No dia 7 deste mês, este Blog publicou reportagem informando que o Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do Espírito Santo (Sindelpo) enviou ofício às autoridades do Estado solicitando seja respeitada o que denomina de “Aplicação estrita do Pacto pela Legalidade.” No documento, o Sindelpo afirma que os delegados não mais aceitarão o cumprimento de mandados de busca e apreensão domiciliar sem que o pedido e a execução da medida tenham sido respaldadas por “um Delegado de Polícia, no caso das infrações penais comuns”.
Nesta semana, um grupo de majores da Polícia Militar do Espírito Santo, da turma de 1996, enviou artigo a este Blog em que expõe seu pensamento sobre o assunto. Abaixo, a íntegra do artigo:
O esclarecimento dos majores
“Nos últimos dias observamos uma exasperação no antagonismo entre a Polícia Civil x Polícia Militar, particularmente patrocinado pelo Sindicato dos Delegados de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo (Sindelpo), valendo-se dos meios de comunicação para desacreditar junto a população as ações da Polícia Militar, especialmente no tocante ao cumprimento dos Mandados de Busca e Apreensão (MBA)…
Busca-se esclarecer a questão do pedido e cumprimento de mandado de busca e apreensão, todavia não se pode adentrar a tão tortuoso assunto sem se abordar às questões acerca dos órgãos de segurança pública e suas missões.
Observa-se que o constituinte originário deliberou por um modelo de polícia dividido ou bipartido, em uma polícia ostensiva e preventiva; e uma polícia repressiva e judiciária, entendendo-se que por polícia judiciária, esta não abrange nem integra a composição do Poder Judiciário, mas sim, serve como auxiliar as funções que serão remetidas àquele poder para solução de conflitos.
Sendo assim, a Constituição de 1988 explicitou os órgãos responsáveis pela segurança pública, esclarecendo a atribuição de cada um deles, do que nos ateremos apenas aos envolvidos no “mister” estadual, qual seja, a Polícia Militar e a Polícia Civil, vejamos: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…) IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. (…) § 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as Militares. § 5º. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública (…) § 7º. A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
A melhor interpretação ao artigo 144 da Constituição Federal, partindo-se do seu caput é a que imbui a ‘todos’ os órgãos listados a persecução da pacificação social/segurança pública, assim, nos ensinam RAMOS e SIQUEIRA, em publicação de artigo científica: “Todos os órgãos policiais exercem a atividade de segurança pública, a qual tem por escopo a integridade física e patrimonial do cidadão, sendo esses órgãos responsáveis pela manutenção e preservação da ordem pública, estando seus integrantes, sem exceção, investidos de função policial.”
Concordamos com os autores de que a segurança pública é uma atividade ampla que não há como definir ou delimitar de forma estanque, objetivamente, as atribuições de cada órgão, ao contrário, as atividades se permeiam, haja vista que todos buscam o mesmo desiderato constitucional.
O professor Álvaro Lazzarini em obra coletiva alusiva ao aniversário de 20 anos da Constituição da República – Constituição Federal. Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro (2008, p. 531), comenta sobre o capítulo da Segurança Pública: “Muito se tem debatido, mas em nosso entendimento, segurança pública é um estado antidelitual, que resulta da observância dos preceitos tutelados pelos códigos penais comuns e pela lei de contravenções penais, com ações de polícia preventiva ou de repressão imediata, afastando-se, assim, por meio de organizações próprias, de todo o perigo, ou de todo o mal que possa afetar a ordem pública, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade das pessoas, limitando as liberdades individuais, estabelecendo que a liberdade de cada pessoa, mesmo em fazer aquilo que a lei não lhe veda, não pode ir além da liberdade assegurada aos demais, ofendendo-a.”
A velocidade que a violência e a criminalidade impõem em nosso País e em nosso Estado, não nos permite uma burocratização fechada, difícil de ser compreendida, do processo policial, devemos sim, guardar como parâmetro a Constituição Federal e seus princípios.
