As seis pessoas acusadas de linchar o lanterneiro Gilmarcam Augusto Vieira Teixeira, apontado como o homem que estuprou e matou a menina Kevelin de Souza, 10 anos de idade, em 2013, em Vargem Alta, município localizado na Região Serrana do Espírito Santo, vão ser submetidos a júri popular. A decisão é do juiz José Pedro de Souza Netto, da Vara Única de Vargem Alta. O processo é de número 0000588-68.2013.8.08.0061. As duas tragédias – morte da menina e a vingança – aconteceram há pouco mais de três anos.
Na sentença de pronúncia, o magistrado decidiu que Jadenir Alves Lacerda, o pai de Kevelin, terá de ser julgado pela prática do crime tipificado no artigo 121 (homicídio), § 2º, incisos III e IV do Código Penal. Significa que Jandenir cometeu o crime “com emprego tortura ou outro meio insidioso ou cruel”, e “à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido”. Se condenado, o pai da menina vítima de estupro e assassinato poderá pegar pena de 12 a 30 anos de prisão.
Os outros cinco réus foram condenados pela prática do crime previsto no artigo 1º, inciso II, da Lei 9.455/97 c/c § 3º do mesmo artigo, na forma do artigo 29 do Código Penal. São eles: Elias José Rodrigues, Edmar Vieira Benincá, Domingos Sávio Daltio, Tarcísio Moysés de Andrade e Lucimar Dias da Silva. Assim como Jandenir, os demais também serão submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri da Comarca de Vargem Alta. Esses outros cinco réus, se condenados, poderão pegar pena de até 16 anos de prisão.
Na ação, o Ministério Público Estadual denunciou todos os seis réus, inclusive o pai, na prática do crime de tortura. No entanto, após a primeira fase do processo e tendo como base interrogatório dos réus, depoimento de testemunhas e provas materiais – DVs com cenas das agressões e tortura sofridas pelo lanterneiro Gilmarcam Augusto –, o juiz José Pedro de Souza Netto se convenceu de que “os elementos oriundos dos depoimentos, a meu ver, representam indícios suficientes de que o acusado Jadenir Lacerda teria cometido o crime doloso contra a vida, trata-se portanto do crime previsto no artigo 121, § 2º incisos, III e IV, ou seja, se insere no artigo 74, § 1º, do Código de Processo Penal, sendo o seu julgamento de competência do Tribunal Popular do Júri desta Comarca.”
Caso a Justiça tivesse acolhido somente a tese de ”crime de tortura”, todos os seis réus seriam julgados pelo Juízo Singular – sem necessidade de serem submetidos a um Júri Popular. Para o magistrado José Pedro de Souza Netto, “os depoimentos das testemunhas dos acusados, interrogatórios e as provas gravadas no DVD indicam de forma forte que o acusado Jadenir tinha a real intenção de ceifar a vítima Gilmarcam para vingar a morte da filha menor Kevelin, a qual teve seu corpo encontrado sem vida e com sinais de ter sofrido violência sexual, nos fundos da oficina em que a vítima Gilmarcam trabalhava, que posteriormente foi identificado como sendo o autor do homicídio que vitimou a menor.”
Já em relação aos réus Elias Rodrigues, Edmar Benincá, Domingos Daltio, Tarcísio Moysés e Lucimar Dias, prossegue o magistrado na sentença de pronúncia, “verifico a intenção de tão somente torturar a vítima.” Segundo José Pedro de Souza Netto, os depoimentos das testemunhas “dão conta de que” os demais acusados “conduziram a vítima (Gilmarcam) com uma corda amarrada ao redor do pescoço após espancarem a vítima, pronunciaram frases ameaçadoras e agressivas, deixando por fim a vítima sentada e amarrada no local em que o réu Jadenir Alves Lacerda desferiu-lhe pauladas na cabeça da vítima.”
Menina foi rendida ao ir à casa de amiga
De acordo com a denúncia do Ministério Público, no dia 26 de maio de 2013 (num domingo), em Vila Maria, zona rural de Vargem Alta, se realizava uma festinha de aniversário dentro do Bar de Dilcilene. Era comemoração do aniversário da proprietária do estabelecimento, a comerciante Dilcilene de Lourdes de Souza, mãe de Kevelin. A menina se aproximou da mãe e solicitou autorização para ir dormir naquela noite na casa de uma vizinha, de nome Shakira, que residia aproximadamente a 200 metros do local.
