Especialistas na área de segurança pública condenaram, nesta segunda-feira (11/01), os Projetos de Lei que tramitam há pelo menos 20 anos na Câmara dos Deputados e que estabelecem mudanças radicais nas Leis Orgânicas das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros Militar e das Polícias Civis Estaduais.
Conforme o jornal Estadão publicou em sua edição impressa, os projetos limitam o controle político dos governadores sobre as polícias ao prever mandato de dois anos para os comandantes-gerais e delegados-gerais e impor condições para que eles sejam exonerados antes do prazo.
O Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.363, de 2001, por exemplo, traz mudanças na estrutura das PMs, como a criação da patente de general, hoje exclusiva do Exército, para as Polícias Militares. Outro projeto cria um Conselho Nacional de Polícia Civil ligado à União.
Os novos modelos são defendidos por aliados do presidente Jair Bolsonaro e foram elaborados com ajuda do Conselho Nacional dos Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros e pelo Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil ao longo das últimas duas décadas. As mudanças reduzem drasticamente o poder dos governadores sobre a PM, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros.
Uma das propostas analisadas pelo Congresso Nacional dá poder às Polícias Militares de credenciar e fiscalizar as empresas de segurança privada, os serviços de guarda de quarteirão ou similares, e as escolas de formação, ressalvada a competência da União e atendido os termos da legislação específica do ente federativo.
Hoje, essas atribuições ficam a cargo da Polícia Federal. Só tem um detalhe: a maioria das empresas de segurança privada de todo o País pertence a oficiais e ou praças das Polícias Militares.
O Blog do Elimar Côrtes ouviu, na manhã desta segunda-feira, quatro especialistas na área de segurança pública. São profissionais renomados nacionalmente. Todos são unânimes em condenar as propostas a serem analisadas pelo Congresso Nacional, embora concordem que as polícias precisam de novas leis orgânicas.
Os especialistas ouvidos são: o coronel e professor Júlio Cezar Costa; o economista e professor Daniel Ricardo de Castro Cerqueira; o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, professor Renato Sérgio de Lima; e o ex-secretário Nacional de Segurança pública, coronel José Vicente da Silva Filho.
Júlio Cezar Costa
O coronel da Reserva da Polícia Militar do Espírito Santo e associado Sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o professor Júlio Cezar Costa – também idealizador da Polícia Comunitário-Interativa –, disse que são propostas tardias de regulamentação do artigo 144 da Constituição Federal, que instituem Leis Orgânicas para as Polícias Civil e Militar.
“Entendo que são, em certos pontos, irreais diante do Estado Democrático de Direito, pois sugerem um modelo que engessa o poder democrático dos governadores sobre as instituições policiais estaduais no campo da gestão estratégica e administrativa”, frisa o coronel Júlio Cezar.
Segundo ele, a dupla subordinação já está na Constituição, uma vez que, em determinados assuntos, a União já tem a atribuição privativa para legislar sobre as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, acrescentando que “a busca das polícias é pela militarização ainda maior das corporações”.
O coronel Júlio Cezar aponta ainda as “excentricidades” nas propostas: a criação de mandatos para comandantes e de delegados gerais; a criação de postos de generais; e a uniformização de fardamento e viaturas. Segundo ele, “essas excentricidades em nada contribuiriam para a melhoria da eficácia do trabalho no ambiente da ordem pública”.
Para o coronel Júlio Cezar, “uma Lei Orgânica ainda demorará algum tempo, pois isso depende da reforma do pacto federativo. Esse é um debate caloroso”.
Por isso, salienta Júlio Cezar Costa, “é possível que as propostas não sejam acolhidas pelo Parlamento brasileiro, pois representariam um retorno ao modelo getulista, criado a partir de 1934, e reforçado pelo Decreto-lei 667/1969”.
O coronel Júlio Cezar afirma ainda que “não podemos esquecer que a politização das polícias e sua partidarização nada acrescentaram ao bem estar do conjunto da segurança pública, mesmo que em 10 anos (2008-2018) tenha havido 715 greves de policiais, das quais 663 por entidades representativas de policiais civis”.
Ele conclui: “Precisamos de políticas públicas que valorizem o homem e a mulher policial, lhes dando melhores salários e estrutura, e não de instituições fortes, pois no Brasil o Estado é forte para os fracos e fraco para os fortes, como nos ensinou o saudoso professor Jorge da Silva”.
