmã, que era namorada de um traficante.
O Conselho de Disciplina também considerou o soldado Jorge Barbosa culpado da acusação de ter repassado informação privilegiada ao seu colega Piana. Ele teria repassado informações confidenciais sobre uma operação do Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas (Nuroc), bem como ter deixado o PM Piana ouvir trechos de uma interceptação telefônica.
Asseguram os oficiais que há nos autos provas contundentes, inclusive interceptações telefônicas que comprovam que o soldado Jorge solicitou que Piana ligasse para uma pessoa, “alvo de investigações por parte de uma das operações do Nuroc, tendo repassado ao SD PM PIANA o número de telefone do referido alvo, violando assim o sigilo da operação.”
Em seguida, o soldado Jorge Barbosa permitiu que o colega Piana ouvisse o áudio de uma das conversas interceptadas cujos interlocutores eram o próprio PM Piana e um homem não identificado, “violando novamente o sigilo de sua função pública ocupada, bem como colocou em risco a atividade desempenhada pelo Nuroc, ou seja, o soldado Jorge Barbosa violou o segredo de Justiça” – o que é crime.
Conserto superfaturado de viatura do Nuroc
Já em relação à acusação de que os policiais Anderson Piana e Jorge Barbosa teriam exigido de suposto traficante o ressarcimento de um prejuízo causado a uma viatura do Nuroc, que foi atingida por tiros por bandidos no dia 15 de novembro de 2009, na rua Santa Terezinha, em Itararé, Vitória, nas proximidades do Hospital CIAS/Unimed, o Conselho de Disciplina entendeu que os militares são culpados da imputação.
Isso porque há nos autos interceptações telefônicas em que os militares conversam sobre o fato, assim como existe no Ciodes o registro de um Boletim de Atendimento em que um cidadão informa o fato.
Na ligação interceptada, Piana ameaça um homem não identificado, falando da necessidade dos traficantes ressarcirem o prejuízo causado à viatura do Nuroc.
Ainda de acordo com parte da conversa extraída de interceptação telefônica, autorizada pela Justiça, os dois PMs conversam sobre a confecção de orçamentos de conserto da viatura para serem apresentados aos traficantes, com o policial Jorge afirmando que Piana deveria cobrar R$ 4.700,00.
“A quantia extorquida dos traficantes foi mediante orçamento superfaturado feito pela empresa Recuperachoque no valor de R$ 4.700,00 pelos prejuízos causados à viatura descaracterizada que ficava à disposição do soldado Jorge Barbosa. Entretanto, a testemunha R.C.B., empregado da empresa Recuperachock Lanternagem e Pintura Ltda., oficina que efetuou o conserto do veículo, afirmou que considera o valor cobrado pelos acusados (policiais) muito alto, pois o serviço realizado teria um custo em torno de R$ 1.050,00. Ou seja, os acusados (policiais) teriam exigido dos traficantes um valor mais de quatro vezes superior, nitidamente com o objetivo de auferir lucro de forma ilícita”, diz parte do relatório do Conselho de Disciplina.
Ao final da investigação, os oficiais do Conselho de Disciplina demonstram que os militares “Jorge Barbosa e Piana tinham relação promíscua com criminosos, sobretudo traficantes de drogas do Bairro da Penha; usavam suas funções públicas para benefício e operações e/ou de ações da polícia, tendo ainda o soldado Piana se envolvido em ameaça e fabricação no que se refere ao tráfico de drogas ilícitas.”
Assim, entenderam que as condutas dos militares configuram gravíssimas infrações administrativas, pois infringem a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a ética, a probidade, o dever de lealdade, a honestidade e a supremacia do interesse público, princípios da Administração Pública que direcionam a conduta de todo agente público, afirmando ser patente a inadequação de sua conduta com os deveres da carreira policial.
No relatório final, oficiais lembram Código Penal Militar e falam de pena de morte por fuzilamento para policial que comete traição
Ainda de acordo com o relatório final, os oficiais do Conselho de Disciplina destacaram que a conduta dos PMs Jorge e Piana é diametralmente oposta aos deveres do cargo que ocupam.
“As ações dos militares acusados não estão dentro do comportamento esperado de um agente público responsável pela segurança dos cidadãos e cumprimento da lei”, afirmam os oficiais.
Especificamente em relação à conduta do soldado Anderson Piana “de repassar informações da localização de viaturas e policiais em serviço para criminosos e traficantes do Bairro da Penha”, os oficiais classificaram sua ação como inaceitável, pois “configuraria verdadeiro ato de traição aos companheiros de farda e à Corporação, pois sua ajuda poderia ter ocasionado a morte dos militares em serviço, já que os meliantes poderiam ter preparado emboscadas e terem ceifado a vida dos policiais surpreendendo-os em tocaias.”
Os oficiais afirmam que a conduta do soldado Piana é tão grave que, “por analogia, o Código Penal Militar (CPM) puniria o ato de traição com a pena de morte por fuzilamento, caso o fato tivesse ocorrido durante o período de guerra (artigos 56, 355, 356, 359 e 366 do CPM).”
O comandante geral da Polícia Militar, coronel Ronalt Willian, não titubeou. Assinou imediatamente a exclusão dos dois policiais dos quadros da PMES.