O presente artigo, de autoria do major Sandro Roberto Campos,
chefe da Divisão de Mobilização Comunitária e Integração Institucional da
Diretoria de Direitos Humanos e Polícia Comunitária da Polícia Militar do
Estado do Espírito Santo, tem como objetivo ressaltar que, muito embora
a intersetorialidade e a interdisciplinaridade estejam em voga em vários
discursos no meio acadêmico e poder público no sentido da promoção de mudanças
efetivas numa visão mais abrangente de abordagem, há elementos personalistas
que podem inviabilizar e inutilizar completamente todos os trabalhos
desenvolvidos, por mais que sejam grandiosos em suas respectivas importâncias.
intersetorialidade: “duelos ou diálogos”?
história:
com sua família em uma autoestrada. À medida que vai percorrendo seu trajeto,
cada vez mais você aumenta a velocidade, chegando ao máximo que o velocímetro
de seu veículo permite. Neste sentido, uma pergunta se faz: o que devo fazer
para me manter em segurança junto a minha família na estrada? É óbvio, reduzir
a velocidade. Mas não, afundo meu pé cada vez mais nas minhas vaidades,
arrogâncias, consumismos, disputas, duelos, embriagues e entorpecimentos em
torno de futilidades. Por óbvio, o veículo sai da estrada, capota e algumas
pessoas são lançadas para fora. Após todos esses movimentos caóticos, o veículo
para totalmente. Em seu interior há pessoas mortas e com graves sequelas e você
“sem nenhum arranhão”. Não, você não está ileso, seus entes queridos morreram
ou estão em severo sofrimento, no mínimo sua consciência está despedaçada. Quando geralmente conversamos com
pessoas que hoje estão paralisadas em função de alguma atitude que as levou a
esta condição, ou ingestão de bebidas alcoólicas ou qualquer outra imprudência
ou negligência, tais pessoas dariam suas vidas a retornarem exatamente ao ponto
anterior visando evitar tudo que passaram. Suas consciências estão
elevadíssimas nesta condição atual. Daí toda a ironia que nos circunda
diariamente, como sabedorias de cabeceira, se resume numa só questão: por que
devo alcançar altíssimas consciências somente após estar com graves sequelas?
Tentaremos numa complexa sinfonia de conceitos bem primários abarcar a temática
lastreando uma visão prática mesclada aos necessários interesses sociais.
sociedade e o poder público no sentido de avançarem em prol da coletividade em
busca de soluções que não estejam fragmentadas e abarquem o máximo possível de
alcance social.
Programas, projetos e ações são desenvolvidos, muitas vezes, a partir de uma
fagulha que sai de um sistema que há anos padece em enfermidades crônicas e
complexas. Em suma, basta um ato de gravidade para que as pessoas busquem
saídas simples para altíssimos muros construídos através da história de impunidade
e de uma atmosfera permissiva com difícil abordagem.
por mais evoluídos, sofisticados e grandiosos que sejam, esbarram num fator
primordial em suas concepções: as vaidades.
Antes de abordá-las, vale destacar os ensinamentos de Marilene Maia acerca do
conceito de gestão social:
conjunto de processos sociais com potencial viabilizador do desenvolvimento
societário emancipatório e transformador. É fundada nos valores, práticas e
formação da democracia e da cidadania, em vista do enfrentamento às expressões
da questão social, da garantia dos direitos humanos universais e da afirmação
dos interesses e espaços públicos como padrões de uma nova civilidade (MAIA,
2005, p. 78 ).
alcance da transformação e desenvolvimento emancipatórios passa por um conjunto
de processos sociais associadas ao exercício da democracia e cidadania. Neste sentido, vale destacar que diferentes
atores e em setores diversos devem trabalhar integrados visando o alcance para este fim, entrando em cena a
terminologia “intersetorialidade”, muito bem-conceituada conforme abaixo:
considerar a intersetorialidade como um modelo de gestão de políticas públicas
que se baseia basicamente na contratualização de relações entre diferentes
setores, em que responsabilidades, metas e recursos são compartilhados, compatibilizando
uma relação de respeito à autonomia de cada setor, mas também de
interdependência (COELHO, 2009 apud FRANÇA et al, ).