Observa-se que, nem mesmo os direitos fundamentais são absolutos, pois no conflito entre direitos fundamentais o intérprete deverá ponderar qual a melhor solução, ou seja, se nem mesmo os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana são absolutos, porque haveria uma cláusula de reserva estanque a determinada categoria profissional em outros pontos da Constituição? Ou ainda, porque se interpretar que as missões constitucionais das polícias são somente aquelas? E ainda, se verdadeiras as assertivas, a quem interessa e porquê?
A lógica constitucional nos leva a interpretar como negativa qualquer cláusula nesse sentido, até mesmo porque, conforme ensina Peter Häberle em sua Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos interpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição (2002, p. 30): “A ampliação do círculo dos intérpretes aqui sustentada é apenas a consequência da necessidade, por todos defendida, de integração da realidade no processo de interpretação”, assim, também somos interpretes da Constituição, porque o caminhar em sentido contrário privilegiaria um determinado grupo e não o conjunto da sociedade.
Dessa forma, as instituições policiais devem ser dinâmicas, evitando-se vaidades ou caprichos, pois cada vez que a vaidade ou o capricho prevalecem quem sai perdendo é a sociedade, do que se citam novamente, os ensinamentos de RAMOS e SIQUEIRA: “Cabe ressaltar que a sociedade anseia por proteção pública, não lhe interessando que o organismo de prestação do serviço seja militar ou civil, estadual, federal ou municipal, Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Civil ou Guarda Municipal, força pública ou guarda noturno. A comunidade exige órgãos fortes e sadios, dinâmicos e eficazes, capazes de assegurar-lhes proteção contra os riscos que rondam as populações das modernas e das antigas, das grandes e das pequenas cidades.”
Deve-se entender que as missões constitucionais das polícias são compartilhadas, buscando-se o bem comum, todavia que reste consignado que existe um marco mínimo definindo as atribuições de cada órgão, do que se concorda com Norberto Bobbio, na obra A Era dos Direitos (1992, p. 59): “Precisamente partindo de Locke, pode-se compreender como a doutrina dos direitos naturais pressupõe uma concepção individualista da sociedade e, portanto, do Estado, continuamente combatida pela bem mais sólida e antiga concepção organicista, segundo a qual a sociedade é um todo, e o todo está acima das partes.”
Nesta complexa configuração é que se encontra o Mandado de Busca e Apreensão (MBA), o qual, segundo os delegados de polícia é titularidade exclusiva deste representante público, num outro viés, outro segmento doutrinário não apregoa tal exclusividade ao delegado de polícia, sinalizando pela legitimidade do pedido para a Autoridade Policial Militar, inclusive, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal é pela constitucionalidade do pedido de mandado de busca e apreensão pela Polícia Militar, lastreando seus argumentos na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.
Com o objetivo de melhor esclarecer a situação e antes de trazermos à colação os ensinamentos doutrinários, transcrever-se-á o texto da Lei: “Art. 242. A busca poderá ser determinada de ofício ou a requerimento de qualquer das partes”; assim, se for feita uma interpretação estrita, observa-se que o delegado de polícia, na conceituação formal de parte processual, não é parte, partes seriam apenas – o órgão do Ministério Público e o acusado ou réu no processo, contudo, analisando-se num viés da interpretação extensiva, que não violaria nenhum direito fundamental do cidadão, seriam incluídos tanto o delegado de polícia quanto a autoridade policial militar também como legitimados ao pedido do mandado de busca e apreensão, não sendo, pois, diferente a interpretação de Denilson Feitoza, Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis (2010, p. 803): “A busca, portanto, não é instrumento exclusivo da polícia investigativa (“polícia judiciária”). No exemplo dado, a Polícia Militar, mesmo na sua função específica de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, pode requerer a expedição de mandado de busca e apreensão, para cumprimento de seu dever de prender quem esteja em flagrante delito (com fundamento no art. 240, § 1º, alínea a, c/c art. 243, § 1º, e art. 301, todos do CPP, e art. 144, § 5º, CR), sem significar uma investigação criminal.”
