Dentro dos quadros da Polícia Militar do Espírito Santo há policiais acusados – e também condenados – da prática de homicídio, tráfico de drogas, corrupção, estupro e até por promover orgias sexuais com alunas dentro da Academia de Polícia – estes últimos, então, são endeusados por seus chefes civis. Os militares acusados de crimes fazem parte de um número bem pequeno, é claro, em comparação ao afetivo da corporação. Jamais, porém, um deles foi exposto publicamente, mesmo tendo cometido os mais bárbaros dos delitos.
O tenente-coronel José Dirceu Pereira foi, em outubro do ano passado, acusado de “entregar a um agente da autoridade de trânsito documentos de habilitação e do veículo” e de se “retirar do local veículo legalmente retido para regularização sem permissão da autoridade competente ou agente da autoridade de trânsito”.
Com o tenente-coronel Dirceu, entretanto, o corregedor geral da Polícia Militar, coronel Ilton Borges, não teve o mesmo zelo. Deu entrevistas a canais de televisão e a jornais expondo publicamente um oficial de alta patente e anunciando punição, mesmo antes de publicar no Boletim Reservado do Comando Geral da PM – punições a oficiais ainda são para boletins reservados no Espírito Santo. Mais um erro do corregedor da PM.
Conforme este Blog informou desde o início do episódio, o tenente-coronel Dirceu não respondeu a Inquérito Policial Militar por dar “carteirada” em outros policiais. Este crime nunca existiu; existiu somente na imaginação de boa parte da imprensa e de alguns praças mais afoitos em ver um oficial ser punido.
Por isso, ao se submeter a uma entrevista coletiva para a imprensa, o corregedor Ilton Borges – que não é obrigado a se submeter a tal decisão – anunciou que o oficial Dirceu – que jamais respondeu a uma sindicância na PM e sempre teve a ficha limpa – está sendo indiciado para responder a outros dois procedimentos: um por infração penal militar e outra por infração disciplinar.
“Foi avaliada a conduta do tenente-coronel durante a abordagem. Nesta avaliação foi verificado que ele cometeu três erros disciplinares. Além da resistência ao ser submetido aos procedimentos policiais de abordagem, o coronel Dirceu ainda usou linguajar inadequado ao se dirigir a militares de patente inferior. Mas, para nós, a conduta mais grave foi o fato dele ter abandonado o local de abordagem sem autorização. Esta atitude frustrou a abordagem policial”, declarou Ilton Borges à imprensa.
O caso vai para o Ministério Público Militar que poderá ou não oferecer denúncia contra o tenente-coronel José Dirceu Pereira na Vara da Auditoria da Justiça Militar. Se a Justiça acolher a denúncia, o oficial passa a ser réu. Outro procedimento será interno, em que Dirceu responderá a um procedimento por suposta prática de indisciplina. Segundo a Corregedoria, dentro de 40 dias ele deve receber uma punição corretiva, que se aplica desde uma advertência até uma detenção de 20 dias.
Além do tenente-coronel Dirceu, outros três policiais militares responderão por processos administrativos disciplinares. Um deles, um policial que deveria estar no local da abordagem, vai responder também por infração penal militar. Entre os policiais estão um sargentos e dois soldados. Um deles, inclusive, filmou toda a abordagem ao coronel Dirceu e repassou para os canais de TV.
No dia 24 de novembro do ano passado, o mesmo corregedor geral da PM, coronel Ilton Borges, deu entrevista ao Blog do Elimar Côrtes em que falou da importância do Boletim Reservado para as instituições Policiais Militares. Só que agora ele parece ter esquecido a própria lição que tentou ensinar. Com isso, acaba desmoralizando um oficial de alta patente e desmoralizando o Boletim Reservado, que, de fato, já deveria ter deixado de ser reservado. Transparência é tudo de bom, mas sem covardia com um oficial ou praça.
Pelo que o leitor vai observar das palavras do corregedor Ilton Borges reproduzidas abaixo, fica um questionamento: ao expor injustamente o tenente-coronel Dirceu, Ilton Borges está cometendo excesso de zelo ou sendo submisso a pressões externas?
Esse mesmo “zelo” ou “submissão a pressões externas”, o corregedor deveria ter tido há cerca de três semanas, quando o Comando Geral da PM publicou em seu Boletim a expulsão de um capitão, condenado pela Justiça Militar por roubo de combustível da própria corporação. Ou deveria ter convocado a imprensa para anunciar que um certo capitão está sendo submetido ao Conselho de Justificação pela prática de outros crimes. Ninguém (muito menos um coronel da Polícia Militar) é obrigado a atender ordem superior para dar entrevista. Nem jogador de futebol atende ordens desse tipo de seus dirigentes de clube. Dão entrevista quando querem.
