Chegou ao mercado literário o livro “UPP – Crônica da Crônica da ‘Pacificação’ 2009-2019”, de autoria do professor, cientista social, escritor e coronel aposentado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro Jorge da Silva. O livro está sendo lançado pela Altadena Editora e tem prefácio de Ilona Szabó de Carvalho, cientista política especialista em segurança pública e em políticas sobre drogas.
No prólogo do livro, o autor Jorge da Silva já adverte o leitor, ao afirmar que o conteúdo da obra reflete uma visão assumidamente crítica, “pois não adoto atitude politicamente correta sobre temas sensíveis ao tabu”.
Os textos reunidos nos diversos capítulos do livro são uma seleção de postagens do blog que o professor-coronel lançou no dia 27 de março de 2009. Ao longo desses 21 anos, Jorge da Silva percebeu que as histórias que contava no blog eram bastante parecidas, pois se tratavam da realidade cotidiana do Rio de Janeiro: tiroteios em favelas, arrastões em vias expressas e túneis, mortes em assaltos, disputas entre facções de traficantes e milicianos e as ações da polícia nessa guerra.
Foi um período que se registraram mortes de policiais, de bandidos (reais ou supostas, frisa Jorge da Silva) e de crianças e idosos por balas perdidas; e emprego das Forças Armadas.
Jorge da Silva chama a atenção para o período em que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) foram instaladas nas comunidades cariocas. O ano era 2009. Era o primeiro período do governo de Sérgio Cabral Filho, preso em Bangu por conta de diversas condenações pela acusação de corrupção.
As UPPs contavam com o apoio integral e absoluto da imprensa do Rio e de todo o Brasil. As ocupações, geralmente, eram transmitidas ao vivo pela Rede Globo, Globo News e demais emissoras de TV.
No meio desse glamour, no entanto, Jorge da Silva percebeu que o governo fluminense sequer teve o interesse de planejar, efetivamente, o que seriam as UPPs.
Ele traz para o “UPP-Crônica da Crônica da ‘Pacificação” trecho do livro escrito pelo então secretário da Segurança Pública do Estado do Rio, o delegado federal Mariano Beltrame:
“É impossível lembrar com exatidão como surgiu a UPP, qual a primeira reunião para tratar do assunto, de que forma foi batizada com esse nome. Não houve algo sistematizado.(…) Outras questões eram logística e o método. Ficaram para depois, já que a janela de oportunidades se abriu antes de tudo ficar pronto”.
A obra literária não fala apenas de polícia. Aborda o racismo claro existente no País e nas polícias, que tem a ver com segurança pública. Logo no primeiro capítulo – ‘A Natureza da Sociedade Brasileira e a Criminalidade’ –, Jorge da Silva traz de volta uma velha discussão e polêmica: Seria o presidente Jair Bolsonaro um racista ou preconceituoso? Para esclarecer, o autor republica um post de seu blog, de 30 de março de 2011. A crônica da época começa assim:
“Deu em O Globo (globo.com/Extra) desta terça-feira (29/03/2011): Bolsonaro diz na TV que seus filhos não ‘correm risco’ de namorar negras ou virar gays porque foram ‘muito bem educados’”. O restante, o leitor terá que buscar em “UPP – Crônica da Crônica da ‘Pacificação’ 2009-2019”.
O livro pode ser adquirido por meio do link da editora https://altadena.loja2.com.br/
Abaixo, a introdução do “UPP – Crônica da Crônica da ‘Pacificação’ 2009-2019”, escrita pelo próprio autor, Jorge da Silva.
INTRODUÇÃO
O assunto da acalorada conversa era o medo do crime em que vive a população. Cada um conta um caso que vivenciou ou de que tomou conhecimento: assalto, morte, arrastão em vias expressas e túneis, com bandidos armados de fuzil. Medo coletivo.
― O senhor que entende de segurança, qual é a solução?
― Acho que não tem solução…
Tanto a apavorada moça que fez a pergunta quanto as demais pessoas mostraram-se perplexas com a resposta, mas nada disseram. Ora, como uma pessoa ligada à área da segurança respondia dessa forma? E o assunto morreu. Ninguém perguntou ‘por quê?’ Se tivessem perguntado, talvez ouvissem: porque temos o vezo histórico de pretender resolver questões sociais de fundo com as forças da ordem e a prisão, o que, em larga medida, explica o fato de o Brasil vir ocupando o pódio de campeão mundial de homicídios em números absolutos, fato que tem sido revelado em diferentes pesquisas[1]. Em esmagadora maioria, homicídios de jovens pobres da periferia.
Tudo indica que a elite nacional ― no particular a do Rio de Janeiro ― dificilmente admitirá que o uso da força como meio de conformar comportamentos coletivos não tem mais o efeito de outros tempos. Nem que se conseguirá algum equilíbrio social enquanto persistir o fosso entre o reduzido número dos muito ricos e o altíssimo número dos muito pobres[2]. Enquanto a palavra desigualdade e a expressão direitos humanos estiverem interditadas na arena pública. Idem enquanto se mantiver a continuidade da discriminação sociorracial. Portanto, se a elite não vai admitir, e se, a meu juízo, a solução passa por aí, não há solução à vista.
