A Associação Nacional do Ministério Público (Conamp), a Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB e o Consórcio Nacional de Organizações, que agregam 71 entidades que elaboraram o anteprojeto que criou a Lei Maria da Penha, voltaram a se manifestar posição contrária à aprovação do Projeto de Lei Complementar 7/2016, que tramita no Senado Federal e apresenta dispositivo que permite ao delegado de Polícia a concessão de medidas protetivas de urgência a mulheres vítimas de violência doméstica e a seus dependentes sem consulta prévia ao juiz. A lei, hoje, segue o que determina a Constituição Federal, que permite somente à Justiça a decretação da medida protetiva.
Para a Conamp, a alteração legislativa “desfigura o sistema processual de proteção aos direitos fundamentais”. Por meio de um estudo técnico a entidade conclui que a alteração tem “como mote para patrocinar interesses corporativos de valorização de uma carreira policial, sem prévio diálogo com as demais instituições do sistema de justiça”. A Conamp entende que é inconstitucional a proposta de mudança da Lei Maria da Penha.
A Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB também firmou posicionamento contrário a alguns trechos do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 07/2016, que, dentre outras alterações à Lei Maria da Penha, confere exclusividade aos delegados de Polícia e outros agentes na expedição de medidas protetivas.
“Foi um projeto aprovado sem a devida consulta popular. Advocacia e magistratura foram excluídas da discussão. Entendemos ser inconstitucional por ferir brutalmente uma competência do Poder Judiciário, além de ocasionar mais dificuldade às vítimas pelo fato de as delegacias não estarem equipadas para atendê-las a contento”, aponta Eduarda Mourão, presidente da Comissão.
Ela entende que a Lei Maria da Penha é um patrimônio para o País, amplamente reconhecida na comunidade internacional, e que deu voz a uma luta no sistema jurídico. “Entretanto, as referidas mudanças esbarram em impossibilidade constitucional, estrutural e jurídica”, completa a advogada Eduarda Mourão.
Por sua vez, o Consórcio Nacional de Organizações que elaborou o anteprojeto de lei Maria da Penha (Cepia, Cfemea, Cladem e Themis), as organizações feministas, de mulheres e de direitos humanos, também publicamente já se manifestaram contrárias à proposta contida no art.12-B, do PLC 07/2016. Para o Consórcio, o dispositivo subverte a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).
“Importante lembrar que a Constituição Federal consagrou os direitos das mulheres e a responsabilidade do Estado frente à violência doméstica é fruto da luta dos movimentos feministas e de mulheres, que também conquistaram a presença do sistema de Justiça no tratamento da violência através da Lei Maria da Penha. Nesse sentido, as Delegacias da Mulher (DEAMs) surgiram por proposta e pressão dos movimentos de mulheres como resposta às dificuldades que as mulheres enfrentavam para registrar suas queixas nas delegacias tradicionais. As instituições de segurança pública efetivamente não estavam preocupadas com as violências cometidas contra as mulheres, e muito frequentemente resistem a criar e ampliar delegacias especializadas para atendimento a vitimas de violência domestica e sexual. As DEAMs não existiriam se não fossem os movimentos feministas e de mulheres. Por isso, manifestamos surpresa e indignação que a proposta esteja sendo conduzida, sem consulta às organizações que representam os direitos das mulheres no país, por delegados e delegadas que nunca se manifestaram em defesa dos direitos das mulheres. Lamentamos que as Delegacias da Mulher, que não existiriam sem a luta constante do movimento de mulheres, estejam apoiando uma proposta que subverte a Lei Maria da Penha, dificulta o acesso à justiça, e que não é apoiada pelos movimentos de mulheres”, diz a nota do Consórcio.
Diante da falta de consenso em torno de mudanças na Lei Maria da Penha, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal adiou a votação de projeto de lei da Câmara (PLC 7/2016). O pedido de adiamento foi apresentado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e aceito pelo presidente da comissão, senador José Maranhão (PMDB-PB) em pauta na reunião da última quarta-feira (22/06).
Membros da CONAMP e afiliadas e promotoras de Justiça acompanharam a sessão. A decisão ocorreu um dia após a realização de debate que expôs as divergências em torno da proposta.
Antes do adiamento decidido pela CCJ, foi realizada audiência pública sobre o PLC 07/16 no dia 21 de junho. A promotora de Justiça Valéria Diez Scarance Fernandes representou a Conamp na ocasião. Também participaram o promotor de Justiça Tiago Pierobom e representantes da Secretária de Políticas para as Mulheres do Ministério da Justiça; Associação dos Magistrados do Brasil; Conselho Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (CONDEGE); Comissão Nacional da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Comitê Latino-Americano e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM); União Brasileira das Mulheres (UBM); Associação de Delegados de Polícia Federal; Fórum Nacional dos Delegados de Polícia; e da Associação dos Delegados de Polícia da Brasil (ADEPOL).
Apenas as entidades ligadas à categoria policial defenderam a iniciativa. Prevaleceu a rejeição à tentativa de se permitir ao delegado de Polícia a aplicação de medidas protetivas de urgência à mulher vítima de violência doméstica ou a seus dependentes, antes de o pedido de proteção ser analisado por um juiz, como é feito atualmente.
A procuradora da Mulher do Senado, Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), fez apelo por um entendimento entre delegados, juízes e membros do Ministério Público em torno da proposta. “Não concordo que a medida protetiva demore além do que deve demorar. Mas não devemos transformar essa questão em um problema policialesco”, declarou Vanessa Grazziontin.
Em artigo publicado neste mês no Portal Consultor Jurídico, o delegado de Polícia Civil Henrique Hoffmann Monteiro de Castro (Paraná) e o defensor público Pedro Rios Carneiro (Santa Catarina) defende, a concessão de medidas protetivas a vítimas de violência doméstica ainda na Delegacia de Polícia. Para eles, a medida é um “avanço necessário.”
“Na atual sistemática, a concessão de medidas protetivas é exclusividade do magistrado. Quando a ofendida busca amparo na Delegacia, seu pedido de medidas protetivas deve ser encaminhado pelo delegado em 48 horas (art. 12, III), e o juiz deve decidir em 48 horas (art. 18, I). Após o deferimento, o agressor deve ser intimado da decisão, o que pode demorar dias, se tudo der certo e o suspeito não fugir. Ou seja, na melhor das hipóteses, aproximadamente 1 semana separa o comparecimento da ofendida à Delegacia e a concretização da medida protetiva contra seu algoz. Mesmo o encaminhamento de alguns casos ao plantão judicial, que não analisa todas as situações de violência doméstica, não é capaz de atender à exigência de celeridade na decretação das medidas. Os prejuízos da excessiva burocratização do procedimento podem ser aferidos na prática. As constatações feitas pelo relatório final da CPMI da Violência Doméstica,[5] baseadas em relatório de auditoria do TCU, revelam que a insuportável morosidade na proteção da vítima não é exceção, mas a regra. A depender da região, o prazo para a concessão das medidas é de 1 a 6 meses”, argumentam Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Pedro Rios Carneiro.