Desde que assumiu a coordenação do Grupo Executivo de Controle Externo da Atividade Policial (Cecap), do Ministério Público Estadual do Espírito Santo, o promotor de Justiça Jean Claude de Oliveira observou uma curiosidade: muitas das denúncias contra policiais civis e militares são feitas por próprios integrantes das duas instituições.
O Gecap foi criado em outubro do ano passado e no dia 8 de junho deste ano o Ministério Público passou a disponibilizar em sua página oficial na internet um link do grupo, para que a população entenda o que é o Gecap e possa fazer denúncias, mesmo que de forma anônima.
Desde o início da publicidade do link do Gecap na internet, o grupo já abriu 35 procedimentos contra policiais civis e militares, em sua maioria. São denúncias de tortura, invasão de domicílio e desvio de função, conduta e de bens públicos. Contra agentes penitenciários, há denúncias de excesso contra presidiários.
O promotor Jean Claude de Oliveira explica que o Gecap se preocupa com qualquer tipo de desvio que ocorra dentro dos órgãos de segurança pública, como as polícias Civil e Militar, Guardas Municipais (incluindo agentes de trânsito) e agentes penitenciários.
“Investigamos e pedimos a abertura de processo contra qualquer tipo de desvio nas instituições policiais, seja desvio de função, conduta e material. Quando ocorre qualquer desvio dentro de uma instituição policial, o prejuízo é sempre da população”, explica o promotor de Justiça.
“Não vou me meter dentro das polícias, desde que o desvio não interfira na atividade fim policial”, prossegue Jean Claude de Oliveira. “O papel do Ministério Público não é somente o de denunciar mau comportamento; nosso papel é pedagógico e temos a função de zelar pela imagem das instituições”.
O que para muitos seria simples, o desvio de função em órgãos públicos também é considerado um delito. Tanto que o ex-chefe de Polícia Civil, delegado Júlio César de Oliveira, responde a processos por ter nomeado delegados de terceira em cargos que deveriam ser ocupados por delegados especiais.
O Gecap recebe denúncias por intermédio de emails, telefonemas, cartas e pessoalmente. Quando a queixa chega ao Grupo, o promotor de Justiça Jean Claude de Oliveira e sua equipe fazem abertura de um procedimento: instrução para investigação e depois encaminham à Promotoria de Justiça competente.
E também requisitam a abertura de um processo administrativo ao órgão policial ao qual o denunciante está vinculado, caso esse procedimento não tenha sido ainda instaurado.
Várias denúncias chegam diariamente ao Gecap. Algumas – num ambiente onde se imagina que seus atores sejam altamente profissionais e policiais dedicados – se tornam até difícil de acreditar que ainda ocorram no Espírito Santo.
Recentemente, um delegado de Polícia Civil, que estava de plantão no Departamento de Polícia Judiciária (DPJ) de Vila Velha, se recusou a lavrar um auto de flagrante de um suspeito que acabara de ser detido pela Polícia Militar porque tinha que ir para casa levar o carro para sua esposa.
Os policiais militares prenderam um suspeito em Vila Velha e chegaram com ele ao DPJ por volta das 7 horas da manhã. O delegado disse que não receberia o acusado porque teria que chegar em casa até as 8h30 para entregar seu carro particular a sua esposa.
Os PMs tiveram que ir embora com o suspeito até encontrar uma delegacia onde o delegado pudesse autuá-lo em flagrante. O plantão do delegado que se recusou a fazer o flagrante do DPJ terminaria às 8 horas, quando seu substituto chegaria para assumir o posto.
Os PMs já tinham passado toda a noite trabalhando – o plantão deles já havia se encerrado às 7 horas – e não foram para casa enquanto não conseguiram entregar o suspeito à Polícia Civil.
“A criação do Gecap está provocando um efeito positivo na sociedade. Além da população, estamos sendo procurados também pela própria polícia”, disse Jean Claude de Oliveira, que faz uma leitura bastante crítica do modelo de gestão da polícia brasileira:
“O modelo caquético administrativo da polícia privilegia muitas vezes o pessoal em detrimento do público. Nós estamos aqui para sermos servidores públicos e não nos servirmos do que é público”.
Ao falar do desvio de conduta por parte de policiais, o promotor de Justiça lembra de um outro procedimento que ele mandou instaurar contra policiais civis da Delegacia de São Torquato, também em Vila Velha.
Em maio deste ano, os policiais, sem mandado de busca e apreensão, teriam invadido a casa de uma empregada doméstica e a levaram, junto com um de seus irmãos, para a delegacia, onde ficaram detidos, ilegalmente, por mais de seis horas.