alteridade são terminologias que podem se depreender do conceito acima
destacado. As instituições dependem umas das outras e todas reunidas se
constituem no que a sociedade tem de melhor para sua sobrevivência e proteção,
muito embora, como nos ensina José Renato Nalini, “há um abismo entre o mundo
real e o que pregam as leis no Brasil”.
cenário onde se dará todas essas atividades intersetoriais se constitui em
redes. Neste sentido, vale destacar o seu contexto:
perfazendo a ação intersetorial, as redes de base local e/ou regional, reclamam
por valorização e qualificação na interconexão de agentes, serviços,
organizações governamentais e não governamentais, movimentos sociais e
comunidades. Intervir em rede, na atualidade, requer que se estabeleçam, entre
as diversas instituições de defesa de direitos e prestadoras de serviços, vínculos horizontais de interdependência
e de complementaridade (COMERLATT, 2007, p. 269). (Grifo nosso)
comunicação não verticalizada entre as Instituições envolvidas, mas, na
prática, ou no mundo real, não é assim que funciona.
transpor um dos mais graves problemas da sociedade brasileira: a questão do
consumo de crack e a consequente degradação social.
uma das maiores do planeta e situada na região da Luz, o Estado está muito
presente naquele sombrio espaço, porém, ressaltou: mas como está? Altamente
fragmentado e com o poder público em constantes e intermináveis disputas de
poder, conforme se evidencia abaixo:
por modelo de tratamento e intervenção que envolve tanto brigas internas às
entidades públicas e privadas de atendimento a usuários de drogas quanto forças
externas que questionam a eficácia de sua atuação. Medicina, justiça, polícia e
assistência social, ao serem colocadas em contato, brigam e concorrem entre si pelo melhor modo de lidar com a
questão. Para ser tratado, o abuso de drogas não necessariamente exige a
reclusão. Essa era a posição do médico que acabou sendo afastado do cargo, bem
como dos profissionais dos Caps, que se juntaram a ele para “denunciarem” a
pressão da prefeitura por internação. (RUY, 2012, p. 344)
poder público e sua fragmentação por algo tão “simples”: uma questão de
audições e entendimentos mútuos. Mais além, a mesma autora conclui: “Embates
habituais que nos indicam que o Estado, na sua ponta, ou visto a partir de suas
margens, é algo bem mais complicado”.
Certamente os três termos nos remete, no mínimo a uma interessante reflexão
denominada “efeito babel”:
efeito guarda referência ao episódio bíblico de quando os homens inventaram uma
empresa muito ousada, construir uma torre que os conduzisse ao paraíso e, ao
meio do empreendimento, foram castigados com a impossibilidade de comunicar-se
entre si devido ao súbito aparecimento de inúmeros idiomas. O “efeito
torre de Babel” resulta da confusão
epistemológica e operacional que a aplicação de alguns conceitos muito
abrangentes pode provocar. Totalidade, integralidade, holismo,
interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade, todas são noções que pretendem
representar o todo, indicam formas para absorver cada pedaço no todo. Em
decorrência, e com grande freqüência, esquemas teóricos que as empregam tendem a desqualificar qualquer
abordagem ou qualquer recorte que ouse falar de apenas um pedaço das coisas.
(Grifo nosso) (CAMPOS, 2007)
apareça implícita em meio à carruagem de termos adjacentes, o problema de
comunicação se faz latente e a desqualificação de qualquer abordagem permanece
imersa a algum recorte que predomine por intermédio de disputas de poder, verticalizações
de comunicações (“o manda quem pode e obedece quem tem juízo”),
descontinuidades, ações efêmeras e pirotécnicas.
temática deste artigo, emergem as vaidades.
