A Portaria 064-R, publicada pela Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social (Sesp) e que traça procedimentos em relação a investigação de crimes de natureza militar quando o militar estadual estiver em serviço ou em função dele, continua provocando discussões jurídicas interessantes. Na semana passada, um grupo de majores da Polícia Militar elaborou e encaminhou artigo a este Blog em que lançou luz nova para reflexão do mundo jurídico e das autoridades policiais, sejam elas da Polícia Civil ou Militar, e do Ministério Público Estadual.
Desta vez, o Blog do Elimar Côrtes recebe artigo elaborado pelo delegado de Polícia Civil Bruno Zanotti, em que ele busca jurisprudências de Cortes Superiores sobre o assunto. Vale a pena a leitura.
“Uma grande questão, presente em muitos Estados da Federação, diz respeito aos limites e possibilidades da atribuição investigativa da Polícia Civil nos crimes de homicídio cometidos por policial militar contra civil. Existem entendimentos diversos, certo que em determinados Estados a titularidade da investigação é da Policia Militar e, em outros estados, a titularidade é da Polícia Civil. Afinal, na forma da Constituição, de qual órgão é a atribuição investigativa?
Trata-se de mais uma questão investigativa de importante reflexo constitucional, tal como inúmeras abordadas no livro “Delegado de Polícia em Ação”, escrito em coautoria com o Excelentíssimo Cleopas Isaías Santos, Delegado de Polícia. A resposta ao questionamento gira em torno da interpretação de um dispositivo constitucional inserido pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, conhecida como reforma do Poder do Poder Judiciário, qual seja:
Art. 125, §4º – Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
O citado parágrafo foi inserido por questões históricas e fatídicas decorrentes da participação de inúmeros membros da Polícia Militar na execução criminosa de criança e adolescentes em nosso país, o que justificou a alteração constitucional para descaracterizar como delito castrense os ilícitos penais cometidos por policiais militares no exercício da função de policiamento ostensivo[1]. Isso possibilitou o julgamento dos Policiais militares pelo Tribunal do Júri, vinculado à Justiça Comum. Nesse sentido, é possível citar farta jurisprudência, como dois do STJ e outro do TJ-ES:
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PENAL. HOMICÍDIO PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. INQUÉRITO POLICIAL. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA.
NECESSIDADE DE EXAME DETALHADO E CUIDADOSO DO CONJUNTO PROBATÓRIO.
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM.
1. A legítima defesa, ou qualquer outra excludente, só pode ser acolhida na fase inquisitorial quando se apresentar de forma inequívoca e sem necessidade de exame aprofundado de provas, eis que neste momento pré-processual prevalece o princípio do “in dubio pro societate”.
2. No caso, mostra-se prematuro o trancamento do inquérito policial, mormente por constatar a necessidade de dilação probatória para a aferição da verdade real, inclusive quanto ao elemento subjetivo (dolo), somente possível mediante instrução processual realizada sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.
3. O parágrafo único do art. 9º do CPM, com as alterações introduzidas pela Lei nº 9.299/96, excluiu dos rol dos crimes militares os crimes dolosos contra a vida praticado por militar contra civil, competindo à Justiça Comum a competência para julgamento dos referidos delitos.
3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Ribeirão das Neves – MG.
(CC 45134/MG, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 29/10/2008, DJe 07/11/2008)
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIOS QUALIFICADO TENTADO E CONSUMADO PRATICADO POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIVIS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. ORDEM DE HABEAS CORPUS DENEGADA.
1. O Tribunal do Júri é competente para condenar Policial Militar, que pratica crime de homicídio contra civil, bem assim para aplicar, como efeito da condenação o disposto no art. 92, inciso I do Código Penal. Precedentes desta Corte.