Ainda segundo a denúncia, no dia 28 de maio, terça-feira, por volta das 15 horas, Dulcilene e seu companheiro, Leonardo Agostinho Simões (padrasto da menina), foram procurar por Kevelin, “não encontrando-a nem na casa de sua amiga Shakira, nem na casa do pai da menor, o denunciado Jadenir”. Foram, então, realizadas buscas pelas imediações visando encontrar menina, quando, por volta das 20 horas, do mesmo dia, foram informados pelo dono de uma oficina de lanternagem, próximo ao Bar de Dulcilene, que havia encontrado, nos fundos de sua oficina, o corpo, sem vida e com sinais de ter sofrido violência sexual, da menina Kevelin.
Conforme restou apurado nos autos do Inquérito Policial, o funcionário da oficina de lanternagem do “senhor Valdeir, de nome Gilmarcam Augusto Vieira Teixeira, acompanhou o encontro do corpo de Kevelin, tendo empreendido, em seguida, fuga do local, evadindo-se por um cafezal, tendo sido perseguido por vários moradores das imediações, por toda a noite daquele dia.”
Padrasto “ordenou” caçada ao estuprador assassino
Ainda segundos autos, no dia 29 de maio, por volta das 6h40, Leonardo, padrasto de Kevelin, tomou conhecimento de que Gilmarcam teria sido visto próximo a localidade de Castelinho, zona rural de Vargem Alta, tendo, então, orientado algumas pessoas, “dentre elas o denunciado Jadenir”, para que “procurassem e capturá-lo, por Leonardo teria que se deslocar até o Município de Cachoeiro de Itapemirim/ES, para liberar corpo de Kevelin para o sepultamento.
Segundo ficou apurado, os réus encontraram e capturaram Gilmarcam, próximo à Serralheria Daré, em Castelinho, a cerca de três quilômetros do local onde Kevelin foi encontrada morta, e o conduziram até outra área. Durante todo o trajeto, “de forma livre e consciente, (os réus) submeteram a vítima, que estava sob a guarda, poder e autoridade dos denunciados, a intenso sofrimento físico e mental, pois empregaram violência física, psicológica e grave ameaça; como forma de aplicar castigo pessoal ao suposto autor do crime que vitimou Kevelin.”
Prossegue a denúncia: “Como derradeiro dos atos de tortura, os denunciados amarraram e conduziram a vítima para um local onde mais uma vez praticaram atos contundentes na cabeça da vítima Gilmarcam, que sofreu traumatismo crânio encefálico (TCE), com hemorragia cerebral.”
Segundo se apurou nos autos, quando os denunciados se aproximaram da localidade de Castelinho, moradores registraram a cena utilizando aparelhos de telefonia móvel, filmagens, onde é possível a identificação dos denunciados que conduziam Gilmarcam amarrado com uma corda, “já bastante debilitado das agressões que havia sofrido.”
Chegando próximo ao colégio da comunidade de Castelinho, na presença de várias pessoas, inclusive crianças, os denunciados colocaram Gilmarcam sentado no chão, onde Jadenir, “utilizando um bastão de madeira, aplicou mais golpes na cabeça de Gilmarcam, até que foram ouvidas sirenes provenientes dos veículos das forças policiais, tendo os denunciados se evadido do local.” O lanterneiro Gilmarcam, ainda com vida, foi socorrido, mas acabou morrendo em seguida.
Depoimentos de acusados e testemunhas são estarrecedores
O Blog do Elimar Côrtes teve acesso aos autos. Chegam a ser estarrecedores os depoimentos dos réus e das testemunhas. Um dos depoimentos prestados em Juízo foi do cabo PM Fábio Francisco de Oliveira, que participou das diligências do caso. Disse ele:
“…Que a viatura ficou no centro da multidão; que a vítima (Gilmarcam) estava amarrada em uma placa; que a vítima estava com o pescoço amarrado, que cortou a corda que estava no pescoço da vítima; que o pessoal gritava para não socorrer a vítima; que a população gritava; que no momento não tinha mais ninguém armado; que a vítima estava desacordada respirando com dificuldade; que estava muito machucado na cabeça; que a vítima estava toda destruída; que não foi possível socorrer a vítima devido a multidão; que o acusado foi conduzido na viatura do depoente; que aproximadamente cinco viaturas foram ao local; que a viatura do depoente aguardou o reforço; que o depoente não visualizou a agressão; que socorreu a vítima levou para o pronto socorro; que não ouve violência física contra os policias; que o depoente ouviu das pessoas dizendo deixa morrer; deixa a gente acabar de matar ele; que o depoente e seu parceiro não conseguiram sair do centro da multidão; que o depoente não viu ninguém armado; que o depoente se prontificou a ir atrás do Gilmarcam quando soube do estupro (…)”.