Procurando alçar seu componente em meio ao mundo acadêmico, significa: “[…] a preocupação (e a percepção) com aparência e
com conquistas”. Durvasula, Lysonski e Watson (2001)
alegria de sentir-se superior aos outros e a infelicidade de sentir-se inferior
aos outros”. (FAN, 2014)
problemas contemporâneos que a sociedade hoje padece é a seguinte: em qual
medida este “termo” pode acarretar problemas e prejuízos à intersetorialidade?
em função desta única palavra (vaidade e suas associações). Isso nos leva a
crer que antes de qualquer faraônico empreendimento, se faz necessário que nos
entendamos minimamente e que possamos estabelecer vínculos, confiança e
segurança necessários visando à consolidação de construções adequadas e
duradouras.
do processo binomial (diálogo e duelo) pode ser evidenciada abaixo:
identidade profissional, assim como todas as outras formas de identidade, se
configura na alteridade, ou
seja, no contraponto com o outro: definimos
o que somos no confronto com o que não somos. Por essa via, vão sendo
delimitados saberes, competências, requisitos e atividades específicos de cada
área, num tipo de especialização que a distingue, cada vez mais claramente, das
outras. Entretanto, ao que parece, essa necessária delimitação de espaços de
atuação específicos a cada setor profissional tende a enrijecer fronteiras
disciplinares e a fazer reserva de mercado, ou seja, busca-se garantias de que
os que não têm a chancela oficial do saber-fazer de determinado setor sejam
formalmente impedidos de realizar atividades que são próprias dele. Nesse
sentido, passamos a acreditar que podemos fazer, profissionalmente, somente o
que nos foi outorgado fazer; que somos, profissionalmente, o que outros não são
e que para mantermos nossa identidade no mercado de trabalho temos que ser
detentores exclusivos de um determinado saber. Aí residem, possivelmente,
algumas das razões para os constantes duelos entre profissionais […].
(SHOPENHOUER)
rumos e destacar a necessidade de que o ser humano deve sair de sua retórica
conceitual para o pragmatismo cotidiano. Conforme citação acima, apenas no
confronto delineamos nossa identidade, mas, desrespeitosamente?
desqualificadoramente?
declarando o Brasil incurso em um ‘regime democrático de direitos’, de fato e
de direito há democracia?
longe de atingir a plenitude da democracia, mesmo nos organismos ditos democráticos,
muito ainda há de ser alcançado e evoluído, muito embora pequenas conquistas
gradualmente foram e vão sendo implantadas.
poder público para a promoção de soluções, conforme cristalinamente restou
evidenciado, ainda há de se atingir a intersetorialidade.
percepção que muitas vezes se tem é de que o poder público, não raras vezes, se
vê de olhos abertos, mas em sono profundo e distante das soluções almejadas e
necessárias para a sociedade, evidenciando-se a necessária migração do
“trabalhar para” ao “trabalhar com”. Ao final, todos juntos regressam ao
“trabalhar para” a sociedade como um todo, mas despreocupados em chamas que se
acendam mais que dos outros.
razoabilidade e eficiência que demandam do poder público, ações que possam
inferir diretamente na qualidade de vida da população. Esses termos viajam em
meio à difícil tarefa encrustada em qualquer projeto de ‘governo’ ou a
interesses e vaidades que em nada irão agregar valor, pelo contrário, promovem
o duelo enquanto os problemas sociais se perpetuam e ganham contornos cada vez
mais oblíquos, difusos e de difíceis soluções.
projeto ou ação possa auferir resultados satisfatórios, necessariamente, temos
todos o dever de nos despirmos de disputas intra e interinstitucionais,
vaidades e duelos que, certamente nos conduzirão à nossa falência enquanto
seres humanos. Empatia e alteridade são fundamentais para que a
intersetorialidade e a interdisplinaridade sejam, na prática, verdadeiramente
alcançadas.
CAMPOS, Gastão Wagner de Souza. Efeito torre de babel: entre o
núcleo e o campo de conhecimentos e de gestão das práticas: entre a identidade
cristalizada e a mega-fusão pós-moderna. Ciênc. saúde
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Estratégias para vencer qualquer debate. A arte de ter razão. Faro
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