Com base no voto em que o relator, desembargador Willian Silva, dá uma verdadeira aula de Direito Criminal, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo reformou sentença de primeiro grau e condenou o falso empresário turco Rakan Remzi Kocturk, 49 anos, a ressarcir três empresários capixabas o valor de R$ 390.960,00 – R$ 130.320,00 para cada um. A votação do recurso, movido pelas próprias vítimas – já que o Ministério Público Estadual também havia pleiteado a absolvição do turco –, aconteceu na tarde de quarta-feira (17/12). Rakan Koçturk se passava também por agente (empresário) de jogadores de futebol.
Em julgamento ocorrido no dia 12 de agosto de 2013, a juíza da 5ª Vara Criminal de Vila Velha, OIacéia Novaes, havia absolvido Rakan Kocturk, que é natural de Estambul, capital da Turquia. Consta na denúncia que, em maio de 2008, os empresários Adalberto Lyrio Lopes, Thanguy Gomes Friço e Antonio Luiz Barbosa de Oliveira, foram procurados pelo acusado Hakan, comunicando que uma empresa de medicamento da Turquia ANKAFERD SAGLIK URUNLERI A.S. havia lhe contratado, sendo que tinha grande interesse em exportar o medicamento ANKAFERD BLOOD STOPPER para a América Latina, porém necessitava de sócios para realizar a comercialização do produto.
Ao iniciar a análise do mérito em seu voto, o desembargador Willian Silva ressalta que “a despeito desses fatos inicialmente narrados pelo parquet – que, frise-se, requereu em alegações finais a absolvição do apelado –, entendeu a ilustre julgadora de 1º grau que ‘não há prova nos autos que o acusado deliberadamente impediu a realização do negócio, que ele pretendia locupletar-se com erro alheio. Demais disto, os sócios (empresários capixabas) não são pessoas ingênuas para se deixarem enganar por um estrangeiro desconhecido. [Assim], a prova é deficitária quanto ao dolo do acusado, bem como quanto à falsidade do depósito prévio para a empresa turca.”
O desembargador, entretanto, discorda: “Essa, contudo, não é a conclusão que se extrai de uma atenta análise dos autos. A prova do estelionato, muitas das vezes, é de difícil compreensão. Justamente em razão da facilidade com que certos indivíduos empregam meios fraudulentos para, induzindo outro a erro, obterem vantagem ilícita, acaba-se por concluir que o fato não teria passado de mero negócio jurídico malsucedido. A verdade, no entanto, é que mesmo que exista um princípio de negócio jurídico, se o agente pretende desde o início não prestar o equivalente econômico, visando à obtenção do lucro ilícito e não daquele oriundo do acordo que se diz entabular, estará caracterizado o estelionato. E que não se alegue a existência de distinção entre fraude civil e fraude penal: afora os riscos inerentes a qualquer transação, o engodo comercial, estampado no escopo já inicial de conduzir o outro ao prejuízo, será sempre penalmente relevante.”
Willian Silva cita a lição de Mirabete: “Não há diferença de natureza, ontológica, entre a fraude civil e a penal. Não há fraude penal e fraude civil; a fraude é uma só. Pretendida distinção sobre o assunto é supérflua, arbitrária e fonte de danosíssimas confusões. O que importa verificar, pois, é se, em determinado fato, se configuram todos os requisitos do estelionado, caso em que o fato é sempre punível, sejam quais forem as relações, a modalidade e a contingência do mesmo fato. Tem-se entendido que há fraude penal quando o escopo do agente é o lucro ilícito e não o do negócio. Isso porque a fraude penal pode manifestar-se na simples operação civil, não passando esta, na realidade, de engodo fraudulento que envolve e espolia a vítima. (MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 16ª ed. São Paulo: Atlas. pág. 298)”.