Observa-se que a legalidade e legitimidade da Polícia Militar demandar mandado de busca e apreensão não é uma interpretação apenas de Oficiais da Polícia Militar, mas sim de conceituada doutrina, e também, dos órgãos judiciários, pois estes é que fazem o controle da legalidade e necessidade de deferimento de tal pedido, citando-se, inclusive, posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, extraído da obra do professor Júlio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado (2003, p. 622): “Busca e apreensão pela polícia militar – STJ: ‘Mandado judicial. Alertada por notitia criminis oriunda de órgão policial militar, não macula a busca e apreensão cumprimento do respectivo mandado judicial pelo mesmo órgão, tanto mais que se seguiu a regular instauração do inquérito pela polícia civil, à qual foram entregues os bens apreendidos’.”
Assim, também, posiciona-se o Supremo Tribunal Federal, Guardião da Constituição:
“STF – HABEAS CORPUS HC 91481 MG. Data da publicação: 23/10/2008. Ementa: BUSCA E APREENSÃO – TRÁFICO DE DROGAS – ORDEM JUDICIAL – CUMPRIMENTO PELA POLÍCIA MILITAR. Ante o disposto no artigo 144 da Constituição Federal, a circunstância de haver atuado a polícia militar não contamina o flagrante e a busca e apreensão realizadas. AUTO CIRCUNSTANCIADO – § 7º DO ARTIGO 245 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. Atende ao disposto no § 7º do artigo 245 do Código de Processo Penal procedimento a revelar auto de prisão em flagrante assinado pela autoridade competente, do qual constam o condutor, o conduzido e as testemunhas; despacho ratificando a prisão em flagrante; nota de culpa e consciência das garantias constitucionais; comunicação do recolhimento do envolvido à autoridade judicial; lavratura do boletim de ocorrência; auto de apreensão e solicitação de perícia ao Instituto de Criminalística.”
“STF – RECURSO EXTRAORDINÁRIO RE 404593 ES. Data de publicação: 22/10/2009. Ementa: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Necessidade de exame prévio de eventual ofensa à lei ordinária. Ofensa meramente reflexa ou indireta à Constituição Federal. Não conhecimento parcial do recurso. Precedente. Se, para provar contrariedade à Constituição da República, se deva, antes, demonstrar ofensa à lei ordinária, então é esta que conta para efeito de juízo de admissibilidade do recurso extraordinário. 2. AÇÃO PENAL. Prova. Mandado de busca e apreensão. Cumprimento pela Polícia Militar. Licitude. Providência de caráter cautelar emergencial. Diligência abrangida na competência da atividade de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública. Recurso extraordinário improvido. Inteligência do Art. 144, §§ 4º e 5º da CF. Não constitui prova ilícita a que resulte do cumprimento de mandado de busca e apreensão emergencial pela polícia militar.”
No mesmo sentido caminha a doutrina de Marcellus Polastri Lima, Manual de Processo Penal (2009, p. 528): “Não será também cautelar a busca e apreensão para fins de policiamento preventivo, uma vez que, de acordo com Garcez Ramos, (…) não é cautelar por falta de referibilidade à pretensão condenatória de um determinado processo criminal, a busca e apreensão utilizada como medida de policiamento preventivo. Essa hipótese ocorre, por exemplo, quando a autoridade – policial ou judiciária – vale-se da medida para prender criminosos, para apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, para apreender pessoas vítimas de crimes ou, ainda, para apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos, quando qualquer desses objetos ou pessoas não estejam diretamente relacionados com a infração penal que seja objeto da pesquisa da autoridade. Nesta hipótese, segundo Lopes da Costa, tais medidas seriam, meramente, preventivas.”
Assim, também, o posicionamento de Aury Lopes Júnior o qual entende que o juiz deve exigir a demonstração do fumus commissi delicti, entendendo-se que para tanto, a prova da autoria e da materialidade devem ter suficiente lastro probatório fático para legitimar a medida invasiva estatal.
