A questão das drogas no mundo não é recente. As sociedades se relacionam com essas substâncias há milênios e seus aspectos se confundem até mesmo com a cultura de cada povo.
No Brasil, a polêmica dicotomia entre drogas lícitas e ilícitas instaura relevantes questionamentos acerca do acesso às drogas por parte da sociedade para fins de uso: teria o indivíduo livre acesso a qualquer droga sem que haja nenhum reflexo à coletividade?
O que devemos elevar enquanto epicentro das discussões é o porte das drogas ilícitas. Vamos rever um dos mais importantes contratos fundamentados na época do Iluminismo, pleno século XVIII, denominado “Contrato ou Pacto Social”, no qual Jean-Jacques Rousseau discorria: “Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser”.
Assim sendo, há aspectos que a conduta individual não deverá prevalecer sob o interesse da coletividade. Neste raciocínio, não se discute aqui a descriminalização do uso de drogas que, nesse contexto, vemos muito mais como um caso de liberdade individual, assistência social e saúde pública. E sim, quanto ao porte ilegal de drogas ilícitas.
São inúmeras as abordagens policiais que resultam em prisões e apreensões de drogas ilícitas pelo Brasil, se constituindo em cenários de verdadeiras guerras de interesses de mercado. Há argumentos que algumas correntes a favor da “legalização do consumo de drogas” evidenciam que com a descriminalização do porte de drogas teríamos uma interrupção da guerra ao tráfico ilícito. Esse contexto soa altamente questionável e há necessidade premente de se lançar mais luzes sob essa questão.
O conceito de “drogas” é estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como sendo: “toda a substância que introduzida no organismo vivo modifica uma ou mais das suas funções”. Neste sentido, essas “modificações” podem impactar seriamente o bem-estar de toda a coletividade que, implicitamente, está afetada.
As drogas ilícitas são aquelas proibidas conforme art. 66 da Lei de Drogas em vigência no Brasil e que estão em conformidade com a Portaria n.º 344, de 12 de maio de 1998 da ANVISA e que aprovou o Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.
A ilicitude quanto ao acesso das drogas se consolida exatamente para o controle da permissividade que está fortemente associada ao uso de drogas lícitas. Como exemplo, Segundo Relatório Mundial sobre drogas de 2012, “a prevalência anual do uso de álcool (…) é de 42 por cento, ou seja, oito vezes maior do que a prevalência anual do uso de drogas ilícitas (5,0%)”. Associemos as propagandas incentivando o uso e o “sucesso” travestido para quem bebe. Acesso irrestrito a “adultos e capazes”, consumo na quantidade que se deseja e porte também liberado. Os percentuais apresentados no relatório são relevantes e nos remete a reflexões no tocante à danosos efeitos caso houvesse olivre acesso a quaisquer drogas.
Este último item (o porte) gera importantíssima reflexão: com o porte liberado para drogas ilícitas, não há tráfico? Ledo engano. Não estamos falando de drogas cujas periculosidades como o crack e a cocaína apresentam, as drogas ilícitas assim o são com a finalidade de limitação de acessos exatamente visando a saúde coletiva e ao bem-estar da sociedade como um todo.
A submissão meramente aberta à livre opção de acesso enseja questionamentos muito relevantes e submetem graves riscos à coletividade. Assim sendo, em avaliação externa ao cenário brasileiro, as Nações Unidas preconizam internacionalmente os objetivos de cada país neste cenário através da Convenção contra o tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas de Viena: “(…) promover a cooperação entre as Partes a fim de que se possa fazer frente, com maior eficiência, aos diversos aspectos do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas que tenham dimensão internacional. No cumprimento das obrigações que tenham sido contraídas em virtude desta Convenção, as Partes adotarão as medidas necessárias, compreendidas as de ordem legislativa e administrativa, de acordo com as disposições fundamentais de seus respectivos ordenamentos jurídicos internos”.
Em atividade recente, o Supremo Tribunal Federal encontra-se debatendo essa questão, e, em matéria publicada pelo portal G1 de dezenove de setembro deste ano, o ministro Gilmar Mendes votou a favor da descriminalização, asseverando que: “manteve pela manutenção das atuais punições a quem é flagrado com drogas – advertência, prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a curso educativo – mas tiraria delas o caráter penal. Na prática, isso eliminaria registros de maus antecedentes para a pessoa, e o ato seria considerado uma infração administrativa, como uma multa de trânsito, por exemplo”.