Quando, há 22 anos, lancei Violência e racismo no Rio de Janeiro, colegas da Academia e da PM condenaram o título, como se eu estivesse cometendo uma heresia. “Nada a ver uma coisa com a outra”; “A discriminação no Brasil é social, e não racial”; “Aqui é todo mundo misturado, quem não tem um pouco de sangue negro?”; “Lá vem você”. Eu não entendia como importantes analistas da violência conseguissem discorrer exaustivamente sobre o tema sem considerar que o Brasil foi palco do mais longo e numeroso escravismo do mundo. Regime que durou quase quatro séculos, atravessando o Brasil Colônia, o Brasil sede do Império português, e o Rio de Janeiro como capital do Império do Brasil; de que o país se tornou independente por obra de Dom Pedro I, filho do rei de Portugal, mas mantendo a escravidão legal; de que o Rio de Janeiro foi a cidade do mundo que recebeu o maior contingente de africanos, ou seja, 2 milhões dos cerca de 5 milhões aportados no Brasil[3]; de que, no censo de 1872, “negros”, “pardos” e “índios” (classificação do primeiro censo brasileiro) representavam quase dois terços da população.
Temos, de fato, problema com a nossa memória, como um pecado que quiséssemos esconder de nós mesmos. Daí a construção de mitos: o mito da escravidão benigna, com o argumento falacioso de que os milhões de africanos feitos escravos nas Américas (em torno de 11 milhões) já o seriam na África; do senhor bondoso e amigo (o senhor malvado seria exceção à regra); do índio não afeito ao trabalho escravo, o que explicaria a preferência pelos negros africanos (sic); da abolição como mero fruto da generosidade do imperador e sua filha, culminando com o mito dos mitos, o da democracia racial, repassado de geração em geração, mormente pelo sistema de ensino, confirmando as observações de Pierre Bourdieu em “Sistemas de ensino e sistemas de pensamento”.
Tudo sem contar as barreiras à educação colocadas no caminho dos ex-escravos e seus descendentes no advento da República, situação que só foi admitida em 1951 com a edição da Lei Afonso Arinos (nº 1390, de 03/07/1951), tornando contravenção penal práticas então aceitas como normais, sendo uma delas a que passou a ser proibida pelo Art.5º: “Recusar inscrição de aluno em estabelecimentos de ensino de qualquer curso ou grau, por preconceito de raça ou de cor”.
Faz sentido, portanto, que, 130 anos depois da Abolição, estudo do Banco Mundial revele: “Alunos brasileiros vão demorar 260 anos para atingir índice de leitura dos países ricos” (g1.globo, 28/02/2018). O problema é que o tempo não volta…
Reconheça-se que dez anos representam um corte temporal pouco significativo, de vez que os problemas objeto das postagens começaram a chamar maior atenção há cerca de 40 anos, com a chegada em escala da cocaína e a consequente disputa entre facções para dominar o lucrativo “mercado” local. As reproduções da primeira página de O Globo e da capa de Veja, acima, antes do Prefácio, dão ideia da magnitude do problema.
Como não podia deixar de ser, ao selecionar as postagens para compor o livro deparei-me com verdadeira colcha de retalhos, o que demandou enorme esforço para conseguir alguma unidade. Tarefa inacabada, como notará o leitor. Constatei, ademais, que minha crônica da crônica era afetada por uma visão entre pessimista e esperançosa, mais pessimista do que esperançosa, fruto, talvez, da minha identidade social e da afiliação à chamada criminologia crítica[4]. Os temas são abordados com olhos voltados para o subtexto dos discursos dominantes.
Nas conversas sobre a insegurança e o medo do crime, nota-se que cada pessoa tem a sua solução. A segurança pública, um bem difuso, indivisível e inespecificável (diferentemente dos bens saúde e educação, por exemplo), deixa de ser questão social complexa e vira problema de polícia. Em programas sensacionalistas da TV, apresentadores há que culminam seus comentários de forma fatalista. Depois de exibirem algum caso escabroso, perguntam ao telespectador: “O que fazer com um sujeito desses?”, claro incentivo à matança que se processa entre nós.
Um pecadilho. Embora tenha me esforçado para não ser corporativo e parcial, não havia como esconder o PM que está em mim. O leitor dará o desconto.
Foram deixadas de fora postagens com implicações político-partidárias ou que tenham ultrapassado em muito os limites da razão. São reproduzidas na íntegra, submetidas apenas a correções devidas à revisão. Não estão em ordem cronológica.
Como foram escritas em diferentes momentos ao longo de dez anos, em várias delas há repetição de fatos, conceitos, ideias e enunciados. Não foi possível evitar.
Importante, na leitura das postagens, que se leve em conta que os seus títulos eram autoexplicativos no momento da publicação.
No blog, várias menções a autores foram feitas de memória, sem especificação da editora e da data, razão pela qual não aparecem nas Referências Bibliográficas. Mais: alguma sustentação teórica do texto está contida principalmente no Prólogo e na abertura dos capítulos.
O texto está dividido em nove capítulos, distribuídos em duas partes: Parte I: Condicionantes Socio-Histórico-Culturais; Parte II: Pacificação. “Si Vis Pacem, Para Bellum”.
[1] Segundo o Atlas da Violência de 2019 (ATLAS, 2019), morreram assassinadas no Brasil 65.612 pessoas em 2017, número 30 vezes maior do que o da Europa.
[2] Em 2017, o país tinha 54,8 milhões de pessoas vivendo com menos de R$ 406,00 por mês. Em “extrema pobreza”, 13,5 milhões de pessoas. (Cf. dados da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, 2018): (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/23299-pobreza-aumenta-e-atinge-54-8-milhoes-de-pessoas-em-2017)
[3] Cf. Tráfico Transatlântico de Escravos – Banco de Dados Viagens. Emory University, 2013. Foram transplantados para as Américas cerca de 11 milhões. http://slavevoyages.org/assessment/estimates
[4] DA SILVA, Jorge. Criminologia crítica: Segurança e polícia. Rio de Janeiro: Forense / Gen, 2ª Ed. 2008.