Espera-se, no mínimo, uma posição da Associação dos Oficiais da PM e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Espírito Santo (Assomes).
Principais tópicos da entrevista do corregedor Ilton Borges:
Blog do Elimar Côrtes – Qual a necessidade da existência de um boletim reservado?
Coronel Ilton Borges – O Boletim Interno e o Boletim Reservado são publicações que integram as atividades administrativas das forças militares, destinada a levar ao conhecimento do público interno alguns assuntos relevantes, de natureza administrativa, voltados para instrução, envolvendo assuntos de Justiça e Disciplina, além de outros.
Os dois boletins não são endereçados ao público externo, ou seja, em ambos há certa restrição na sua publicidade, conforme pode ser observado nos procedimentos de acesso, segundo o qual cada policial militar possui senha individual. O Boletim Reservado se caracteriza por uma restrição ainda maior, e essa distinção tem a ver com a matéria versada, ou seja, assuntos relacionados ao controle de armamentos da Fazenda e particulares dos policiais militares; de equipamentos; e a punição de policiais que, pela função que exercem na instituição; casos também em que a publicação atinja a intimidade do policial, também podem ser objeto de publicação restrita.
– Por que as sanções disciplinares dos oficiais são publicadas em Boletim Reservado?
– Para que haja respeito a dois princípios básicos da instituição: a hierarquia e a disciplina. A hierarquia e a disciplina são as responsáveis pela organização de todas as instituições militares (Forças Armadas e Forças Auxiliares), estruturando e articulando a sequência e a ordenação de postos e graduações, e nada tem a ver com as pessoas físicas neles investidas. Trata-se, assim, de uma projeção do princípio da impessoalidade, que deve presidir toda e qualquer atuação da administração pública.
Seus fundamentos podem ser conferidos na Constituição Federal e nas legislações infraconstitucionais. Não deve ser interpretadas como privilégios, mas sim como garantias afetas ao cargo, garantindo o mínimo de condições para que o superior hierárquico responsável pela condução do trabalho de um contingente de homens e mulheres tenha o mínimo de condições de prosseguir na tarefa de comandar.
A pessoa do servidor público (em sentido amplo) que eventualmente incorrer em ato ilícito deverá, respeitado o devido processo legal, ser sancionada, mas o próprio ordenamento jurídico prevê hipóteses em que a relevância do cargo deve ser levada em conta no momento da exteriorização do ato. Disso decorre que, no extremo, ele (servidor) poderá ser sancionado e até mesmo removido do seu cargo público, contudo tal apenamento não pode vulnerar senão a pessoa do transgressor, mantendo-se incólumes a Instituição e o Cargo, no caso, o posto do oficial.
A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu Art. 22, XXI, que compete privativamente à União legislar sobre “normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares”.
Essas “garantias” a que se refere o dispositivo anterior são instituídas para a preservação de valores imanentes à democracia, dentre eles a hierarquia e a disciplina militares que, por força do aludido mandamento constitucional, devem ser nacional e uniformemente observados pelas Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, estando, portanto, fora do alcance das possibilidades do legislador estadual. Por isso mesmo é que se trata de competência legislativa privativa da União, e não de competência concorrente da União e dos Estados membros.
A Constituição Federal estabelece também, em seu artigo 42, que os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios; e o artigo. 144, § 6º, prevê que as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares são forças auxiliares e reserva do Exército.
Não é por outro motivo que as normas das corporações militares guardam entre si bastante similaridade, pois refletem aspectos comuns a essas instituições, e nesse contexto inserem-se as normas de publicidade restrita das sanções aplicadas aos oficiais, pois se trata de norma uniforme, aplicada indistintamente nas Forças Armadas e nas Forças Auxiliares.
Embora muitas vezes seja difícil indagar sobre as razões de fato que levam à edição de uma norma, ao que parece a previsão uniformemente estabelecida de publicidade restrita leva em conta a relevância do cargo desempenhado dentro da estrutura militar e o risco à própria hierarquia e disciplina que representaria a publicidade de uma sanção aplicada a alguém que de um lado exerce poder disciplinar, mas que, de outro, pode ser objeto de sanção disciplinar. É dizer: o oficial que pratica uma transgressão pode e deve ser objeto de aplicação de sanção disciplinar, mas até que ponto a publicidade geral dessa sanção contribui para a melhoria das instituições militares?
Além disso, outro aspecto inescapável corresponde ao fato de que à medida que se ascende na pirâmide hierárquica, mais se confunde o cargo com a pessoa que o ocupa, mais exposto fica o indivíduo.