O motivo é que, para satisfazer um empresário do bairro, os policiais acabaram praticando crimes, como o de seqüestro e tortura psicológica. O empresário, por ser amigo dos policiais, foi à delegacia registrar uma falsa queixa contra a mulher, que era sua empregada doméstica, dizendo que ela teria roubado R$ 42 mil da residência.
O empresário pediu ajuda dos policiais civis da DP de São Torquato para que forçassem a mulher e o irmão dela a confessar que haviam roubado o dinheiro. Mais tarde, se constatou que o empresário não teve dinheiro nenhum roubado. Apenas quis demitir a empregada sem lhe pagar indenização, pois ela trabalhou na casa durante vários anos sem carteira assinada.
“O delegado alega que não estava na delegacia na hora desse acontecimento, mas já abri procedimento e nesta semana chamarei o empresário, que acusou a empregada, para depor no Gecap”, diz Jean Claude de Oliveira.
O coordenador do Gecap é contra a presença da Polícia Militar realizando o cumprimento de busca e apreensão.
“Mandado de busca e apreensão tem que se feito pela Polícia Judiciária, que são as polícias Civil e Federal. A PM pode cumprir mandado de busca e apreensão, mas somente através de sua Corregedoria e quando for contra policiais militares”, explicou o promotor de Justiça.
A fiscalização exercida pelo Gecap sobre as policias tem o caráter pedagógico, segundo o promotor de Justiça Jean Claude de Oliveira. Entretanto, é bom que os policiais fiquem atentos: até a maneira que eles tratam os cidadãos – às vezes, de forma discriminatória, preconceituosa e mal educada – está sendo vigiada pelos promotores de Justiça e, o mais importante, denunciada pela população:
“Queremos que o pobre seja bem tratado pela polícia, seja na rua, em unidades militares ou em distritos da Polícia Civil. O pobre não é tratado bem em lugar nenhum”, desabafa Jean Claude de Oliveira, que faz um pedido:
“Gostaria que moradores de bairros nobres, como Praia do Canto, Mata da Praia, Ilha do Boi, Ilha do Frade, Praia da Costa e Itapoã, tivessem por parte da polícia o mesmo tratamento que é dado aos moradores da periferia”.
Jean Claude de Oliveira concorda, no entanto, que as polícias Civil e Militar do Espírito Santo estão passando por um processo de profissionalização. Segundo ele, essa profissionalização começa na base, em que jovens soldados e investigadores, que entraram nas instituições por intermédio de concursos, possuem cursos superiores em sua maioria, pós graduação e até mestrado.
O coordenador Jean Claude de Oliveira entende também que a prisão de quatro delegados da Polícia Civil está provocando efeitos pedagógicos na instituição. O papel do Gecap, segundo Jean Claude, não tem apenas o caráter fiscalizador.
“Nosso papel é também o de buscar a valorização dos policiais. Sinto que nossas instituições têm excelentes profissionais”, afirma o promotor de Justiça, que na semana que passou se reuniu com o chefe de Polícia Civil, delegado Joel Lyrio Júnior, e com toda a cúpula da instituição justamente para buscar formas de valorização dos policiais.
“O próprio doutor Joel Lyrio e os delegados que formam a cúpula da Polícia Civil são profissionais altamente sérios e competentes”, elogia Jean Claude.
“Temos que fiscalizar, cobrar e também apontar soluções. Se um juiz não pode atrasar um processo, um delegado de polícia também tem que dar conta do seu trabalho”, diz Jean Claude de Oliveira, que, aos 46 anos de idade, é incansável e ligado sempre no trabalho. Há quatro anos, o promotor de Justiça teve um enfarto durante audiência. Nem por isso, parou de trabalhar.
O coordenador do Gecap já está procurando meios para ajudar as polícias. Ele fará, em breve, um levantamento de todas as instalações das polícias Civil e Militar, para checar as condições de trabalho dos policiais, os número de viaturas, telefones, computadores e as condições insalubres a que são submetidos delegados, escrivões, investigadores, agentes de polícia e policiais militares – do praça aos oficiais.
“Vamos fazer um levantamento do número de policiais, unidades militares e de delegacias. A finalidade do estudo é ajudar a melhorar no resultado final da atividade policial”, diz Jean Claude de Oliveira, que volta, porém, a comentar à atual situação das polícias hoje no Espírito Santo:
“A tortura e o abuso praticados por policiais ainda são muito grandes no Espírito Santo. Hoje, infelizmente, a pessoa olha para o policial com medo e desconfiança. O policial não pode jamais tratar o cidadão de bem como trata os bandidos. Os bandidos devem ser tratados com o rigor da lei. O policial deve responder bem às provocações feitas por bandidos, porque ele (policial) representa o Estado. Bandido bom é bandido preso; dentro, é claro, da legalidade; da lei O cidadão de bem na rua ou em casa tem que ser tratado com educação’’.