Com Dominique de Guzmám, nos primórdios do século XII, foi criada a Inquisição. Tempos depois todos os que discordavam das posições da Igreja Católica se tornavam hereges e contra si recebiam as mais duras penas, inclusive a de ser constantemente difamado pelos séculos.
Houve até uma bula, chamada de ‘ad extirpanda”, para calar os que não comungavam com os ensinos religiosos majoritários à época.
Bernard Gui – muito bem retratado no livro “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco – foi o mais célebre Inquisidor. Ninguém escapava da sua fúria, principalmente os que persistiam em manter a fé original, não se dobrando às ameaças.
Hoje no Espírito Santo vive-se um momento em que, como nos tempos de outrora, qualquer um pode ser transformado, da noite para o dia, em associado do crime organizado.
Talvez esteja aí a fortaleza do atual secretário de Estado da Segurança Pública e Defesa Social, o delegado federal Rodney Miranda.
Esta semana o jornal O Estado de São Paulo publicou reportagem em seu site em que Rodney Miranda diz que veio para o Espírito Santo por ser isento e não estar ligado as facções políticas. Ainda antes de perder o cargo – por conta do grampo ilegal feito contra Rede Gazeta de Comunicação – e depois retornar ao Estado, Rodney já havia quebrado essa premissa, tornando-se partidário da mesma sigla do senador José Sarney – o PMDB –, aquele que disse ter combatido.
Agora com a sua filiação ao DEM, tornou-se partidário da filha de Sarney, a governadora Roseana – que ele, Rodney, como delegado federal, investigou e apreendeu dólares na casa do então marido da governadora maranhense. Posteriormente, a Justiça Federal mandou devolver o dinheiro ao seu dono.
Contradições que mostram que segurança pública e política partidária acabam sendo um explosivo coquetel que ameaça explodir nos quartéis da Polícia Militar, onde a revolta contra o secretário já ganhou destaque na mídia nacional e só faz aumentar agora com campanha publicitária exposta nos outdoors das cidades da Região Metropolitana e do interior.
O episódio da prisão de Walace Gonçalves, 33 anos, que confessou ter matado com tiros de revólver calibre 38 o acusado de assassinatos José Maurício Cabral – compadre do coronel da reserva Walter Gomes Ferreira – é um exemplo típico da paranóia que atingiu nossas autoridades, que insistem com a tese do denuncismo.
José Maurício era réu no processo do assassinato do fazendeiro e empresário Antônio Costa Neto junto com o coronel Ferreira e mais três pessoas. O crime ocorreu em Colatina, onde aconteceria o julgamento há uma semana.
O corpo de José Maurício, segundo a Polícia Civil, foi localizado na zona rural de Colatina na terça-feira passada (17/11), e levado, sem identificação, para o Instituto Médico Legal (IML) do município.
Na quinta-feira (19/11), o corpo foi identificado por familiares de José Maurício. Na sexta-feira (20/11), o secretário da Segurança, Rodney Miranda, convocou a imprensa para uma coletiva, em que, sem citar o nome de Walace, disse que o assassino de José Maurício era também um pistoleiro de Pancas que já estava identificado e com a prisão decretada.
Disse que assassinato seria queima de arquivo, porque José Maurício estava disposto a ajudar o Ministério Público incriminar Ferreira. Por isso, a morte de José Maurício tinha ligação com o assassinato de Costa Neto. Até então, Rodney Miranda disse que Ferreira, “por enquanto”, não era suspeito de mandar matar José Maurício. E nem precisava dizer o contrário, porque as demais declarações do secretário – amplamente prestigiadas por toda a imprensa – já tinham feito seus estragos.
Até o governador Paulo Hartung, tão comedido nesse tipo de situação, abriu o verbo, dizendo: “A onça está ferida, mas não está morta”, numa alusão a ações supostamente praticadas por integrantes do que as autoridades acham de crime organizado. Hartung, é claro, foi induzido ao erro.
Na terça-feira última (24/11), o juiz da 1ª Vara Criminal de Colatina, Carlos Alexandre Gutmann, tomou a corajosa – não estamos dizendo que tenha sido acertada – decisão de soltar Walace, por entender que não havia mais base legal para manter a prisão preventiva do acusado, uma vez que ele se apresentou espontaneamente à Justiça, confessou o crime, não tinha passagens anteriores pela polícia e estava colaborando efetivamente com as investigações da Polícia Civil.