Mais além, o ministro ainda “não estipulou, contudo, um critério claro para diferenciar o usuário do traficante. Ele propôs que a definição fique sempre a cargo de um juiz, que, para isso, deverá avaliar a situação da pessoa pega com drogas em até 24 horas”.
Então, notemos que caberia mais completude ao voto ora delineado. Vamos recorrer ao que hoje dita a “lei de tóxicos” em vigência,no tocante à abordagem do caráter penal da questão: “Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Observemos que os verbos em destaque não fazem referência a quantidades. Quais seriam os critérios objetivos que levariam a assinalar que a pessoa que estivesse transportando ou trazendo consigo pudesse ser assim classificada como sendo usuária ou traficante?
Os neologismos atuais associados à uma necessidade cada vez mais irresponsável de promover “mudanças” visando a construção de uma “nova sociedade” mais justa e humana, esbarra em questões que acabam passando “intencionalmente” despercebidas.
Hastear bandeiras de cautela e coletividade, evocando os princípios constitucionais da proporcionalidade e da supremacia do interesse público devem ser mantidos e evocados enquanto formas de defesa da sociedade. Caso contrário, ignoramos o Contrato Social estipulado na história contemporânea, enquanto garantia de convivência pacífica entre os povos.
Insta frisar, o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, segundo Sérgio da Silva Cristóvam, contextualiza: “pelos critérios da proporcionalidade pode-se avaliar a adequação e a necessidade de certa medida, bem como, se outras menos gravosas aos interesses sociais não poderiam ser praticadas em substituição àquela empreendida pelo Poder Público”.
Neste diapasão, percebe-se que este estatuto não aparece nas discussões e debates que retratam a questão da descriminalização do porte de drogas. Se o ministro Gilmar Mendes não estabelece, em seu voto, qual o critério objetivo que culminará a transferência da abordagem penal para outra diversa ao porte, então, neste mesmo raciocínio, o Supremo estaria autorizando a qualquer cidadão do país, por exemplo, a transportar quantidades relevantes, caso essa mesma pessoa alegasse que toda essa droga fosse para uso próprio.
Entra em cena o citado princípio constitucional que, em contínua colaboração, segundo Pedro Lenza assevera relevantes valores, como: “justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins”. Neste ínterim, há algum exagero do poder público ao afirmar que se faz necessário restringir portes em quantidades relevantes sob a abordagem coercitiva? Quais seriam tais quantidades? Em apertada síntese, também emerge o princípio da supremacia do interesse público, e que, neste sentido, não seria o caso?
A questão de ser avesso a mudanças deve ser substituída pelo termo “responsabilidade”. O uso de drogas, entendo sim, ser um direito individual, dadas as circunstâncias de liberdade de escolha de opções que cada ser humano possui para sua própria vida. No entanto, seu acesso deve ser irrestrito? E quando o caos alcança a coletividade? Parece-me que essas “simples” questões não vêm aparecendo em muitos debates. Mudar sem contabilizar, planejar, antever, equilibrar, tornar equânime à sociedade a defesa de sua integridade, sobretudo quanto aos interesses mercantilistas que estão seriamente envolvidos no contexto do tráfico de drogas e, principalmente em sua legalização, não é mudar, e sim, agravar.
Assim sendo, a cautela em meio a esta discussão é de relevante alvitre. Não limito nesta opinião o encerramento do debate, como da mesma forma não se pode evocar a justificativa da liberdade sem que haja, a seu reboque, as devidas responsabilidades. A fina e quase imperceptível camada que divide a vida pacífica ou inviável em sociedade muito bem delineada por Rousseau, não deve sucumbir por devaneios e ausência de planejamentos. Sem os quais, teremos as portas abertas sob o pretexto do “término à guerra ao tráfico” para a transposição de uma sociedade onde as permissividades se acentuam em real desequilíbrio entre direitos e deveres, rumo ao descontrole sem precedentes. Liberdade não pode ser aceita como ausência de deveres, como bem nos ensina Bandeira de Mello: “É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados”, incluindo, sociedade em geral, usuários e seus próprios familiares.
(Sandro Roberto Campos é major da Polícia Militar do Espírito Santo, graduado em Direito, especialista em Segurança Pública, Educação em Direitos Humanos e em Ciências Jurídicas e chefe da Divisão de Mobilização Comunitária e Integração Institucional da Diretoria de Direitos Humanos e Polícia Comunitária da PMES.)