Para o professor e coronel Júlio Cezar Costa, as mudanças deveriam tratar de questões mais importantes, como a introdução no Brasil do Ciclo Completo de Polícia.
Daniel Ricardo de Castro Cerqueira
O diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Naves (IJSN) e técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Daniel Ricardo de Castro Cerqueira, disse que o Substitutivo ao Projeto de Lei nº 4.363 “é um retrocesso e uma excrescência em relação ao pacto federativo, à democracia representativa e à economia nacional”.
Ele entende, entretanto, que há muito tempo existe a necessidade de atualizar a legislação que organiza a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros, regida ainda por um decreto-lei da ditadura de 1969.
“Desde então, o País mudou e o mundo mudou. Esperava-se que uma legislação moderna contemplasse os aspectos singulares do trabalho de polícia e das novas formas organizacionais e que encampassem a ideia de policiamento comunitário; policiamento orientado pela solução do problema; e policiamento orientado pela inteligência. Esses aspectos são totalmente diversas e antagônicas ao trabalho das Forças Armadas”, pontua o professor Daniel Cerqueira.
“Incrivelmente o substitutivo ora proposto vai na contramão da história, ao sugerir ao modelo policial uma cópia travestida da organização das Forças Armadas, trazendo, inclusive, as figuras do oficial general, tenente-general, major-general; e brigadeiro-general”, frisa o professor.
Um segundo ponto, segundo Daniel Cerqueira, é que o substitutivo atenta contra a democracia representativa e o poder discricionário dos governadores (legitimados pelo voto popular) de operarem a política de segurança pública, transformando as polícias militares como um verdadeiro poder autônomo:
“Note que no artigo 28, ao conceder mandato fixo e as mesmas prerrogativas ao comandante-geral que possui o secretário de Estado, o substitutivo acaba com qualquer possibilidade de gestão executiva pelo Governo do Estado da política de segurança pública e do tensionamento a favor da integração das organizações”, explicou o professor Daniel Cerqueira.
Segundo ele, “o teor do substitutivo caminha no sentido de cristalizar o corporativismo nas Polícias Militares, levando à última instância o processo de politização interna das corporações, já que a disputa seria pela eleição para a lista tríplice”.
Para Daniel Cerqueira, ao sugerir no artigo 31 que “a remuneração dos militares do Distrito Federal, dos Territórios, do ex-Distrito Federal e ex-Territórios será estabelecida em lei federal”, o substitutivo atenta contra o pacto federativo.
“Por ultimo o substitutivo atenta contra a economia, não apenas pelo maior número de hierarquias e cargos, ou pela lei nacional sobre remuneração que tenderia a colocar todas as forças no mesmo patamar de salários do Distrito Federal, seja ainda pelo que diz o art. 12 parágrafo 6º, que ‘assegura a promoção na condição de excedente no respectivo quadro, independente de vaga, ao militar que possuir os requisitos de promoção previstos na legislação e ultrapassar o interstício máximo de promoção ao posto ou graduação imediato’. Qual o custo de tamanho desatino para o País? Em meio à tentativa de golpe nos EUA e a ameaça que o presidente Bolsonaro fez sobre a eleições nacionais, a que serve essa ideia de centralizar as decisões sobre remuneração de policiais militares em Brasília e de retirar poder dos governadores?”
Renato Sérgio de Lima
O diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), professor Renato Sérgio de Lima, entende que as propostas de Leis Orgânicas para as Polícias Militares, Corpos de Bombeiros e Polícias Civis Estaduais, “da forma como estão redigidas, transformam os governos estaduais em meros pagadores de contas, sem nenhum tipo de controle ou participação nas decisões estratégicas”.
Segundo ele, uma boa Lei Orgânica protege as corporações mas não delega as elas poder absoluto sobre seus mandatos e funções: “Polícias precisam ser valorizadas mas nunca deixadas sem controle e supervisão. Em uma democracia, quem decide a política é o governante eleito”, pondera o professor Renato de Lima.