Ao atender a imprensa para explicar sua posição, o juiz foi corajoso ao declarar, com base nas investigações da Delegacia de Crimes contra a Vida de Colatina, que a morte de José Maurício não tem ligação com o assassinato do fazendeiro Costa Neto. O motivo, segundo a Polícia Civil, seria por conta de uma dívida que José Maurício teria com Walace.
Vejam, portanto, como a onda de denuncismo provoca transtorno na vida dos cidadãos. Na mesma sexta-feira passada, o secretário Rodney, na entrevista coletiva, deu a seguinte declaração, publicada na edição de sábado (21/11) de A Tribuna, jornal sério e que está sempre prestigiando o secretário:
“Ele (Rodney se referia a Walace) é da cidade de Pancas, tem passagem pela polícia por homicídios e é ligado ao grupo de pistolagem do falecido Joaquim Barbosa, o Soquinho, padrinho do coronel Ferreira”.
Um secretário de Estado não tem o direito de ir para uma coletiva mal informado. O juiz Carlos Gutmann diz, em seu despacho em que soltou Walace, que o réu não tinha passagens pela polícia.
Combater e denunciar o crime organizado no Espírito Santo ou em qualquer outro estado da União é obrigação de todas as instituições: Polícia, Judiciário, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Imprensa, Igrejas, etc. Não pode ser por denuncismo.
Até porque os índices de criminalidade no Espírito Santo são altíssimos. São altíssimos porque falta, sobretudo, uma política mais alinhada com a sociedade para melhor combater a bandidagem.
Falar que quer acabar com crime organizado sempre foi, é e será discurso de políticos. Crime organizado, na verdade, é a facilidade com que traficantes vendem suas drogas e armas na porta de nossas casas e escolas, nas fachadas de prédios, etc.
Crime organizado é a facilidade com que nossos jovens são assassinados. Crime organizado são os constantes assaltos a residências, comércio, a taxistas, seqüestro-relâmpago, etc.
Crime organizado são aqueles grupos formados por bandidos que roubam nossos carros em plena luz do dia.
(Abre-se um parêntese aqui. Nesta quarta-feira (25/11), este blogueiro, que anda de ônibus como um cidadão comum – porque, por não ser autoridade, não tem motorista particular que vá a sua casa buscá-lo de carrão, pago com nosso dinheiro – ouviu de uma passageira dentro do coletivo da linha Bela Vista x Praia de Santa Helena a seguinte reclamação:
“Recebo quase que diariamente multas de meu carro, que foi roubado há três anos, na avenida Nossa Senhora da Penha (Reta Da Penha), durante um seqüestro relâmpago”.
O que ela diz não entender é porque, apesar de ter dado queixa nas polícias Civil e Militar sobre o roubo do carro, o Detran continua mandando multas para sua casa.
A mulher, por conta própria, investigou e descobriu que a placa de seu carro (que é um Uno) foi clonada em um Escort.
Há alguns anos atrás, um ex-delegado da Polícia Civil – que hoje é delegado federal – clonou a placa do carro de uma servidora pública estadual em sua viatura. Resultado: o carro, dirigido pelo delegado que ficou famoso em todo o Brasil porque elaborou um organograma do que ele chamava de crime organizado capixaba, foi multado 22 vezes e as multas eram cobradas pelo Detran da dona do carro clonado.
E sabem como a servidora descobriu que estava sendo lesada? Foi no pátio da Chefatura de Polícia Civil, quando procurou a polícia para denunciar o esquema das multas indevidas e se surpreendeu ao ver a viatura policial com a mesma numeração e letras de sua placa.
O delegado até hoje responde a processo na 8ª Vara Criminal de Vitória pela acusação de estelionato, pois foi indiciado pela própria Polícia Civil, instituição a qual pertencia. Lá se vão quase 10 anos e, apesar do processo, o cidadão virou delegado federal e não foi julgado até hoje. Fecha parêntese).
Portanto, não adianta usar retórica para denunciar ações do crime organizado. O crime organizado se combate com ações inteligentes; sem denuncismo; sem bravatas.
Crime organizado, voltando a repetir, não se combate com discurso político-eleitoreiro, como se viu no passado, quando políticos capixabas usavam o crime organizado durante campanha eleitoral, mas se aliavam aos seus membros quando eleitos.
Um basta, portanto, aos discursos políticos eleitoreiros. Que venham mais ações e verdadeiras políticas públicas de combate não só ao que as autoridades denominam de crime organizado, mas, sobretudo, aos criminosos que tiram o sono da população no dia-a-dia.