Para o desembargador Willian Silva, “houve sim a indução dos recorrentes a erro com a evidente intenção de se obter vantagem econômica indevida. A leitura dos autos não possibilita qualquer outra conclusão, inexistindo prova produzida pelo réu no sentido de que o negócio jurídico, de fato, não passou de fraude desde o seu limiar; ao contrário, há elementos suficientes à desconstrução de toda a tese defensiva, desde a ausência de comprovação efetiva do depósito supostamente realizado em favor da empresa turca até a prova cabal de que jamais existiu a oferta por outra pessoa jurídica para a representação da venda do medicamento, fato que, como visto na peça vestibular, teria levado à maior agilidade na conclusão das supostas negociações pelas vítimas, receosas de perderem a oportunidade oferecida pelo apelado.”
Por fim, o desembargador conheceu “do recurso para, no mérito, dar-lhe provimento, a fim de, julgando procedente a pretensão punitiva estatal, considerar o réu como incurso nas sanções do artigo 171, caput, do Código Penal.”
Willian Silva fixou a definitiva em um ano de reclusão e multa, esta encontrada em 10 (dez) dias-multa, cada um no valor de 1 (um) salário mínimo vigente à época dos fatos. Porém, “diante do disposto no artigo 44, §2º, do CP, e inexistindo elementos nos autos que demonstrem não ser o proceder recomendável, substituo a pena privativa de liberdade por 1 (uma) restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária às vítimas, a qual fixo em 180 (cento e oitenta) salários-mínimos para cada uma. A despeito do disposto no artigo 387, IV, do CPP, deixo de fixar o valor mínimo da indenização às vítimas em razão da inexistência de parâmetros seguros, havendo notícia nos autos de que parte do ilícito teria sido recuperado e de que, além disso, foi proposta ação civil nesse sentido.”
O valor do salário mínimo atualmente é de R$ 724,00. O falso empresário turco Rakan Kocturk foi condenado a pagar a cada um dos três empresários capixabas o valor correspondente a 180 salários-mínimos, o que, hoje, daria E$ 130.320,00 – totalizando R$ 390.960,00.
O voto do relator Willian Silva foi seguido pelo revisor da Apelação Criminal – que leva o número 0092948-08.2010.8.08.0035 –, desembargador Pedro Valls Feu Rosa, e pelo desembargador Carlos Henrique Rios do Amaral.
Turco já havia sido preso pela Polícia Federal em audiência no 2º Juizado Especial de Vila Velha
O falso empresário turco Rakan Renzi Kocturk, que mantinha contatos com diretores do CAT e deveria assumir o clube para as disputas da Copa Federação Paulista de Futebol, também foi acusado de estelionato, falsidade ideológica e uso de documento falso. Ele foi preso em flagrante em agosto de 2006, durante uma audiência no 2º Juizado Especial de Vila Velha. Segundo o delegado federal Fernando Amorim disse na época, Rakan compareceu à audiência portando documentos falsos em nome de Arlan Soares de Souza. Apesar do forte sotaque, Rakan usava a documentação falsa e se apresentava como brasileiro.
A prisão foi feita a partir de uma denúncia anônima, que informava que o turco estava aplicando golpes em todo o Estado usando a identidade brasileira. A audiência no Juizado Especial tinha justamente o objetivo de ouvir Arlan Soares de Souza, acusado de emitir cheques sem fundos.
Confirmado o crime – Rakan compareceu em juízo usando a identidade de Arlan Soares de Souza – os policiais efetuaram o flagrante. Com Rakan, foram encontrados cartões magnéticos de bancos turcos, suiços e brasileiros. Ele também conseguiu tirar toda a documentação brasileira: identidade, CPF, carteira de habilitação e até passaporte. As falsificações eram tão convincentes que, segundo a PF, Rakan conseguiu até o visto no consulado americano, que não detectou a fraude.
Em seu depoimento à PF, o turco afirmou que pagou R$ 25 mil para obtenção dos documentos falsos. Segundo ele, toda a história começou em 1991, quando deixou a Turquia e foi para os Estados Unidos. Ele teria vivido lá até 1999, quando perdeu o visto de trabalho. Rakan contou à polícia que saiu dos Estados Unidos deixando muitas dívidas e, por isso, veio para o Brasil.
Aqui, ele fixou residência em Vila Velha, onde trabalhava em uma empresa de importação e exportação de mármore e granito. Segundo Rakan, o objetivo de tirar a documentação falsa era tentar entrar novamente nos Estados Unidos, desta vez como cidadão brasileiro.