Levando em conta o cenário da pandemia do novo coronavírus e o processo acelerado de transferência dos atos jurídicos para o meio virtual, pode-se considerar que essa nova realidade teve um grande impacto no dia a dia da advocacia, alterando não só a vida de quem já atuava na profissão, mas, principalmente, daqueles que estão iniciando a carreira e terão que se consolidar pautados em um novo modelo de negócios.
A advogada Erica Neves é uma das que tomam a dianteira no movimento de construção por uma advocacia mais fortalecida e conectada com os novos tempos. Nesta entrevista, ela afirma que o cenário é desafiador para a jovem advocacia, mas, ao mesmo tempo, também de muitas oportunidades.
“Os jovens precisam conseguir ler o mercado para entregar o serviço que ele precisa na região ou naquele tempo, identificar oportunidades, estar conectado com as inovações tecnológicas e saber empreender com essas novas tecnologias, investir no que é rentável ao seu nicho de atuação, ter um marketing jurídico adequado ao seu público alvo e gerir suas finanças e escritórios. Nada disso os bancos do direito ensinam”, destaca Erica Neves.
Advogada graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), especialista em Direito do Estado e em Direito do Consumidor pela Universidade Gama Filho, Erica Neves é sócia fundadora de seu escritório de Advocacia e Consultoria.
Também atuou na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ES), como membro da Comissão Nacional do Direito do Agronegócio (2016-18), como presidente da Comissão de Fiscalização e Propaganda (2016-17) e secretária-geral Adjunta (2016-18).
– O que a senhora enxerga do futuro da advocacia? Pode-se dizer que o Sistema de Justiça está a caminho de ter uma advocacia mais conectada com os novos tempos?
– Erica Neves – Eu vejo que temos uma nova advocacia entrando no mercado, complemente diferente da que tínhamos há 20 anos quando eu entrei. E cabe à advocacia com mais experiência também se adaptar a estes novos tempos.
Entrávamos no mercado sabendo Direito e isso com muito esforço, ética e responsabilidade nos levava a uma carreira minimamente confortável. Hoje, temos necessidades totalmente diferentes e não só pelo mundo digital que nos levou a uma era nova do exercício da profissão, mas para se destacar o mercado exige mais.
Fazemos parte do mercado, temos que parar de ter receio de falar em lucro, em público alvo ou em fomento. Temos que saber muitas outras habilidades além do Direito.
Os jovens precisam conseguir ler o mercado para entregar o serviço que ele precisa na região ou naquele tempo, identificar oportunidades, estar conectado com as inovações tecnológicas e saber empreender com essas novas tecnologias, investir no que é rentável ao seu nicho de atuação, ter um marketing jurídico adequado ao seu público alvo e gerir suas finanças e escritórios. Nada disso os bancos do Direito ensinam.
Seus pequenos escritórios, desde o início, com base em compliance, ter interação com outras áreas que complementam a sua especialidade, ter noção da relação oferta/demanda que melhor lhe convém, ser hábil em sistemas de controle processual e financeiro para conseguir começar de forma correta diminuindo o risco de fracasso prematuro por falta destas habilidades e conhecimentos, mesmo sabendo tudo de Direito.
Enfim, é uma nova geração que devemos respeitar e valorizar porque eles mudarão a advocacia e a relação da advocacia com a sociedade.
– Qual a importância da atuação da OAB no sentido fortalecer a Advocacia?
– A nossa instituição é – e sempre foi – muito importante para a defesa da sociedade no sistema democrático do nosso País, mas está completamente obsoleta em suas práticas, pois mantendo sua forma de agir e de pensar independente das transformações que a advocacia está passando.
Nossa instituição está também completamente desconectada com a sociedade, o que também reflete na nossa profissão. Por exemplo: a Escola Superior da Advocacia continua investindo em Direito Material e em Direito Processual, quando, a meu ver, precisava promover e fomentar a qualificação da advocacia aos novos tempos, a leitura de mercado e gestão de escritórios e equipes, qualificação pessoal em oratória assertiva para negociações, audiências e conquista de clientes, formar e capacitar empreendedores na área jurídica utilizando da ferramentas tecnológicas para fomento do empreendimento, ter um núcleo de inovações tecnológicas com técnicos capacitados para desenvolver soluções para problemas da nossa rotina e por aí vai. Afinal, este é o papel da OAB, em promover a atualização da nossa profissão para o mercado.
Quanto ao Direito Material, nós somos quase que autodidatas e, mesmo assim, cabe também esta qualificação através de cursos compartilhados entre a ESA e universidades para disponibilizar cursos com selo acadêmico e reconhecidos pelo MEC em todas as áreas, a custo mais baixo para a advocacia, mas que seja relevante para o currículo. O foco principal da ESA precisa mudar.
Na gestão de recursos e tempo, a OAB precisa também mudar completamente e parar de querer se autopromover para ganhar espaço e poder político. É preciso proteger o dinheiro da advocacia para investir na advocacia. Ora, os valores gastos mensais com a estrutura interna de comunicação, acrescidos à empresa terceirizada de marketing e às publicações periódicas nos jornais tradicionais é um absurdo diante da dificuldade que a advocacia tem hoje para se manter na profissão. Até as funções e a quantidade de comissões precisa mudar, é mais uma característica obsoleta que temos na OAB.