Estarrecedor também é o depoimento de um dos acusados do linchamento, Elias José Rougues:
“(…) que estava no meio da multidão; que não espancou a vítima; que era muita gente batendo um empurra empurra; que havia muitos curiosos; que estava lá na intenção de capturar uma pessoa que todos diziam que era o culpado; que o depoente achou que a vítima era o culpado; que já encontrou as pessoas carregando a vítima; que perguntou a vítima porque ele fez isso com a menina; que a vítima respondeu que foi um momento de fraqueza; que a vítima vinha andando voluntariamente; que a vítima sorriu para o depoente; que essa corda passou na mão de um de outro; que várias pessoas passavam na rua e agrediam a vítima; que não bateu na vítima; que um carreteiro desceu e deu quatro ou cinco pancadas; que as pessoas davam chutes; que só viu o pai Jadeir batendo na vítima; que a corda passava de mão em mão; que a vítima caiu no chão; que já viu a vítima com a corda no pescoço; que não sabe quem amarrou; que tinha muita gente; que não se viu nas imagens do vídeo; que conhece os acusados; que um menino gritou dá o pau pra ele; que o depoente foi empurrado; que não viu ninguém enforcando o réu; que não sabe que botou a corda; que a corda pode ter até passado na mão do depoente mas não se recorda; que teve um momento que a corda caiu no chão e a vítima caiu no chão; que a corda passou na mão do depoente; que não sabe quem amarrou a vítima primeiro; que não se viu nas imagens; que não quis ver o vídeo; que gritavam ninguém viu nada; que se arrepende do que fez; que ouviram a sirene da polícia; que levaram a vítima para polícia mas a viatura já tinha passado; que não agrediu a vítima; que pessoas de casa jogavam pedras; que a polícia conseguiria impedir as agressões; que a ambulância chegou bem depois; que a população de Vila Maria interditou a via; que quando a polícia chegou todo mundo saiu; que participou da busca a noite procurando a vítima (…)”.
Na sentença de pronúncia, o juiz José Pedro de Souza Netto faz uma observação: “Não bastassem os depoimentos das testemunhas e acusados, o réu Jadenir Alves Lacerda confessa sua real intenção de ceifar a vida da vítima, senão vejamos:”
Depoimento de Jadenir Alves Lacerda, pai da menina Kevelin, morta e estuprada:
“(…) que sempre trabalhou na roça; que não vai a festas; que não bebe, que não usa droga; que nunca teve problema com a polícia; que ouviu dizer que encontraram a vítima (Gilmarcam) e iam entregar a polícia; que andou uns dois quilômetros a pé correndo; que disse que não ia dar tempo de entregar a polícia; que estava procurando a vítima porque tinha matado sua filha; que encontrou as pessoas trazendo a vítima; que é pai da Kevelin; que chegou perto tinha um pau perto deu umas cacetadas na vítima e deixou pra lá; que não lembra onde bateu; que não pensou em nada; que queria matar a vítima; que não olhou onde bateu; que não lembra quem estava segurando a vitima; que a vítima estava solta no chão; que chegou e meteu o porrete; que não se lembra das pessoas que estavam lá; que sua intenção era matar a vítima; que tinha umas duzentas a cem pessoas; que não se lembra se os acusados estavam lá; que não pode ver o corpo de sua filha; que queria matar a vítima porque matou sua filha; que lutou pela guarda de sua filha e o juiz não deixou; que era a única coisa que eu tinha; que pegava sua filha todos os dias; que a menina ficava na rua porque a mãe não vigiava; que levava sua filha para sua casa; que a sua intenção não era torturar era matar a vítima; que ninguém tinha a intenção de torturar a vítima; que hoje sua vida acabou tudo; que bateu até quando viu que a vítima estava morta e largou pra lá; que acusação de tortura é mentira; que não pode ver o corpo de sua filha; que ele quebrou a menina tudo; que a intenção das pessoas que capturaram a vítima era de entregar a polícia mas o depoente chegou a tempo antes da polícia chegar e não deixou e meteu o pau na vítima; que não viu os outros acusados torturando a vítima que a intenção dos acusados era de entregar para a polícia; que se alguém ficasse na frente da vítima para defender a vítima Gilmaram o depoente metia o pau também; que ficou sabendo no outro dia; que procurou a vítima junto com a população; que já tinham ligado para a polícia; que juntou duas ou três comunidades ajudando a procurar a vítima; que ele veio andando com as próprias pernas; que a vítima caiu e nesse momento e o depoente bateu na vítima; que a vítima ficou encontrada em uma placa; que tentaram esvaziar o pneu da ambulância mas depois encheram para socorrer a vítima; que um carreteiro passou falou que o pai não tinha acabado de matar a vítima e meteu uma barra de ferro; que carreteiro cercou a estrada; que muitas pessoas agrediram a vítima mais de duzentas pessoas; que depois do depoente muitas pessoa agrediram a vítima; que chegou e matou que meteu o pau para matar a vítima (…).”