O diretor-presidente do FBSP ainda sugeriu: “Se for para retirar o poder dos governadores, eleitos democraticamente pelo povo, é melhor que a União, então, pague os salários dos policiais, como já faz no Distrito Federal”. Porém, ele completa: “Mesmo assim, as mudanças seriam ruins, pois dão autonomia demais às corporações policiais, sem nenhuma contrapartida”.
A contrapartida a que o professor Renato de Lima se refere, reside, sobretudo, no cumprimento de metas: “Nas propostas, não se fala em policiamento. As Polícias Militar e Civil não inserem nos documentos o comprometimento com metas, com resultados; nem com a prestação de contas perante à sociedade”.
Ele ressalta que, diferente do que almejam as corporações policiais estaduais, o Exército, Marinha e Aeronáutica prestam contas anualmente ao Congresso Nacional: “As Forças Armadas têm autonomia, mas seus projetos têm que ser aprovados pelo Congresso Nacional”.
Para o professor Renato de Lima, os projetos “são extremamente perversos”, pois transformam os governadores em meros pagadores de salário dos policiais.
“Não vejo problema a PM possuir generais em seus quadros de oficiais. O problema é a quantidade enorme de carreiras que vão ser criadas. As propostas mantêm os privilégios da Constituição de 1969, mas não melhoram em nada o policiamento. São peças com conteúdo ideológico”, sentencia Renato de Lima.
O professor entende, todavia, que as polícias brasileiras precisam de nova Lei Orgânica, pois a atual legislação, para Renato de Lima, está ultrapassada:
“O que se observa é que a nova legislação está sendo produzida dentro do ambiente bolsonarista. Durante muitos anos, a sociedade foi relegando os problemas das polícias, deixando as próprias policiais a responsabilidade para resolver as demandas. O Congresso Nacional tem que fazer mudanças, mas dentro de uma nova realidade. As propostas apresentadas são esdrúxulas, precisam de mais qualidade. As polícias não podem decidir sozinhas. A legislação tem que ser firme, é precioso que se tenha um plano de gestão”, disse Renato de Lima.
José Vicente da Silva Filho
Crítico das propostas apresentadas ao Congresso Nacional para as novas Leis Orgânicas das Polícias Militares e Civis e do Corpo de Bombeiros, o coronel reformado da Polícia Militar do Estado de São Paulo e ex-secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho debruçou-se tanto nos projetos que chegou a fazer uma análise do que considera palavras-chaves dentro do novo texto constitucional.
O resultado é que o Conselho Nacional de Comandantes-Gerais das PMs e dos Corpos de Bombeiros em momento igual se preocupou com a finalidade maior das corporações: a proteção dos cidadãos e o salvamento de vidas:
Segundo o coronel José Vicente, a evidência da ênfase militarista é clara: nas mais de 11.000 palavras do projeto a palavra “policiamento“ aparece TRÊS VEZES. A palavra “POLÍCIA”, que define a principal característica dessas instituições, é grafada 17 vezes, mas “militar” aparece 274 vezes.
Para o coronel José Vicente, os Conselhos Nacionais das PMs e Polícias Civis, aliados a parlamentares oriundos das forças policiais e entidades associativas e sindicais, “criaram excessos inacreditáveis e, principalmente, o emparedamento dos governadores”. Segundo ele, “há ainda criação de generais, prerrogativa de controle da segurança privada, emissão de laudos sobre impactos na segurança de edificações, etc”.
Para o oficial, “a proposta das PMs é profundamente regressiva com instituições policiais. Passam de policiais militares a militares estaduais que fazem policiamento”.
E prossegue: “Mas no frankenstein das PMs há lista tríplice para comandante, mandato de dois anos, demissão dos chefes das policiais apenas por motivo fundamentado…Parlamentares oriundos das PMs poderão retornar às corporações se não forem reeleitos, com direito às promoções do tempo afastado. As PMs passariam a ter autonomia financeira, administrativa e funcional, prerrogativa que só existe no Ministério Público. O projeto ainda trata de organização da Justiça Militar Estadual que é problema do Judiciário e não das PMs”.
O coronel José Vicente finaliza: “Já pensou o Amapá, com a população de São Bernardo e com três generais? Nem Gabriel Garcia Marques surtaria essa hipótese. O assunto será o grande tema da segurança neste início de ano e é bom que seja exposto para mais debate”.