Dessa forma não pode prosperar o minoritário entendimento de que a Polícia Militar não goza de legitimidade para instruir o pedido de mandado de busca e apreensão, haja vista que a Polícia Militar não pleiteia fazer investigação policial, mas deve-se entender que as averiguações policiais são necessárias e pertinentes para melhor instruir quer seja o inquérito policial quer seja o próprio processo penal, ou seja, o que se esclarece que a Polícia Militar como ator importante na construção da ordem pública não pode ser tolhido movido por vaidades ou casuísmos prejudicando o destinatário final, que é o cidadão.
Relembre-se o que foi escrito pelo Barão de Secondat, ou mais conhecido como Montesquieu, de que o homem tende a abusar do poder que tem, por isso é necessário o seu controle, no caso, o check and balance, assim, é um risco muito grande à sociedade quando se centraliza em um único órgão vários poderes ou atribuições.
Da mesma forma, observa-se que não se encontra no texto constitucional ou nos dispositivos do Código de Processo Penal qualquer remissão de exclusividade do pedido e cumprimento do mandado de busca e apreensão aos delegados de polícia, contudo o que vimos observando nos últimos tempos, até com algum aval do Supremo é a judicialização da atividade policial, o que indubitavelmente acarretará em sua fossilização.
Assim, reitere-se que a Polícia Militar não quer fazer investigação policial, mas sim, quer prestar ao cidadão seu mister constitucional no viés do artigo 144, mas, também, atendendo os princípios que gerem a Administração Pública, particularmente, o da eficiência.
Por derradeiro, uma última questão deve ser abordada, no imbróglio apresentado, observa-se que alguns delegados tendem a acreditar que ocorre o crime de usurpação de função pública e abuso de autoridade por parte do policial militar que cumpre o mandado de busca e apreensão e também de prisão, todavia não prospera tal posicionamento, haja vista que, sendo o mandado de busca e apreensão ou de prisão uma ordem legal de autoridade competente, no caso o juiz de direito (que se ressalte – é de quem exara tal documento), tendo como parâmetro a teoria finalista da ação de Hans Welzel e sendo o crime, em seu aspecto analítico, definido como o fato típico, ilícito/antijurídico e culpável, a ação do policial militar não se enquadraria nessa equação, porque o militar estadual agiria abrigado por uma excludente de ilicitude, no caso, o estrito cumprimento do dever legal.
Da mesma maneira, contudo, em outro viés, adotando-se o posicionamento de Eugênio Raúl Zaffaroni e a sua teoria da tipicidade conglobante, da mesma forma, não haveria nenhum ilícito praticado pelo policial militar, pois, segundo o doutrinador, para que exista a tipicidade penal é preciso que a conduta seja legalmente típica e, também, que ocorra a antinormatividade e a ofensa ao bem jurídico, onde a antinormatividade consiste na contrariedade da conduta humana com o ordenamento normativo, sendo este constituído pelas normas que ordenam e as que fomentam as condutas.
Assim, para se falar em tipicidade penal não basta a simples adequação do fato ao tipo, é necessária a análise do ordenamento normativo para a comprovação da inexistência de norma que ordene ou norma que fomente determinada conduta.
De outro lado, o não recebimento do mandado de prisão cumprido por policial militar pelo delegado de polícia, pode caracterizar ilícito penal, no caso, o crime de prevaricação e de abuso de autoridade, quiçá ainda, a macula ao previsto na Lei Federal nº 8.429/1992 – Lei de Improbidade Administrativa, particularmente, ao Art. 11, que se refere aos princípios da Administração Pública; pois se reafirma que o policial militar cumpre uma ordem manifestamente legal de autoridade competente não cabendo ao delegado de polícia, no momento do recebimento, realizar qualquer juízo ou controle de legalidade no cumprimento da ordem judicial, pois ao contrário senso, o delegado de polícia estaria controlando a ação do magistrado e sua determinação.”