2. Habeas corpus denegado.
(HC 173.873/PE, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 26/09/2012)
Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇAO NO RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PRONÚNCIA. OMISSAO QUANTO ÀS QUESTÕES RELACIONADAS À COMPETÊNCIA PARA O JULGAMENTO DO FEITO. HOMICÍDIO PRATICADO POR MILITAR CONTRA CIVIL. JUSTIÇA COMUM. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 9299 /96. APLICABILIDADE IMEDIATA. EMBARGOS PROVIDOS PARA SANAR A OMISSAO APONTADA. I A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo antes do advento da Emenda Constitucional n. 45 /04, era firme no sentido de que competia à Justiça Comum Estadual processar e julgar os crimes dolosos contra a vida, supostamente praticado por militar contra civil, a teor do que dipunha a Lei 9.299 /96. II – A Lei 9.299 /96, que alterou a redação do art. 9º, II, do C.P. M., tem natureza processual, devendo, em razão disso, ter aplicação imediata sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da redação anterior. III – A transferência à Justiça Comum do julgamento dos crimes especificados pela Lei 9.299 /96 se opera automaticamente, mesmo que o fato tivesse ocorrido antes de sua entrada em vigor. Desta forma, a referida sistemática legal impôs a remessa imediata dos autos da ação penal, oriunda de homicídio praticado por militar contra civil, ao Tribunal do Júri, a quem caberia o destino da persecutio criminis, tal como se deu no caso em exame. IV – Recurso provido para sanar a omissão apontada, sem, contudo, proceder à qualquer alteração no resultado do julgamento. TJ-ES – Embargos de Declaracao Rec Sentido Estrito ED 24089014260 ES 24089014260 (TJ-ES) , julgado em 25/09/2009.
Pelo exposto, se houve a descaracterização do delito como crime militar, como é perfeitamente visível no julgado do STJ acima que resolveu conflito de competência, de modo a concluir pela competência do Tribunal do Júri; pelo mesmo motivo, a titularidade para a sua investigação compete à Polícia Civil. Afinal, como se observa pelo art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal, a Policia Militar somente investiga crimes militares, que não é a hipótese em tela.
Há quem sustente, talvez por falta de conhecimento, que o STF possui posicionamento sobre o tema e que a questão foi decidida por ocasião do suposto julgamento da ADI 1494-3. A assertiva não é verdadeira! No curso da ADI 1494-3, houve somente o julgamento da medida cautelar no dia 04/09/97, na qual os Ministros do STF não visualizaram o periculum in mora e o fumus boni iuris para a suspensão do art. 82, § 2º, do CPPM. Ao final, a ação foi extinta sem julgamento de mérito, uma vez que não reconheceram a legitimidade ativa da ADEPOL da Brasil para a propositura da ADI. Em outras palavras, não houve decisão de mérito sobre o caso e não houve um pronunciamento do STF sobre a legitimidade da investigação conduzida pela Polícia Militar no caso de crime doloso contra a vida praticado por policial militar contra civil, diferentemente do que se observa pelas decisões acima do STJ e do TJ-ES que concluíram pela competência da Justiça Estadual e, portanto, pela atribuição investigativa da Polícia Civil.
Outro argumento equivocadamente utilizado para sustentar que a atribuição investigativa dos crimes de homicídio praticados contra civil por policial militar foi abordado por ocasião do julgamento da medida cautelar no curso da ADI1494-3, qual seja, o art. 82, § 2º, do CPPM. O art. 82, § 2º, do CPPM, incluído em 1996, dispõe que: “Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”. Note a questão temporal dos fatos. A medida cautelar, tomada em 1997, e o artigo incluído em 1996 são anteriores à Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o que torna ainda mais forte o argumento de que, atualmente, a interpretação veiculada em alguns manuais não mais encontra respaldo jurídico, seja porque o dispositivo não foi recepcionado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, seja porque ele não mais possui aplicabilidade, já que não há mais o que ser investigado, como se observa pelos entendimentos expostos nas jurisprudências acima mencionadas.
Por não ser hipótese de crime militar, por determinação constitucional, a investigação de tais crimes é atribuição em caráter indelegável da Polícia Civil. Entendimento em sentido contrário configuraria poderia caracterizar uma grave inadmissibilidade das provas produzidas pela Polícia Militar pelo Poder Judiciário (provas produzidas de forma contrária ao texto da Constituição), de modo a contribuir para a impunidade dos envolvidos.
Por fim, é possível citar um exemplo de repercussão nacional sobre o tema: o desaparecimento de Amarildo na Rocinha do Rio de Janeiro após entrar numa viatura da Polícia Militar, cujo fato está sendo investigado pela Polícia Civil por haver a possibilidade de se tratar de um crime doloso (tentado ou consumado) contra a vida de um civil praticado por policiais militares.
Em síntese, atualmente, o entendimento, na forma da Constituição e da jurisprudência, é no sentido de que a Polícia Civil possui a atribuição exclusiva para investigar crimes dolosos (tentados ou consumados) cometidos por um policial militar contra a vida de um civil.”
[1] Voto do Ministro Celso de Mello na ADI 1494 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/1997.