Tudo isso enfraquece a nossa classe que cada dia mais quer se manter afastada da nossa instituição.
– Qual deve, então, ser o caminho a ser seguido pela Ordem daqui em diante?
– Pedir no Conselho Federal para que apresente urgentemente uma alteração legislativa para impedir a reeleição na OAB já é um bom começo. Falo isso com toda sinceridade. Esse seria um enorme passo para que a Ordem pare de ser vista como uma instituição política que viabiliza projetos pessoais de poder e este público pare de querer a Ordem porque sabe que depois de três anos tem que sair.
Acredito que esse movimento tem que começar pelas Seccionais, e acontecendo esta alteração, a OAB vai atrair mais pessoas que acreditam que podem gerir e promover projetos legais para a advocacia por três anos e ainda incentiva a transparência para que a gestão ao final seja comemorada e parabenizada pela classe.
Nos últimos tempos a engrenagem política descobriu a OAB como uma grande ferramenta forte de intervenção em vários outros órgãos como os Tribunais Eleitorais, Tribunais de Justiça, Conselhos Estaduais e Municipais etc. Estamos vendo isso de forma bem explícita agora. Se continuar, daqui pra frente a tendência é piorar.
E por fim, hoje temos uma Ordem financeiramente pesada para a advocacia carregar e vai ficar maior tal como nos ambiente públicos, quando deveria ser enxuta como ambiente privado e prestar serviços, serviços e mais serviços, que é o que a advocacia espera quando paga a anuidade.
– Para a senhora o que a Advocacia espera quando paga a anuidade?
– De forma imediata é a defesa das nossas prerrogativas doa a quem doer, ter ações contundentes quando qualquer violação é cometida por alguma autoridade, porque nota de repúdio é o mesmo que nada nesses casos e acaba virando moeda de troca de poder o que é péssimo. Essa é uma segurança imediata que merecemos.
E acredito muito que as prerrogativas que são violadas no nosso dia-a-dia que não são comunicadas nos incomodam muito e precisam ser tratadas de forma institucional, para que advogado não fique exposto, podendo ser tratados com números e métricas para um debate qualificado no Tribunal. Temos um projeto de leitura dessa situação bem interessante.
Também de forma imediata é uma ESA que ajude e acrescente conhecimentos à advocacia na linha que disse na resposta anterior e que esteja acessível a qualquer lugar. Este retorno é primordial para que o advogado ou advogada sinta que a instituição acrescenta algo na sua profissão e na sua carreira.
Também tem o retorno institucional que é a gestão dos nossos recursos de forma transparente e participativa, com projetos institucionais em conjunto com os Tribunais para ter intercâmbio colaborativo entre a advocacia e os servidores e mudar completamente o relacionamento ruim e cultural que existe.
Também penso na defesa dos Direitos Humanos, efetiva e verdadeira, por quem tem propriedade no tema, pois muitas das vezes a OAB é a última porta dos que estão desprotegidos no sistema que vivemos.
E, claro, a instituição precisa parar de querer interferir no mercado e na nossa advocacia como forma de controle. A anuidade compulsória não permite que a OAB possa ser arbitrária e perseguidora, ao contrário, deve ser parceira da advocacia em suas práticas e ações, o tempo todo.
Até com os inadimplentes o tratamento deve ser diferente do que estamos vendo, facilitar o pagamento ao invés de constranger cada dia mais quem passa dificuldade. Agora na pandemia divulgaram três meses de suspensão do pagamento e, no final, cobraram juros e multa de quem não pagou, e ainda, levaram a protesto qualquer débito. Nem os adimplentes precisam dessa postura da nossa casa, ninguém ganha com isso.
– Quais características um presidente da OAB deve possuir para se tornar um bom líder?
– Quando eu entrei na advocacia éramos 10 mil no Espírito Santo, hoje somos 40 mil e isso muda absolutamente tudo, inclusive o que precisamos na liderança. Naquela época um líder que mantinha excelente relacionamento com os Tribunais, com o Executivo e Legislativo acabava trazendo um ambiente bom para a advocacia trabalhar, mas hoje isso não é mais realidade porque a advocacia e suas necessidades acabam sendo esquecidas.
A relação entre nosso presidente e outros atores precisa ser institucional, ter uma interlocução institucional respeitosa e firme sempre em favor da sociedade e da advocacia. Para isso os relacionamentos pessoais dos que cresceram nas rodas sociais jurídicas até atrapalham porque muitas vezes a indisposição é certa e é muito difícil de ser escolhida em favor da advocacia que representa.
Eu acredito que a OAB hoje precisa de lideranças que queiram gerir a Ordem para a advocacia, isentar-se de interesses outros que não seja o seu mandato de três anos para deixar projetos bons que mudem o dia a dia da nossa profissão, que não tenha receio na indisposição que o cargo trará com outros atores.
Também acredito num ambiente compartilhado de gestão, essa pessoalidade que todos falam no “sempre foi assim” é decorrente de um pensamento obsoleto que não encaixa mais nas instituições privadas e a OAB deveria ser gerida com os princípios dos ambientes privados.
Aliás, particularmente odeio aceitar o “sempre foi assim”. Essa característica que todos acatam traz para a Ordem um selo que instituição arcaica e desconectada de qualquer linha de gestão atual, até as mais tradicionais.